Da Minaz para o mundo
Luis Felipe Sousa em registro para a Le Parisien, no corredor do Palais Garnier, um dos palcos da Grande Scène de Paris

Da Minaz para o mundo

A vida de ex-alunos da Cia. Minaz – celeiro de talentos artísticos em Ribeirão Preto – que conseguiram consolidar uma carreira na música fora do Brasil

Onze anos separam Luis Felipe Sousa de duas realidades opostas de sua vida: em 2014, quando procurou por aulas de canto na Cia. Minaz, em Ribeirão Preto, ele era um adolescente comum que cursava Ensino Médio e integrava um coral de Batatais (SP), sua cidade natal. Hoje, é um experiente cantor de voz baixo-barítono cumprindo sua segunda temporada como artista residente da Academia da Ópera de Paris. Você não leu errado: trata-se da “Opéra National de Paris”, mais antiga (fundada em 1669) e prestigiada companhia de ópera e balé da capital francesa, composta por dois palcos principais – o Palais Garnier (antiga Ópera Garnier) e a Ópera Bastilha –, cujo conjunto é apelidado de Grande Scène.

 

É nesta Grande Cena da ópera mundial que Luis tem cantado na temporada 2024/2025, a convite dos diretores de elenco da Ópera de Paris. “Nem todos os artistas da Academia têm a oportunidade de se apresentar nesses palcos. Tive o privilégio de cantar em três produções apenas neste ano e já estou confirmado para uma nova participação no encerramento da próxima temporada”, conta o orgulhoso filho da região ribeirão-pretana, que nem em seus melhores sonhos imaginou que chegaria tão longe, tão rápido.

 

A explicação está no tempo passado entre o adolescente de 16 anos e o profissional de 27 que ele é hoje. Nesses 11 anos, ocorreu a construção de uma história artística intimamente ligada à Cia. Minaz, de Ribeirão Preto. “Comecei a frequentar regularmente as atividades da Minaz porque queria me aperfeiçoar. Depois de algum tempo de estudo, fui convidado a participar de uma produção que a companhia estava montando”, conta Luis.

 

A ópera era “Acis and Galatea”, de Händel, e o coro era o Madrigal Minaz, mais renomado da companhia e formado por profissionais experientes e graduados que Luis só via, até então, nos espetáculos. “Foi um verdadeiro privilégio! Essa primeira experiência com ópera foi decisiva: ali tive a certeza de que era isso que queria fazer pelo resto da vida”, afirma. Desde então, Luis participou de uma série de concertos com o mesmo coro, interpretando repertório sacro. “Aprendi imensamente com essa vivência”, diz.

 

No ano seguinte, ele organizou-se melhor para as viagens entre Batatais e Ribeirão e passou a integrar também outros corais da companhia, como o Juvenil e o Lírico. Em 2016, aos 18, ele se mudou em definitivo para Ribeirão Preto, para cursar faculdade de Canto e Arte Lírica pelo Departamento de Música da USP. Formado em 2021, no mesmo ano iniciou o mestrado em Música no Instituto de Artes da Unicamp, onde desenvolveu uma pesquisa na área da performance vocal vinculada à Musicologia Histórica. “Obtive meu título de mestre em 2024, já residindo em Paris, onde finalizei a redação da minha dissertação”, conta.

 

Convivendo com estagiários e profissionais de diferentes partes do mundo, Luis diz que nunca sofreu preconceito “de forma violenta ou ultrajante”. “Acredito que, na condição de um homem cis branco, esse tipo de situação acaba sendo atenuado. No entanto, é inegável que um latino-americano precisa trabalhar duas — senão três — vezes mais para conquistar confiança e respeito na Europa”, comenta.

 

Já de conterrâneos, ele recebe reverência, pois todos conhecem a luta que é manter-se nesse ramo, mesmo com todas as oportunidades oferecidas. “Sabe-se que, infelizmente, talento e competência não bastam. É preciso um alinhamento quase astronômico, muita ajuda ao longo do caminho e uma perseverança inabalável”, conclui.

 

Gratidão!

A oportunidade de trabalhar fora do Brasil surgiu graças a um projeto idealizado por dois brasileiros ligados à Ópera de Paris – o maestro e pianista Ramon Theobald e Maria Isabel dos Santos-Nivault, patrocinadora da iniciativa –, criado com o objetivo de viabilizar a ida de jovens cantores brasileiros para audições na Academia daquela instituição. “Uma vez aprovado, o cantor passa a integrar a residência artística da Ópera por duas temporadas, período em que aperfeiçoa suas competências por meio de aulas, coaching e experiências práticas, inserindo-se progressivamente no mercado operístico europeu”, explica o cantor. 

 

Até o contato com Ramon e Isabel foi possível graças à Minaz, já que Luis foi indicado pela soprano Rosana Lamosa e pelo maestro Abel Rocha – amigo pessoal do casal fundador, Gisele e Ivo, e parceiro em vários projetos –, ambos professores da Unesp (Universidade Estadual Paulista) que o conheceram por meio da companhia. Aprovado em 2023, Luis tem participado desde então do programa de estágio artístico, pelo qual é remunerado e tem a oportunidade de aperfeiçoar suas habilidades com professores e profissionais de altíssimo nível.

 

Por tudo isso, a gratidão de Luis pela Minaz não tem limites. Ele afirma que a companhia foi um grande laboratório artístico, onde experimentou diferentes repertórios, fez aulas com professores e maestros de renome internacional, workshops de teatro e, acima de tudo, cantou. “Cantei muito! E não há forma melhor de se aperfeiçoar do que essa”, diz. Luis conta, ainda, que desde o primeiro espetáculo já recebia cachês pelas apresentações com a Minaz. Além disso, atuou como monitor nos corais dos quais fazia parte, apoiando, no aspecto vocal, colegas que não tinham formação musical.

 

“Costumo dizer que a companhia é o meu lar na música. Tudo aquilo que a palavra ‘lar’ representa — acolhimento, pertencimento, construção — encontrei lá. Mais do que isso, a Minaz foi a minha base, minha formação, meu desabrochar. Através dela me encontrei e encontrei também pessoas, caminhos e sonhos”, declara.

 

Confiante, Luis já faz planos de futuro. “Pretendo seguir desbravando a Europa como cantor lírico, construindo uma trajetória sólida e encontrando oportunidades que me permitam permanecer artisticamente ativo por aqui. Ao mesmo tempo, não posso negar meu lado acadêmico e de pesquisador — um projeto que, no momento, está em pausa, mas que tenho grande vontade de retomar no futuro”, afirma. Diz refletir também sobre formas de contribuir com seu país, especialmente o interior de São Paulo, onde nasceu e se formou músico. “Desejo, de alguma maneira, colaborar com a difusão da ópera e com a formação de novos talentos, ajudando a abrir caminhos como os que se abriram para mim.”

 

PROFESSOR NA ÁUSTRIA, CANTOR NO MUNDO TODO

Outros “minazes” antes de Luis Sousa conseguiram se colocar profissionalmente no mundo da Música fora do Brasil.

Fernando Araujo (foto à direita) foi um dos primeiros a dar continuidade em outro país ao aprendizado iniciado na Minaz. Nascido em São Paulo, aos 11 anos mudou-se para Jaboticabal com os pais. Aos 12, ingressou na então Companhia de Ópera Minaz – a diversificação das produções derrubou o “Ópera” do nome. Em uma audição para o papel do Terceiro Gênio de “A Flauta Mágica”, de Mozart, foi escolhido para cantar em uma apresentação do espetáculo em Campinas. A partir de então, passou a participar de masterclasses da Minaz, como cantor e como pianista acompanhador.

 

Com 16 anos, Fernando foi morar na cidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, onde cursou os últimos dois anos de High School (equivalente ao Ensino Médio) e prosseguiu com seus estudos de canto e piano, também participando como solista em óperas e musicais com companhias locais. Ingressou na Indiana University, de Bloomington (EUA), onde conquistou Bacharelados em Canto e em Piano. Em seguida, transferiu os estudos para a Universidade Mozarteum, de Salzburg (Áustria). “Muito jovem e ainda durante os estudos, fui selecionado para ser preparador vocal no nosso departamento de Ópera. Terminei o Mestrado em Canto e logo tive a oportunidade de expandir minha carreira profissional como barítono com várias companhias internacionais”, conta.

 

E Fernando não parou mais de colaborar com grandes artistas, diretores e maestros em vários países. Em julho de 2025, por exemplo, cantará o papel de Lescaut, na montagem de ‘Manon Lescaut’, de Puccini, em um festival de renome na Alemanha. Hoje, ele vive em Salzburg, dividindo seu tempo entre o trabalho como preparador vocal e professor no Departamento de Ópera da Universidade Mozarteum, e suas atividades como barítono em vários países. Diz que aprende muito trabalhando com austríacos e alemães, principalmente sobre pontualidade e a disciplina, mas não esquece a importância “inimaginável” da Minaz em sua vida e na vida musical do Brasil.

 

“O início desta viagem foi a Cia. Minaz – a Gisele e o Ivo, aos quais sou muito grato por terem acreditado e reconhecido meu talento desde o início”, reconhece Fernando, que, como Luis Felipe, nunca deixou de participar de apresentações com a companhia quando vem de férias ou visita ao Brasil. “A Minaz torna a Ópera acessível a todos, exatamente como os grandes gênios da música a conceberam”, elogia. 

 

Entre os planos para o futuro de Fernando está continuar aperfeiçoando sua técnica vocal e de atuação, mergulhar mais profundamente na psicologia de certos personagens de Ópera que o acompanham e cantá-los em boa companhia, trazendo grandes emoções ao público e dividindo o fruto dessas grandes experiências no palco com seus alunos e as futuras gerações. “Não esquecendo: cantar com a Minaz de novo o mais breve possível.”

 

CORALISTA NA ALEMANHA

Lilian Giovanini (foto) tinha 16 anos quando ingressou no Coral Juvenil da Minaz, em 2006, e 26 quando mudou-se de malas e partituras para a Alemanha, para morar e trabalhar com música. Levava na bagagem dez anos de experiência em corais da companhia e em incontáveis espetáculos, muitas vezes como solista; o mesmo tempo de aulas individuais de Técnica Vocal com Alexandre Galante, hoje coordenador de canto na companhia; e o diploma de bacharel em Música pela USP Ribeirão Preto.

 

A chance de ir para o exterior surgiu graças a competições de canto das quais participava Brasil afora. Em uma delas, ouviu falarem sobre uma audição em São Paulo para escolher integrantes de um coro internacional. Inscreveu-se para a primeira audição de sua vida e foi selecionada para passar o verão europeu em uma academia de canto ao norte da Alemanha. Participou de outras audições, emendando uma temporada a outra em diferentes academias de canto daquele país. Em uma delas, conheceu a professora que viria a ser sua orientadora no mestrado em Performance pela Hochschule für Musik und Theater (Universidade de Música e Teatro) Felix Mendelssohn Bartholdy, que fez de 2016 a 2019, em Leipzig.

 

De 2019 até o final da temporada 2022/2023, Lilian foi contratada como coralista e solista do coro fixo do Stadttheater Bremerhaven (Teatro da Cidade de Bremerhaven) e, no início de 2023, já tinha emprego garantido para a temporada 2023/2024 no grande teatro Staatsoper Hamburg (Ópera Estatal de Hamburgo), onde está até hoje.

 

Lilian se diz feliz e realizada com sua carreira por lá, que conseguiu manter mesmo durante a pandemia de coronavírus. “Antes disso, eu estava muito focada em audicionar para novas possibilidades como solista. Depois, entendi que daria para continuar na carreira sendo feliz cantando, mesmo em coros, mas mantenho pequenos solos na companhia e em espetáculos fora”, conta.

 

Para o futuro, sonha com projetos no Brasil, onde espera ser reconhecida um dia, além de continuar levando sua carreira de solista em paralelo com a de coralista, em qualquer lugar do mundo onde estiver.

 

Professor nos Estados Unidos

Filho do “casal Minaz” Gisele Ganade e Ivo D’Acol, Mítia Ganade D’Acol (foto à direita) também está fazendo carreira como professor de Música, só que em faculdades dos Estados Unidos. Ele se mudou para lá em 2014, após conquistar uma Bolsa de Estágio e Pesquisa no Exterior, da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Tudo começou em seu terceiro ano de faculdade, quando viajou, em junho de 2008, a Nova Iorque, para participar de um congresso sobre ensino de História da Música organizado pela College Music Society e realizado na Julliard School of Music. “Eu me lembro claramente de como fiquei impressionado tanto pela qualidade quanto pela dedicação que os professores tinham por seu ofício”, lembra.

 

Quando surgiu a oportunidade, Mítia candidatou-se para um período de estudos no exterior. “Eu me encontrava entre duas opções: fortalecer os meus laços com pesquisadores lusófonos em Portugal ou estudar com o professor Robert Gjerdingen, criador da Teoria de Análise Musical, que estava usando em meu mestrado na Bienen School of Music da Northwestern University. Acabei escolhendo a segunda opção.

 

Seu período de seis meses na Northwestern, em Chicago, foi fundamental para duas decisões sobre seus estudos: primeiro, “percebi que me interessava mais por teoria da música do que por história, por isso gostaria de trocar meu campo de pesquisa; segundo, eu realmente gostava mais das aulas do sistema universitário americano, além da ideia de dar aulas a alunos da graduação durante meus estudos de pós”.

 

Mítia iniciou novo mestrado, desta vez em Teoria da Música, em 2017, na Jacobs School of Music, da Indiana University. Por lá ficou para fazer também seu doutorado, iniciado em 2019 e que pretende terminar no próximo ano letivo. Como professor, começou a atuar já no primeiro ano de mestrado. “Os alunos de pós em Teoria da Música da Jacobs dão aulas de teoria para alunos da graduação. Durante meu mestrado, também trabalhei como Associate Instructor (instrutor associado) dando aulas para duas sessões com até 15 alunos e ajudando o professor da matéria com correções de provas e tarefas. Continuei atuando como assistente tanto em teoria como em percepção musical e, por todo o ano de 2021, fui o instrutor da matéria de Percepção Musical II. A última matéria que lecionei foi uma aula de solfejo para alunos de pós-graduação, em 2023”, narra.

 

Paralelamente, Mítia ainda trabalhou como coralista no Conductor’s Chorus (corais montados para apresentações dos alunos de pós-graduação em regência coral) e em um coral de uma das igrejas metodistas de Bloomington. Em julho deste ano, ele inicia novo contrato de um ano como professor visitante na Oberlin College, no estado de Ohio. “Darei aulas de teoria e percepção musicais para alunos do conservatório de música dessa escola de artes liberais. Meu plano no momento é conseguir uma vaga em uma universidade dos EUA, de preferência em uma das universidades públicas estaduais com foco em pesquisa e educação”, conclui.

 

Ele garante que nunca foi vítima de preconceitos por ser latino. Muito pelo contrário. “As universidades com grandes populações de alunos internacionais tendem a ser muito receptivas a essa população. Meus colegas e professores sempre foram muito curiosos em relação ao sistema de ensino universitário brasileiro, assim como às teorias da música e ao repertório que estudamos no Brasil”, conta.

 

Ele lembra de uma vez em que o chefe do seu departamento tomou conhecimento dos materiais de ensino de rítmica do professor José Eduardo Gramani e lhe perguntou se os conhecia. “Ele ficou surpreso ao saber que não só nós usamos o livro “Rítmica”, nas aulas de percepção (por sua complexidade até para alunos de pós-graduação), como eu tinha a primeira edição do livro com dedicatória do autor assinada alguns meses antes de eu nascer” graceja. Gramani foi, simplesmente, padrinho de casamento de seus pais.


Olivier Arandel Anne Doublet, para o Le Parisien Week End

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