Educação à prova
Alunos do primeiro ano do ensino médio poderão escolher áreas especificas para aprofundamento nos estudos

Educação à prova

Novo ensino médio propõe maior autonomia do aluno e uma formação ampla, além dos muros da escola

*Matéria publicada na edição 1100 da revista Revide.

O início do ano letivo em 2022 marcou o retorno presencial dos alunos às escolas, mas também a implantação do “novo ensino médio” em todo o país. Criado por uma medida provisória em 2016, transformada em lei federal em 2017, o novo ensino médio propõe uma reforma no ensino.

Entre as principais mudanças estão o aumento da carga horária e a inclusão das matérias optativas nas quais os alunos poderão se aprofundar em áreas como linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas. Neste ano, as mudanças valerão apenas para o primeiro ano do ensino médio. Em 2023, passarão para o segundo ano e, em 2024, estarão implantadas em todo o ensino médio, tanto da rede pública quanto da privada.

Com o novo modelo, espera-se que parte das aulas seja semelhante a todos os estudantes do país, regidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A ideia é formar alunos preparados para a vida, com conhecimentos acadêmicos, sociais e voltados para o mercado de trabalho. Uma formação ampla ao invés de uma voltada somente para fazer mais pontos no vestibular. 

Para que essa reforma funcione, será necessário vencer alguns obstáculos já conhecidos da educação brasileira. Diminuir a desigualdade entre o ensino público e o privado é um deles. Enquanto as escolas particulares discutem formas de implantar e aprimorar o novo sistema, escolas públicas se questionam como conseguirão seguir as novas diretrizes. O risco é que a BNCC não seja tão “comum” assim. Há o risco de que algumas regiões do país possuam alguns itinerários de aulas e outras não.

Outro desafio dos gestores será a avaliação dos alunos. O Enem, por exemplo, precisará ser adaptado para avaliar o novo currículo. A professora da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCL-RP) da USP e especialista em educação, Elaine Assolini, alerta que, enquanto o ensino privado vem investindo há tempos em tecnologias e currículos atualizados, a escola pública ainda se prende a currículos tradicionais. “Precisamos de políticas públicas e curriculares que pensem no aluno pobre, na sua história, no seu modo de viver, pensar, sentir e interpretar”, destaca a professora.

Construção coletiva

Para os alunos do ensino médio da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) de Ribeirão Preto, as atividades extracurriculares não serão uma novidade. Neste semestre, o colégio oferece 59 disciplinas que compõem os itinerários formativos, conforme exige a BNCC. Matemática financeira, investimentos e bolsa de valores, iniciação médica, biotecnologia, podcast histórico, geopolítica e escrita criativa são alguns exemplos.

Para a aplicação de todas as disciplinas extracurriculares, a FAAP oferece laboratório, salas multimídia e a estrutura necessária para o aprendizado dos jovens. “Cada estudante poderá montar uma parte de seu currículo a partir de seus próprios interesses. A grande vantagem desse modelo é respeitar as individualidades e proporcionar novas experiências significativas de aprendizado, ligadas às áreas de maior interesse de cada aluno e antenadas com as transformações que vivemos no mundo contemporâneo”, explica Gustavo Bueno, professor de história e coordenador pedagógico na FAPP.

De acordo com o professor de física e coordenador pedagógico Franco Giagio, toda a equipe de professores, coordenação e direção do colégio, esteve envolvida na construção do projeto para o novo ensino médio na FAAP. Desde a elaboração de novas disciplinas até a produção de material didático. “Foi uma construção coletiva, assim como quase tudo que produzimos por aqui. A Fundação nos ofereceu total apoio técnico e financeiro para que aquilo que foi planejado já estivesse disponível aos alunos desde a primeira semana letiva”, conta. 

O empenho na criação desse currículo irá impactar diretamente na produtividade do aluno no ensino superior. Segundo o professor, a responsabilidade dos jovens em escolher um curso universitário antes de completar a maioridade é uma das causas do grande número de desistências nas universidades, inclusive nas mais concorridas do país.

“Uma das grandes vantagens do novo ensino médio, e particularmente do nosso modelo no Colégio FAAP, é criar a possiblidade de experimentação em diversas áreas do conhecimento e atuações profissionais antes desse momento de escolha de carreira. Outro grande ponto positivo do novo modelo é proporcionar o desenvolvimento de habilidades fundamentais para a vida profissional, as chamadas soft skills, como liderança, capacidade de trabalho em grupo, oratória e resiliência”, ressalta Giagio.

Gustavo Bueno e Franco Giagio

Autonomia do aluno

Para Eduardo Gula Sobrinho, diretor pedagógico do Colégio Einstein de Ribeirão Preto, o aluno ter o direito de se aprofundar nos conteúdos de maior interesse, de acordo com seu projeto de vida, é um dos principais pontos positivos do novo ensino médio. A autonomia dos alunos se tornou a palavra de ordem entre os educadores.

“Nosso projeto pedagógico contempla plenamente a nova BNCC, principalmente por trabalhar atividades que permitem aprender a aprender e expandir aprendizagem nas áreas de maior interesse, além de ofertar atividades complementares que tornam a escola opcionalmente integral. Desenvolver habilidades e aplicar conhecimento é o nosso foco”, comenta Gula. Segundo o coordenador, desde que o jovem seja bem orientado, se desenvolva nas diferentes áreas e aprofunde-se nas de maior interesse, terá condições de adquirir mais habilidades que serão diferenciais no seu futuro.

Essa autonomia do aluno passa pela elaboração do “projeto de vida”, conforme delimita a BNCC. Será por meio desse projeto que os alunos, tanto do ensino público quanto particular, deverão traçar planos de estudos para serem capazes de escolher o itinerário formativo que mais se adequam à sua realidade e competências. Esse planejamento, contudo, não diz respeito apenas à jornada acadêmica do jovem. A partir do projeto de vida, a escola também trabalhará o desenvolvimento do autoconhecimento do estudante, de sua formação cidadã, ética, além da autoconfiança e resiliência. 

Para Elaine Assolini, o projeto de vida merece um destaque. Segundo a especialista, ele pode ser trabalhado de forma transversal, oferecendo possibilidades para que diferentes temas relacionados à vida, à história e à formação do educando sejam abordados e desenvolvidos.

“É fundamental que os projetos de vida ofereçam espaços para a subjetividade do educando, para que possam falar de si. Outro ponto que defendo é o que diz respeito à autoria. Os jovens brasileiros têm o direito de aprenderem a ser autores de seu próprio dizer. Os projetos de vida podem ensinar aos jovens que não podemos prever o futuro, mas, isto sim, construir um presente cada vez melhor”, explana a educadora. 

Competências para o futuro

Renata Giordano, diretora da Conexia Educação, responsável pelo atendimento às escolas SEB, também frisa a importância do projeto de vida na consolidação da autonomia do aluno. “Além disso, com as mudanças, a escola, enquanto instituição, se aproxima do jovem do século XXI, estimulando-o na busca do conhecimento e dando-lhe apoio nessa fase tão importante que é a da escolha de carreira. O aluno poder exercer sua capacidade de escolha ajuda a desenvolver nele o protagonismo e a maturidade para compreender sua responsabilidade na condução de sua própria vida”, acrescenta. 

No SEB, cada itinerário formativo é composto por micro cursos ligados a temáticas importantes para auxiliar o adolescente na escolha da trajetória que pretende seguir ao concluir o ensino médio. Em 2022, dentre as opções para os alunos do primeiro ano, os microcursos oferecidos compõem os itinerários: ‘Criação de Startup’, ‘Cidadão do Mundo’ e ‘Saúde e Inovação’.

Renata Giordano e Eduardo Gula

“Com isso, damos a oportunidade ao jovem de se conectar com a complexidade do mundo atual. Além de estimular nele o desenvolvimento de competências importantes para o profissional do século XXI, abrangendo não só as chamadas competências cognitivas, como também as competências socioemocionais, tão relevantes para a inserção no mercado de trabalho em que vivemos”, destaca Renata.

Segundo a diretora, o SEB dispõe de uma equipe de profissionais e especialistas que estão sempre se atualizando para revisar e reavaliar práticas e metodologias, de forma que as escolas do grupo se mantenham sempre alinhadas não só à legislação, mas ao que às demandas da sociedade.

“Em um mundo cada vez mais instável, não-linear e complexo, em que profissões estão sendo extintas e outras surgem e surgirão ainda com mais frequência ao longo das próximas décadas, se torna cada vez mais importante que o jovem esteja preparado para criar oportunidades que o façam ser bem-sucedido não só do ponto de vista profissional, mas em sua vida como um todo e, para isso, quanto mais acesso ele tiver a possibilidades que o auxiliem a construir seu projeto de vida, mais apto ele estará para poder fazer suas escolhas”, avalia Renata. 

Desafios do ensino público

Há um consenso entre os educadores e especialistas ouvidos para esta matéria de que o novo ensino médio vem sendo bem implantado nas escolas particulares. Muitas delas, já ofereciam modelos parecidos, focando na autonomia do aluno, antes mesmo da obrigatoriedade pela nova lei. Todavia, a realidade das escolas públicas é diferente. O ensino médio na rede pública é de responsabilidade do governo estadual. Em Ribeirão Preto, são 75 escolas estaduais que deverão implantar o novo sistema.

Segundo a professora Marcela Aleixo, dirigente regional de ensino de Ribeirão Preto, o novo currículo apresenta uma maneira inovadora de se estudar. “Ao oferecer oportunidade aos estudantes em escolher itinerários formativos centrados nas quatro áreas do conhecimento, estamos oferecendo uma personalização do currículo, valorizando a autonomia e a liberdade do processo de aprendizagem que envolve o estudante. O novo currículo é mais flexível atraente e está alinhado com o projeto de vida do estudante”, comenta a dirigente. 

O novo modelo vem sendo testado desde 2020 na rede estadual. A partir de 2021, contudo, o novo ensino médio passou a ser obrigatório. Para Marcela, o balanço dessa experiência foi positivo. “No ano passado, todos os 436 mil estudantes da primeira série da rede de ensino estadual, além de toda a formação comum, puderam escolher os aprofundamentos para 2022, conforme interesse individual. As aulas de projeto de vida foram fundamentais”, avalia a dirigente.Escolas preparam conteúdos de aprofundamento que serão oferecidos aos alunos

Contudo, as novas regras passaram a valer justamente no primeiro ano da pandemia. Um estudo realizado pelo UNICEF constatou que, em 2020, cerca de 1 milhão de estudantes, entre 6 e 17 anos, abandonaram a escola, o que representa 3,8%. O índice é superior ao de 2019, quando 2% de todos os alunos abandonavam a escola. Os dados deixam claro que a pandemia foi um dos fatores preponderantes para esse agravamento da situação, o que deixa evidente que o ensino público ainda tem um longo caminho a percorrer e diferenças significativas com o ensino privado. 

Professores de escolas públicas ouvidos pela reportagem analisam com apreensão as novas regras. Por um lado, é importante que o aluno detenha as ferramentas de uma educação libertadora. Que ele tenha autonomia para escolher e adequar o conhecimento acadêmico a sua realidade material. Contudo, os educadores questionam: sob quais bases os alunos poderão fazer essas escolhas? Ao longo de toda a vida escolar, esses alunos receberam a educação e o amparo necessário para tomarem uma decisão tão importante?

Elaine Assolini pondera que uma parcela privilegiada de estudantes contará com orientações, palestras, oficinas, apoio dos pais, professores, e equipe escolar de maneira geral. “Para essa camada diferenciada, sempre haverá possibilidades de escolhas. Se a primeira escolha não responder aos seus questionamentos, não desencadeará uma exclusão social, marginalização do mercado de trabalho, por exemplo. Haverá novas condições, aberturas e oportunidades. A exclusão poderá aumentar, pois, para essa população a escola é a principal instituição para aquisição de conhecimentos legitimados socialmente, é o lugar onde poderá construir sua identidade, e preparar-se profissionalmente”, analisa a professora. 

O que muda

Área do conhecimento
As disciplinas serão divididas em quatro áreas do conhecimento, assim como no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
• Ciências da Natureza e suas Tecnologias;
• Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
• Linguagens e suas Tecnologias;
• Matemática e suas Tecnologias.

O aluno deverá escolher uma área de aprofundamento.  A mudança não irá excluir nenhuma matéria, apenas irá alterar a frequência com a qual o aluno lida com ela. Apenas duas disciplinas seguirão inalteradas em todo o ensino médio: língua portuguesa e matemática.

Itinerários Formativos
O aluno deverá escolher disciplinas específicas dentro das quatro áreas de conhecimento ou da “Formação técnica e profissional”. Cada escola terá matérias específicas para ofertar nessas áreas, como educação financeira, política, saúde, sustentabilidade, tecnologia etc.

Aumento da carga horária
A carga horária no ensino médio passará de 800 para 1 mil horas anuais, passando de quatro para cinco horas diárias. As áreas do conhecimento devam ocupar cerca 60% do tempo previsto para a grade e os itinerários formativos os outros 40%.

Projeto de vida
O projeto de vida já era previsto na BNCC. A novidade é que ele será obrigatório. Para tornar o ensino mais atrativo e personalizado, o projeto de vida surge como uma ferramenta para orientar os alunos na escolha dos itinerários formativos e, de maneira geral, nos objetivos para a vida após o ensino médio.

Novos professores
Como será inclusa a área de “formação profissional e técnica”, será permitida a atuação de professores com notório saber na área específica para ministrar os conteúdos do itinerário formativo. Ou seja, professores sem ensino superior. 

Interdisciplinaridade
Os professores também poderão elaborar conteúdos que unam duas ou mais áreas de conhecimento para as aulas de uma mesma disciplina.


Fotos: Revide

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