Discurso e prática

Discurso e prática

Especialista em educação, a professora Clarice Sumi Kawasaki tem um posicionamento crítico em relação à forma como a Base Nacional Comum Curricular foi elaborada

*Entrevista publicada na edição 1100 da revista Revide.

Para a professora Clarice Sumi Kawasaki, a implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e do novo ensino médio possuem dois campos distintos: o do discurso e o da prática. A educadora avalia que, na prática, as mudanças propostas não atacam os problemas basilares da educação. Pelo contrário. As novas diretrizes pouco alteram os currículos tradicionais aplicados há anos.

De acordo com a professora, a mudanças podem abrir brechas para uma instrumentalização do ensino público no país e uma aproximação “perigosa” com a iniciativa privada. Sumi acredita que, no ensino particular, as mudanças também não serão tão significativas. A maioria dessas escolas já possui uma estrutura robusta e oferece diversas atividades extracurriculares, além do foco nas aprovações em vestibulares. A professora ataca um esvaziamento da função do professor, bem como a falta de diálogo com a comunidade acadêmica, pais e alunos na elaboração das novas regras.

Clarice Sumi Kawasaki é professora da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras de Ribeirão Preto (FFCL-RP) da Universidade de São Paulo (USP). É bióloga de formação, mas dedicou o mestrado e o doutorado ao estudo da educação. Atualmente trabalha na formação de professores de biologia e também de professores de ciências no curso de pedagogia. 

Quais mudanças você destacaria como as mais importantes na implantação da BNCC em 2021?

Ninguém é contra uma base curricular, em princípio. Os professores são favoráveis a ter uma base que unifique nacionalmente o currículo. Só que a BNCC não é uma base, é um padrão que oferece uma métrica que interessa ao governo e o setor privado. Na prática, acredito que tenha mudado muito pouco. Afinal, as diretrizes da primeira parte [da BNCC], que são as diretrizes e pressupostos educacionais, são muito parecidos com aqueles que já estão nos parâmetros curriculares nacionais.

Porém, essas diretrizes ficam apenas no plano do discurso. Já a segunda parte do documento, com os conteúdos programáticos, e que esses são cobrados nos exames nacionais, apresentam uma forma de estruturação e de organização que em nada difere do ensino tradicional. Fora que muitos temas foram excluídos desse currículo. Na minha área, por exemplo, ficaram de fora educação sexual, questões de gênero, a teoria da evolução entre outros.

Do ponto de vista político, a BNCC alinhou todas as políticas públicas em educação no país com uma única tacada. Um alinhamento que, certamente, não conduz a uma melhoria na educação, na formação de professores e de alunos críticos, mas que municiam e instrumentalizam a gestão privada do ensino público. E o novo ensino médio veio para consolidar tudo isso. Ao colocar claramente que o ensino médio é voltado para o mercado de trabalho e a formação técnica e profissionalizante do aluno, reforça o que afirmei. 

Existem pontos que considera “falhos” no projeto?

Olha que curioso: embora seja voltado para a profissionalização, o novo ensino médio propõe uma escola em tempo integral que não contempla o aluno trabalhador. Ao contrário, expulsa esse aluno da escola pública. E, por lei, o ensino médio não é técnico-profissionalizante. As escolas passariam a ter 3 mil horas anuais para colocar em prática a BNCC. Sendo 1,8 mil horas destinadas aos conteúdos escolares, aquele conteúdo padronizado, que seriam cobrados nos exames nacionais.

Esse conteúdo segue sendo aplicado por professores com formação na área. Os outros 40%, as 1,2 mil horas, estariam voltadas para aqueles aspectos regionais, para o crescimento pessoal do aluno. Disciplinas como projetos de vida, tudo muito vago. Mas quem iria aplicar essas disciplinas? Que professor estaria preparado para se aventurar em dar uma aula de crescimento pessoal do aluno? A escola tem outra finalidade que certamente não e a autoajuda. 

Colocar sob a responsabilidade do aluno escolher qual área do conhecimento ele pretende se aprofundar no primeiro ano é uma medida acertada?

É uma sacanagem colocar essa responsabilidade toda nas costas do aluno. Uma proposta em que a propaganda vende uma coisa e a realidade é outra. Fora que a propaganda que aparece na TV e nas redes sociais é linda. Um monte de alunos felizes montando seu próprio currículo. Propaganda enganosa! Pois foi mantida a mesma estrutura, logística, investimento nas escolas além da mesma formação de professores. E o pior de tudo, sem ouvir as escolas, os professores, os alunos e os pais. De cima para baixo. Cadê a gestão democrática da escola pública garantida por lei?  

Escolas particulares já exibem currículos e metodologias de ensino adequadas às novas regras. A implantação do “novo ensino médio” pode aumentar a desigualdade entre o ensino público e o privado?

As escolas privadas vão continuar como sempre foram, muito pouco irá mudar. Vão continuar com a finalidade de serem pré-vestibulares, enquanto que as escolas públicas devem manter a sua finalidade de uma formação mais geral e básica para o exercício da cidadania e a autonomia intelectual do aluno.

Essas escolas pré-vestibulares já adotam os conteúdos programáticos que irão cair nos vestibulares, com a vantagem de trazerem os macetes da prova. Assim, as escolas privadas já estão direcionadas de certo modo para essa proposta de currículo e o “novo ensino médio”. Enquanto à desigualdade entre o ensino privado e o público, vamos recolocar essa frase, mas falando da desigualdade entre alunos das escolas públicas e de alunos das escolas privadas, que sempre existiu, mas por outros fatores e não esse. 

Da forma como foi proposto, entende que o Novo Ensino Médio auxilia na formação acadêmica, profissional e cidadã dos alunos ou foca apenas na demanda do mercado?

O novo ensino médio não vem para contribuir para uma formação acadêmica, profissional e cidadã e nem para o mercado de trabalho. Pois, embora isso tudo esteja no discurso de ambos, na estrutura e no funcionamento da rede escolar não há nenhum investimento nesse sentido. A não ser pequenas reformas aqui e acolá, o custo é zero. E não existe custo zero para uma proposta que vise a tudo o que está nesse discurso. Não é só estrutura física, mas sobretudo investimento em recursos humanos. Na verdade, o que a gente vê no novo ensino médio e na BNCC, é uma proposta que disfarça uma ausência do estado.

Quais são as principais carências que a senhora sente dos alunos que ingressam no primeiro semestre do ensino superior?

Recebo alunos da escola pública e da escola privada e todos eles vem treinados para as provas de vestibular. Contudo, não queria falar das carências, mas das minhas expectativas. Queria muito que esses alunos viessem com a formação pretendida na escola pública. A formação geral e básica para o exercício crítico cidadania e para a autonomia intelectual do aluno. Uma postura de abertura para o conhecimento universal e plural. Que os prepare para participarem do grande debate que teremos que travar diante de tantas questões emergentes e urgentes, como a pandemia e outras que virão, a emergência climática e o modo de vida e consumo no nosso planeta. 

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Foto: Luan Porto

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