Tradições em tempos líquidos

Tradições em tempos líquidos

O tempo passa, mas certas tradições se mantêm vivas. Entre elas está a quaresma, período em que católicos e outras comunidades cristãs se dedicam à penitência como preparação para a Páscoa

O tempo passa, mas certas tradições se mantém vivas. Entre elas está a quaresma. O período, em que católicos e outras comunidades cristãs se dedicam à penitência como preparação para a Páscoa. É o caso do escriturário Victor Augusto Mattiuzzo, de 28 anos, que todo ano realiza algum tipo de penitência. “A penitência não precisa ser, necessariamente, uma abstinência alimentar. No ano passado, por exemplo, passei a quaresma sem acessar redes sociais. O propósito é fortalecer a vontade, de modo que aprendamos a controlar os nossos apetites”, defende. Ele afirma que a quaresma é a preparação para a celebração da semana santa, a mais importante do calendário litúrgico da Igreja Católica. “É tempo de conversão, quando procuramos intensificar nossos esforços no objetivo de imitar a Cristo e adquirir a santidade, que é a participação na vida divina. Em linguagem moderna, poderia dizer que é o tempo oportuno para nos tornarmos pessoas melhores, mais generosas, pacientes, temperantes, corajosas ou qualquer que seja a virtude que nos falte. Buscar a santidade, a perfeição ou a excelência no agir é assemelhar-se a Deus, que é fonte de toda virtude”, ressalta. Victor acredita que o período o ajuda a se reconectar com sua religiosidade. “Antes de me converter, eu era indiferente à quaresma. Só o que me interessava eram os ovos de chocolate que vinham no final. Estou convencido de que o melhor jeito de manter uma tradição viva é vivendo-a e ensinando os outros a fazer o mesmo. Celebrar a Páscoa significa dar testemunho de que para tudo dá-se um jeito, até para a morte”, detalha o escriturário, que professa a religião católica ao lado da esposa Jucicléia e do filho Miguel.

O escriturário Victor Augusto Mattiuzzo com a esposa Jucicléia e o filho Miguel: ele diz que a Quaresma é o tempo oportuno para nos tornarmos pessoas melhores

Segundo o padre Igor Fernando Aparecido Madalosso de Lima, vigário paroquial da Catedral Metropolitana de Ribeirão Preto, a Quaresma é o período de 40 dias que antecede a grande solenidade da Páscoa. “Esse tempo é importante porque nos prepara para celebrar a razão da nossa fé cristã: a ressurreição de Jesus. Nesse período, os cristãos, ouvindo a palavra de Deus, são chamados à penitência e à conversão, especialmente por meio de três práticas: esmola, jejum e oração”, detalha. Na semana santa, se intensifica a preparação para a Páscoa, chegando ao seu ápice nas celebrações da paixão, morte e ressurreição de Cristo. “Nessa semana, recordam-se os últimos passos de Jesus neste mundo e são realizadas celebrações para recordar esses ‘últimos’ momentos de Jesus”, enfatiza. De acordo com ele, as penitências da quaresma são importantes porque contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre nossos próprios instintos e a liberdade do coração. “É necessário, contudo, recordar que essas práticas não devem ser reduzidas apenas a atos ou gestos externos; ao contrário, devem levar aqueles que as realizam a redescobrir e reorientar-se para aquilo que é essencial em sua vida e, ao mesmo tempo, o desejo de mudar de vida com a esperança da misericórdia divina”, descreve o vigário.
Padre Igor Lima defende que as penitências são importantes porque contribuem para nos fazer adquirir o domínio sobre nossos próprios instintos e a liberdade do coração
O padre Paulo Henrique Martins, pároco da Paróquia Santa Teresinha Doutora, no bairro da Ribeirânia, argumenta que as penitências devem ser feitas com fé. “São tempos muito fortes que movem os cristãos a voltarem à Igreja para buscar a força necessária para se libertar de algum mal. Religião significa religar, ligar de novo, ou seja, reconectar com Deus”, explica. Para ele, os fiéis buscam as tradições da Quaresma, especialmente os mais jovens, por conta da decepção cada vez maior diante dos fatos mundanos. “O número de jovens que vem reencontrando o sentido da vida com a Igreja tem crescido muito com a pandemia. Não considero uma fuga ou um medo da morte, mas um sentido de Vida, com V maiúsculo. Quando as pessoas entendem o ritual da Igreja, se deslumbram diante da riqueza de sinais e símbolos que falam e mostram a divindade. É fenomenal saber que existe um Deus que ama, independente da sua situação ou pecado, e isso ressignifica a vida”, justifica o padre.

Padre Paulo argumenta que as penitências devem ser feitas com fé e conta que, com a pandemia, os jovens têm buscado mais a igreja

TEMPOS LÍQUIDOS

O professor de Filosofia do Centro Universitário Barão de Mauá e do Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto, Osmair Severino Botelho, explica que vivemos uma “modernidade líquida”, conceito formulado pelo filósofo e sociólogo polonês Zygmunt Bauman. A ideia descreve as relações sociais, políticas e econômicas atuais como sendo são frágeis e em constante mudança. “Para Bauman, a modernidade provocou uma desorganização nas relações humanas em todas as esferas. Pensando nisso, a quaresma – para os católicos em particular – e a Páscoa fazem todo o sentido porque os mantêm unidos e unidos com o sagrado que dá sentido permanente às suas vidas, explica. Segundo o professor, como a vida da maioria da população era, e continua sofrida, há uma identidade pessoal com o sofrimento de Jesus. “Não é por acaso que a celebração que atrai o maior número de católicos é a Sexta-Feira Santa, a crucificação de Jesus, e não a do Sábado da Ressurreição, que é a concretização da divindade de Jesus. A cada estação da Via Dolorosa, o católico se conecta com o sofrimento de Cristo e tem um alento para o seu sofrimento, na esperança de, na Páscoa, ter uma vida nova, assumindo o compromisso de mudança de vida”, exemplifica.

O professor Osmair Severino Botelho comenta que a tradição de presentear amigos e familiares com ovos na Páscoa cristão remonta à Idade MédiaBotelho comenta que a tradição de presentear com ovos na Páscoa cristão remonta à Idade Média. Alguns historiadores acreditam que a tradição é anterior ao cristianismo. “Povos pagãos anglo-saxões tinham uma festa, no início da primavera, dedicada à deusa chamada Ostera ou Eostre (daí os termos Easter, no inglês, e Ostern, no alemão, para a palavra Páscoa), que era retratada com flores em volta dela, com um coelho e um ovo nas mãos. Para atrair esses povos, a Igreja utilizou esses símbolos e os fundiu com as celebrações da Páscoa. Além disso, ovos estão relacionados com nascimento e vida nova, que são muito próximos do sentido da Páscoa cristã de renovação de vida com a ressurreição de Cristo”, esclarece. Ainda segundo o professor, o chocolate entra a partir do século XVIII, com a utilização do cacau por cozinheiros franceses para a criação de ovos de chocolate, que substituíram os ovos de galinha como presentes de Páscoa. Começavam aí os requintes burgueses sobre os símbolos religiosos pascais. “Assim, algo com um sentido religioso foi se tornando mais social e econômico. Hoje, dar ovos de chocolate tem a ver com o sentimento de amizade que une as pessoas. O capital, ao longo dos séculos, se apropriou da cultura social e religiosa em busca de lucros. Aconteceu com Natal, festas juninas e Páscoa o que aconteceu com os dias das mães, dos pais e dos avós”, conclui. 

No entanto, Botelho considera que, para os cristãos, a Páscoa ainda representa um momento de reflexão sobre sua vida a partir do sofrimento e da ressurreição de Cristo, na busca de uma vida renovada. “Agora, do ponto de vista do mercado e do marketing, é um período para aumentar as vendas de chocolate. Para a população em geral, cristãos e não cristãos, a Páscoa é um momento de presentear familiares e amigos e saborear um bom chocolate, que ajuda na produção de endorfina, o hormônio da felicidade. Tudo a ver com esse momento de vida nova, presença e de abraços a familiares e a amigos que é bem característico da Páscoa, momento de felicidade e alegria”, avalia o professor. 


FOTOS: REVIDE, ARQUIVO PESSOAL, MARIANA ROCHA E LUAN PORTO

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