Empresário que venceu vício cria projeto para acolher dependentes em Ribeirão Preto

Empresário que venceu vício cria projeto para acolher dependentes em Ribeirão Preto

Ricardo Tostes, fundador da OSC Mudando Vidas, mantém casas de apoio para mulheres, crianças e indígenas warao, e denuncia gargalos na assistência social da cidade

Ricardo Rogério Tostes fez fortuna na hotelaria, mas gastou muito sustentando a própria dependência química. “Dinheiro pode ser bom, mas no meu caso foi ruim, porque enquanto tinha gente que queria guardar meio milhão, eu queria torrar meio milhão bebendo e usando drogas”, admite, limpo há mais de 10 anos.

 

Ao perceber que não conseguia mais se manter funcional, buscou ajuda em uma comunidade terapêutica, onde teve um “despertar espiritual” para ajudar outros dependentes. Viu a falta de um “porto seguro” para quem sai limpo e criou uma Casa Apoio, que logo expandiu o acolhimento.

 

Hoje, Ricardo preside a OSC (Organização da Sociedade Civil) Mudando Vidas, que mantém uma Casa de Acolhimento do Gênero Feminino e seus filhos de até 18 anos, e administra outra que abriga 17 famílias de indígenas warao, chegados a Ribeirão Preto em 2021 em situação de extrema vulnerabilidade. Nesta entrevista, ele fala sobre o trabalho e os gargalos da assistência social na cidade.

 

 

Como começou a OSC Mudando Vidas?

O Mudando Vidas está completando 11 anos e começou comigo, por causa do meu uso de álcool e drogas, que durou 25 anos. Em 2014, quando vi que estava disfuncional, me internei numa comunidade terapêutica. Nos seis meses lá, criei vínculo com pessoas em situação de rua. Na época, não havia para onde ir depois da internação: passado o prazo, as comunidades devolviam as pessoas para a Praça Schimidt, ao lado da Rodoviária de Ribeirão Preto. Esse é um gargalo: se quem sai limpo volta para a rua, acaba voltando ao uso. Eu via isso acontecer. Muitos iam embora antes de terminar o tratamento, por falta de esperança. Perguntava o motivo e ouvi: “Vou terminar o tratamento de seis meses para quê, se depois vou voltar para as ruas?”. Tive um despertar espiritual e, um mês antes de sair, montei uma Casa Apoio para acolher essas pessoas. Passei a atuar no fim da cadeia de acolhimento, oferecendo um porto seguro para as pessoas se prepararem para serem reinseridas em suas famílias, sem a cobrança de ter um trabalho imediatamente, o que é difícil e causa frustração, levando a pessoa a recair.

 

Como conseguiu suporte financeiro inicial?

Eu tinha um certo recurso porque trabalhava com médicos, indicando casas no entorno da Fatesa (Faculdade de Tecnologia em Saúde), escola de ultrassonografia à rua Casemiro de Abreu. Médicos do Brasil todo vinham para cá [estudar na Fatesa]. O dono da escola, dr. Francisco Mauad, pessoa de um coração sem igual e justa, comprava as casas que eu indicava e me emprestava o dinheiro para reformá-las. Eu fazia quartos com banheiro para alugar aos médicos que vinham para os cursos e, em poucos meses, eu devolvia o dinheiro emprestado para a reforma. Cheguei a ter 60 quartos.

 

Que perfis de pessoas passou a acolher na Casa Apoio?

No começo, apenas as pessoas que saíam das comunidades terapêuticas desde que tivessem terminado o tratamento de seis meses. Depois de uns três anos, passei também a trabalhar com a pessoa que quer sair da rua. E há uma regra da dependência química 100% real: se a pessoa levantar a mão [quando se pergunta quem quer sair da rua] é a hora que tem que acolher. Porque muitos estão em negação. Se são de família, falam que param quando quiserem, mas isso é mentira. Se não acolher na hora em que a pessoa levanta a mão, no outro dia ela fala que está melhor, trabalha uma semaninha, mas depois fica ruim de novo. Com o tempo, comecei a fechar parceria com outras OSCs e a gente fazia uma grande ação social todo mês, na Praça Schimidt ou na praça da Catedral.

 

Como eram essas ações?

Tinha a OSC que servia café da manhã com bolo; a do Banho Solidário, com equipe cortando cabelo, fazendo unhas e oferecendo roupas; outra servia comida na mesa, para dar dignidade; e até músico tocando. Fizemos isso por uns três, quatro anos. Toda vez eu voltava com o carro cheio de gente para a Casa Apoio, com a condição de entrarem no programa “Recomeço”, que durava 30 dias, e de irem para uma comunidade terapêutica. Na época, fechamos parceria com o Ministério Público e aprendi muito sobre política pública. Fazíamos a diferença, mostrando a importância do serviço de acolhimento no município. Redesenhamos o fluxo burocrático: documentos que levavam dias, fazíamos em um dia; o que demorava três meses, virou um mês. Na última ação, levei seis pessoas num domingo e, na segunda, já estavam acolhidas. Depois veio a pandemia e parou tudo.

 

E hoje, você tem ideia de quanto tempo se gasta com burocracia para fazer esses acolhimentos?

 Hoje leva cerca de três meses. É o maior gargalo na assistência social do município. Por exemplo: a pessoa precisa fazer um exame geral para ter um laudo médico que comprove que não tem doença infecciosa — depois da covid isso ficou ainda mais rígido. Para conseguir esse exame é uma novela: vai a um posto, é encaminhado para outro, leva documento, espera vaga. Dependendo do número de internados, pode demorar de 5 a 30 dias. Quando a vaga sai, expira em um dia. Se não achamos a pessoa — que, em situação de rua, não para em um lugar — perdemos a vaga e tudo recomeça. Chega uma hora em que a pessoa desiste.

 

Quais são os trabalhos prestados especificamente pela Mudando Vidas, que você preside?

Hoje, o Mudando Vidas tem a Casa de Acolhimento do Gênero Feminino, no Jardim Paiva. Temos 13 mulheres lá, duas delas mães com dois filhos cada. Contamos com coordenador, assistente social, pedagoga, psicóloga e educadores sociais em todos os turnos, trabalhando em escala. Se um vai à UPA com uma assistida, outro cobre. Os indígenas warao, da Venezuela, foram acolhidos pela Rede Emancipa, com a qual temos vínculo há cinco anos, graças à psicóloga Helen Morenghi, que toda semana vai realizar palestras e rodas de conversa na Casa Apoio. Ela e outras OSCs fizeram mobilizações voluntárias para que o primeiro setor [poderes públicos] tomasse providências para que fossem acolhidos, conseguindo um imóvel para receber as 17 famílias – de uma antiga escola. Eu entrei depois, com militância por condições mais dignas de acolhimento, que conseguimos com atuação de um promotor público. Só há cerca de um ano o Mudando Vidas assumiu o projeto com os warao.

 

Nesse trabalho, vocês contam com quanto de colaboração da Prefeitura?

Nosso repasse para a Casa Apoio é muito pequeno vai e quase todo para o RH. Há dez anos faço milagres para garantir cinco refeições por dia, porque recebo muitas doações. Digo que é Deus na causa: nunca comprei um grão de arroz desde que fundei a Casa, em 2014. Quando os alimentos acabam, faço três ligações e o estoque enche de novo. Para os warao, a verba também é baixa, porque somos tipificados como projeto, mas o ideal seria sermos de acolhimento, o que aumentaria o repasse. Perdemos R$ 100 mil por falta dessa tipificação. Hoje, só temos cinco funcionários para 72 pessoas. Não recebemos verba para complementar a alimentação: cada família ganha uma cesta básica por mês, que vem sem proteína, e algumas delas têm 12 pessoas – acaba rápido. Por isso, eles acabam fazendo coleta nas ruas. Mas, com o artesanato que eles produzem e vendem, essa mendicância está diminuindo. Todo mês levamos o trabalho deles para vender em algum lugar.

 

O que falta para vocês conseguirem a tipificação como serviço de acolhimento?

A Secretaria Municipal de Assistência Social atender a nosso pedido, já feito por meio de ofício. Ou seja, falta eles quererem. Mas eu sou muito da esperança e estou vendo boa fé nesta administração. O secretário Júlio Balieiro tem sido solícito com a gente. Falo com ele três vezes por semana.

 


Foto: Revide

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