Mortes de pessoas negras em abordagens policiais repercutem em movimentos locais
Na manhã deste sábado, 6, manifestantes ocuparam a esplanada do Theatro Pedro II em uma manifestação pacífica contra o racismo

Mortes de pessoas negras em abordagens policiais repercutem em movimentos locais

Integrantes e estudiosos da história dos negros no Brasil comentam episódios que marcaram o debate sobre racismo nos últimos dias

Na manhã deste sábado, 6, manifestantes reuniram-se na esplanada do Theatro Pedro II para protestar contra o racismo em Ribeirão Preto. O movimento foi pacífico, mas disperso por policiais militares por conta de uma decisão dessa sexta-feira, 5, em que o juiz Reginaldo Siqueira proibiu movimentos, manifestações e as consequentes aglomerações na esplanada do teatro, principalmente por conta do risco do coronavírus. 

A manifestação em Ribeirão é o reflexo de uma onda que começou nos Estados Unidos. No dia 25 de maio, um homem foi morto por um policial após tentar comprar cigarros com uma nota falsa de 20 dólares, o equivalente a uma nota de R$ 100, em um supermercado de Minneapolis. 

Durante 8 minutos e 46 segundos, o policial Derek Chauvin manteve o joelho sobre o pescoço de George Floyd, que já estava rendido e não apresentava reação, como é possível ver nas filmagens. Passados os seis primeiros minutos, após dizer repetidas vezes que não conseguia respirar, Floyd parou de se mexer. 

Segundo o que foi amplamente divulgado pela mídia norte-americana, Floyd trabalhava como segurança, mas perdeu o emprego durante a crise causada pela pandemia do novo coronavírus. Chauvin foi preso e acusado de homicídio.

A morte do ex-segurança logo foi relacionada com a morte de Eric Garner, em julho de 2014. Segundo os policiais, Garner estaria vendendo cigarros ilegalmente. Durante a abordagem, ele também teve o pescoço prensado contra o chão e repetiu – onze vezes – "i cant breath" (eu não consigo respirar), antes de morrer.

A morte de Garner deu origem ao movimento "Black Lives Matter" (Vidas negras importam), em protesto contra a violência policial durante abordagens à comunidade preta norte-americana. Em nenhum dois crimes as vítimas estavam armadas ou apresentaram perigo aos oficiais. 

Os protestos retornaram com ainda mais força após a morte de George Floyd. Manifestantes ocuparam ruas de diversas cidades de forma pacifica. Uma minoria, contudo, incendiou prédios públicos, saqueou lojas e destruiu agências bancárias.

Uma semana antes da morte de Floyd, no Brasil, o menino João Pedro Mattos, de 14 anos, foi morto com um tiro de fuzil nas costas, dentro de casa, durante uma ação policial no Rio de Janeiro.

De acordo com a perícia, a bala que ficou alojada no ombro do menino, é compatível com os fuzis de dois, dos três policiais civis que participaram da ação. Todavia, o laudo realizado pela própria Polícia Civil não conseguiu concluir se a bala era realmente do fuzil de algum dos policiais.

Segundo relato de cinco jovens que estavam presentes no momento dos disparos, após um helicóptero sobrevoar a casa, três agentes invadiram a residência atirando, mesmo após os jovens gritarem que havia crianças no local. A versão da Polícia é a de que criminosos tentaram fugir pulando o muro do imóvel e João foi baleado no confronto.

Não bastasse a urgência do debate sobre o racismo no país, Ribeirão Preto, desde 2016, aboliu do calendário oficial do município Dia da Consciência Negra. No mesmo ano, Luana Barbosa dos Reis morreu após uma abordagem policial no bairro Jardim Paiva II, em Ribeirão Preto. 

Segundo testemunhas, Luana levava o filho para um curso quando foi abordada pelos policiais. Ela não teria autorizado a revista e exigiu a presença de uma policial. Nesse momento, teriam se iniciado as agressões, as quais Luana tentou reagir. Os três agentes que participaram da abordagem irão à juri popular.

Casos de violência policial contra pessoas pretas levantam discussões e movimentos contra o racismo

Articulação e desigualdade

Para Fausto Neto, mestre em Saúde Coletiva e idealizador do projeto Lugar de Escuta, a consciência criada pelos movimentos negros estadunidenses, principalmente durante os movimentos dos Direitos Civis, entre os anos 1950 e 1960, tornou o movimento muito mais articulado do que o brasileiro. O que faz com que as respostas dos estadunidenses, sejam mais rápidas e contundentes em relação às brasileiras. 

"A luta durante os anos de 50 e 60, no qual o movimento negro se articulou sob lideranças como Martin Luther king Jr e Malcom X pelos direitos das pessoas negras e para acabar com a segregação são fatores históricos que fazem diferença entre os dois países", explicou.

Ter a consciência de que o racismo está presente na constituição do país e arraigado na cultura é um processo difícil e que muitas pessoas preferem não passar. Durante 338 anos vigou o sistema escravagista no Brasil. Ou seja, durante 65% da história do Brasil, o país teve o racismo legalizado e como prática cultural comum.

Para Michelle Tavares, do movimento RoJune, o mito de que no Brasil existe uma "democracia racial", e que "todos são iguais", esvazia as pautas dos movimentos negros. "Mesmo o racismo sendo crime no Brasil, os atos racistas não são percebidos com clareza pela população", acrescentou.

Para o professor de geografia, Aruan Henri, o mito da democracia racial teve início tão logo foi assinada a Lei Áurea, em 1888, que pôs fim, ao menos legalmente, à escravidão.

"E agora muitos aparecem com a ideia de que 'somos todos iguais'. Não reparamos as desigualdades feitas lá atrás. No fim da escravidão houve um acordo para que não fosse feito um ressarcimento e uma reforma agrária. Com essa reforma, esse povo que foi negligenciado conseguiria produzir seu próprio sustento, a terra era uma das únicas maneiras de se conseguir ascensão social na época", explicou.

O professor comenta que ao se deixar claro as desigualdades presentes no Brasil, se torna menos complexo lidar com as medidas de equidade. 

Para se ter uma ideia, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 54% da população se considera preta ou parda, mas apenas 18% dessa população ocupa a camada da "Classe A" econômica. Por outro lado, 76% dos mais pobres são pretos ou pardos. 

"Hoje é necessário que você trate as pessoas pretas de maneira desigual. Desigual do ponto de vista negativo? Não. Mas do ponto de vista positivo. Para fazer com que essas pessoas tenham acesso a alguns lugares e espaços que elas historicamente não tiveram", acrescenta Henri.

Falta de Consciência

Fausto Neto defende que o engajamento na luta contra o racismo e a violência devam ser pautas de toda a sociedade, não só dos movimentos negros. "Para que façam os governantes reverem suas pautas sobre segurança pública para proteger a população negra que sofre com todas essas desigualdades e para que não sejamos somente números em gráficos estatísticos

Ele argumenta que o dia da Consciência Negra é necessário para reforçar essa luta pela identidade do povo negro. "Reafirmar as raízes culturais e históricas dos nossos antepassados. Ajuda e contribui muito para que a sociedade possa compreender o valor da comunidade negra", conclui Neto.

Henri concorda que as mortes de pessoas pretas viraram meros números e estatísticas nos noticiários e balanços do governo. "Da mesma forma que a gente naturalizou esse processo de violência, a gente precisa desnaturaliza-lo  e naturalizar a visualização de pessoas pretas em lugares de destaque na nossa sociedade", explica. 

O professor argumenta que esse ideário da "igualdade" e da "democracia racial" deve ser desmistificado logo na infância. "Quando falamos 'somos todos iguais' para uma criança, na cabeça dela isso não faz sentido. Ela vê que as pessoas não são iguais, que a coloração e as formas não são iguais. O que precisamos é ter uma valorização dos grupos que sempre foram motivo de chacota, de racismo, de homofobia e de sexismo", finaliza.

Manifestação

Na manhã deste sábado, 6, além de protestarem contra o racismo, grupos que se reuniram na esplanada do Theatro Pedro II também levantaram a bandeira antifascista e algumas pessoas também protestaram contra o governo Jair Bolsonaro (sem partido).

Manifestantes se reuniram na manhã deste sábado, 6, no Centro de Ribeirão, contra o racismo, o facismo e algumas pessoas protestaram contra o governo Jair Bolsonaro


Foto: Luan Porto

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