Há exatos 50 anos era decretado o Ato Institucional 5
Tortura sofrida por madre Maurina é um dos acontecimentos mais emblemáticos do regime militar em Ribeirão Preto

Há exatos 50 anos era decretado o Ato Institucional 5

Ribeirãopretanos comentam sobre um dos períodos mais controversos da história brasileira

Dentre as várias fotos, quadros, lembranças e recortes amarelados que Saulo Gomes guarda dos seus tempos de jornalistas – que não foram poucos, são quase 60 anos de profissão –, uma delas chama a atenção. No meio de retratos de homens tensos e de militares com expressões impenetráveis, surge um grupo de cinco homens lendo jornais despretensiosamente em um jardim. Estaria a foto no álbum errado?

Da legenda da foto veio a resposta: “Exilados no pátio da embaixada uruguaia - Rio de Janeiro”. Os homens na foto foram as primeiras vítimas da censura da ditadura militar brasileira. Estavam presos naquele prédio até segunda ordem. Se saíssem, seriam presos pelos militares. Ou pior.

Há exatos 50 anos, o general Artur da Costa e Silva decretava o Ato Institucional Número 5. Com o ato, o presidente decretou o "recesso" do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas, até segunda ordem. Também ficaram determinadas a suspensão de direitos políticos e de habeas corpus, proibição de manifestação de natureza política, supressão do direito de ir e vir, entre outros.

Apesar de ficar conhecida como “Ditadura Militar”, especialistas apontam que o termo correto seria “Ditadura civil-militar”, já que uma parcela da sociedade apoiou o golpe. Desde 1961, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES), criado por grandes empresários da época, mobilizava a classe média brasileira.

Com uma forte oposição ao presidente Jango e ideias anticomunistas, o grupo ficou conhecido, na época, pelo ativismo. Um dos feitos mais lembrados foi a participação ativa no protesto conhecido como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, em 19 de março de 1964. Este, evidentemente, não foi o único movimento “popular” a apoiar os militares, todavia, foi um dos mais notáveis.

Foto dos exilados na embaixada uruguaia

Jornalismo combativo

Aos 90 anos,  jornalista, escritor e presidente da Associação Brasileira dos Anistiados Políticos (Abap), Saulo Gomes esbanja lucidez invejável. Ele relembra que estava no Rio de Janeiro no momento da tomada militar. “O golpe de 1964 foi um rescaldo do que aconteceu em 1961, quando três ministros militares tentaram impedir a posse de João, por considerarem ele de esquerda. No início de março de 1964, começam os rumores de que estaria em gestação um golpe militar, que se efetivou no dia 31 daquele mês”, conta.

Gomes era jornalista na Rádio Mayrink Veiga e transmitiu ao vivo um momento chave naquela última semana de março. “A Associação dos Marinheiros iniciou um movimento de apoio ao presidente [Jango], mas este apoio, em verdade, veio em troca de algumas reivindicações. Uma delas era o direito do soldado raso ao voto. Entretanto, havia uma pressão dos grandes comandos dos militares que já conspiravam contra isso. Entendiam que, se João permitisse alguma daquelas solicitações aos marinheiros, isso enfraqueceria as forças armadas”, conta o jornalista.

Apesar dos protestos, no fim das contas as tropas do exército invadiram o prédio da rádio. Com a tensão aumentando cada vez mais e o risco de que tiros fossem disparados contra os jornalistas, o movimento foi engolido pela repressão. “Alguns de nós conseguiram fugir, vários foram presos, metralharam todo nosso equipamento e eu consegui fugir e pedir asilo na embaixada do Uruguai”, diz.

A mestre em história política e coordenadora geral dos cursos de pós-graduação da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), Lilian Rosa de Oliveira Rosa, respalda o depoimento do jornalista. “O Departamento de Censura Federal era implacável e atingiu todos os setores, mas os mais fiscalizados eram jornalistas, artistas e professores. A imprensa, tanto nacional quanto local, ficou de mãos atadas e não podia divulgar nada que fosse contra o regime. Até os jornais estudantis eram fiscalizados. Um bom exemplo foi o que houve com o jornal Diário da Manhã, que, no dia seguinte ao golpe, foi impedido de circular por meses”, explica a especialista.

De acordo com análise da professora Lilian Rosa, Ribeirão Preto não ficou atrás de grandes cidades da época com relação à censura.  Segundo ela, os líderes de movimentos sociais e políticos da região de Ribeirão Preto eram monitorados de perto pela Deops (Delegacia Estadual de Ordem Política e Social).

“Aliás, desde o início da década de 1920, quando foi criado originalmente o DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), Ribeirão Preto estava na pauta de investigações. Isto se justifica pelo fato de o município apresentar grupos operários organizados desde esse período, como é o caso da União Geral dos Trabalhadores (UGT). Antes do golpe, a situação já estava tensa. Não há notícias de movimentos de resistência de grande porte. Contudo, a UGT foi fechada logo no primeiro dia do golpe”, comenta.

A coragem da inocência

Um fato marcante nos 21 anos do regime militar em Ribeirão Preto foi o caso da madre Maurina. Este evento foi responsável pela cisão entre parte da Igreja Católica, que até então apoiava a ditadura, e os militares.

Após estes acontecimentos, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tomou outro posicionamento em relação ao governo e a figura de Dom Paulo Evaristo Arns surgiu como grande líder religioso, dos direitos humanos e políticos.

A madre franciscana Maurina Borges da Silveira, com 43 anos na época, era a diretora do orfanato Lar Santana, na Vila Tibério, foi presa, torturada e exilada sob a acusação de pertencer a uma organização guerrilheira.

Segundo o livro “A Coragem da Inocência”, escrito pelo irmão da madre, frei Manoel Borges da Silveira, e organizado pelos jornalistas Saulo gomes e Moacyr Castro, as suspeitas se basearam no fato de a madre ter permitido que um membro das Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN), Mario Lorenzato, fizesse reuniões de estudantes em sua instituição religiosa.

A madre, que não sabia do teor das reuniões e que quando tomou ciência resolveu dissolver a célula, foi presa pela Polícia Militar em Ribeirão Preto e, depois, transferida para o Departamento de Ordem Política e Social (Dops), em São Paulo.

Durante os cinco meses em que ficou detida, Maurina foi torturada constantemente. Os registros foram feitos em várias cartas que ela enviou às autoridades da época e também em entrevistas concedidas anos depois.

“O caso de Madre Maurina é importante para refletirmos sobre como a quebra do regime democrático pode criar situações de extremo constrangimento e desrespeito aos direitos civis, atingindo, inclusive, pessoas que não estão envolvidas com política, diretamente, como era o caso dela”, afirma Lilian Rosa.

A história da madre torturada pelos militares está no livro "A Coragem da Inocência"

Memórias distintas

Apesar do consenso da maioria dos historiadores sobre o golpe de estado articulado em 64, de modo que, foi derrubado um governo eleito democraticamente para se estabelecer um regime de exceção, há quem discorde. A reportagem do Portal Revide entrou em contato com a filial ribeirãopretana do grupo Direita São Paulo. Em nota oficial, o grupo afirma que não houve um golpe em 1964, mas, sim, um "contragolpe".

No texto, o Direita SP afirma que havia uma grande movimentação comunista antes de 1964 que visava uma ditadura do proletariado, “com militantes sendo treinados em Cuba, Coreia e China", declara.

Ainda de acordo com o grupo, um dos aspectos positivos do período militar foi “ter evitado a morte de milhares ou milhões de pessoas por motivos ideológicos, a exemplo da União Soviética, Cuba, Coreia do Norte, China, Vietnã, Polônia, Ucrânia e tantos outros países que tentaram implantar à força uma sociedade moldada. Um outro aspecto que poderia ser mencionado é a segurança daquela época", pontua o Direita SP.

Por fim, o grupo que afirma ser pautado pela defesa da moral judaico-cristã, a filosofia clássica, o estado democrático de direito, o livre mercado, as liberdades individuais, crítica a atuação da Comissão da Verdade. Segundo eles, o nome mais apropriado seria “meias-verdades”.

“Fala-se bastante da parte dos militares, dos crimes cometidos por estes, mas nenhum esforço em relatar o outro lado da história, aquele no qual os revolucionários assaltavam bancos e promoviam atentados a bomba, totalizando mais de cem mortes até onde pôde ser contabilizado. Não se trata, jamais, de defesa dos excessos cometidos, mas de defesa da verdade real quanto ao período e que todos os culpados sejam computados”, finaliza.

Por outro lado, a professora de história Lilian Rosa e o jornalista Saulo Gomes são contrários à volta da ditadura. A professora argumenta que parte da simpatia que algumas pessoas têm pelo regime se dá, justamente, pela censura realizada pelos militares.

“Quantas pessoas sabem, de fato, o que houve durante a ditadura? Afinal, a imprensa foi calada. A falta de informação gerou uma situação desconcertante de falta de conhecimento. Se não conhecemos, não conseguimos ter empatia e muito menos mensurar a profundidade do que houve“, questiona Lilian.

Para o advogado e membro da Comissão da Verdade de Ribeirão Preto, Anderson Polverel, quem pede pela volta do regime desconhece como é ser cassado por ele. Segundo o advogado, muitas pessoas já nasceram dentro do período democrático “e não fazem ideia das atrocidades cometidas”.

“Simplesmente não sabem o que significava a proibição de manifestação, de liberdade de opinião. Não o fazem porque sequer conseguem imaginar nos dias atuais a possibilidade de ser impedido de manifestar seu pensamento, como, por exemplo, dar uma simples opinião nas redes sociais”, conclui Polverel.

 

Sob supervisão de Marina Aranha.


Fotos: EBC / Acervo Saulo Gomes

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