Rearticulação global
Mestre e doutor em História, o professor Felipe Ziotti Narita analisa o conflito entre a Rússia e a Ucrânia

Rearticulação global

Segundo o professor e pesquisador Felipe Ziotti Narita, conflito entre Rússia e Ucrânia possui relação histórica com o colapso da União Soviética, em 1991, e deve rearticular o xadrez internacional

Entrevista publicada na edição 1102 da revista Revide.

Na madrugada do dia 24 de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia, dias após o presidente Vladimir Putin reconhecer a independência de Luhansk e Donetsk, províncias ucranianas controladas por separatistas. O conflito deu início a uma crise diplomática e militar com repercussões na comunidade internacional.

O professor Felipe Ziotti Narita, mestre e doutor em História, com pós-doutorado na USP e na UFSCar, Pró-Reitor de Pós-Graduação e Investigação Científica do Centro Universitário Barão de Mauá e pesquisador na área de políticas públicas da UNESP, contextualiza os aspectos históricos do conflito e como a geopolítica pode ser afetada, rearticulando o cenário internacional.

Quais aspectos históricos são importantes para compreendermos o contexto em que o conflito entre Rússia e Ucrânia se desenvolve atualmente?

É importante entender a situação da região após o colapso da União Soviética, em 1991, e a natureza dos novos giros ideológicos no mundo pós-socialista. A Rússia perdeu o espaço estratégico soviético, assistindo ao avanço das instituições ocidentais como a União Europeia e a OTAN sobre antigas repúblicas soviéticas e sobre países do bloco socialista, como Polônia, Romênia, Hungria e Bulgária.

Após as dificuldades econômicas dos anos 1990, Putin conseguiu estabilizar a economia e organizar as forças armadas, de modo que a Rússia rearticulou certo protagonismo global. Nesse contexto foram realizadas ações militares na Georgia, em 2008, e na Ucrânia, com a anexação da Crimeia e a defesa da base russa em Sebastopol em 2014, além de expressivos exercícios militares no Báltico e em Belarus entre 2009 e 2017 e do papel decisivo na guerra da Síria em 2015.

No caso ucraniano, como antiga república soviética tornada independente em 1991, além das dificuldades administrativas dos governos, expressas nos graves problemas econômicos e nas instabilidades políticas de 2004 e 2014, trata-se de um país cingido entre os interesses russos e o avanço da globalização, liderada pelos países ricos do ocidente, combinando economia de mercado e democracia liberal.

Como é a relação política e social entre os países envolvidos?

Há vínculos bastante estreitos entre os países, tendo em vista o idioma e a presença de russos étnicos, sobretudo, nas regiões de Donetsk, Luhansk e Carcóvia. Especialmente após o fim da União Soviética, contudo, o nacionalismo ucraniano, como parte do florescimento de diversos movimentos nacionalistas até então contidos dentro do controle soviético, realçou alguns conflitos culturais com a Rússia.

Por exemplo, o escritor Nikolai Gogol, um dos principais autores do século XIX, nasceu em uma cidade atualmente ucraniana, tendo escrito obras em russo. Os ucranianos, embora conheçam russo, fizeram questão de traduzir Gogol para o ucraniano. As relações entre os países ficaram complicadas após os Protestos da Praça Maidan de 2014, na Ucrânia, que derrubaram o governo de Yanukovytch, tendo sido sucedidos por políticas de alinhamento com o ocidente.

Fachada da embaixada da Ucrânia em Brasília. Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil

Quais podem ser considerados eventos que foram o estopim do conflito?

O avanço da OTAN pelo leste europeu, sujeitando a Rússia sempre a uma posição subalterna em relação aos EUA; a incitação dos separatistas russos do leste da Ucrânia, movimento apoiado por Moscou nas regiões rebeldes a Kiev desde 2014; e o fracasso dos acordos de Minsk, assinados entre 2014 e 2015 e apoiados pela França e pela Alemanha.

No limite, os principais países fiadores e instituições da ordem europeia do pós-guerra, no pós 1945, foram incapazes de evitar um novo conflito também emergente dentro do antigo espaço socialista, como as guerras civis na antiga Iugoslávia, nos anos 1990, e os conflitos em Kosovo. Além disso, a atual guerra abala a ordem pós-Guerra Fria, instituída a partir de 1989, uma vez que a invasão desrespeita o direito de autodeterminação de um país.

Como você avalia que podem ser as consequências desta campanha militar para a geopolítica global de forma geral?

A curto prazo, destaco a tática de insurgência ucraniana, tendo em vista a superioridade das forças russas. Do lado russo, parece uma tática de desestabilização do governo de Zelensky e de qualquer aproximação entre Ucrânia, União Europeia e OTAN. Vale também observar qual será a real capacidade das forças russas em combate e durante a ocupação das regiões. A médio prazo, há dois grandes problemas, a saber, a violação de fronteiras de um Estado soberano e a inabilidade das potências ocidentais para lidar com os movimentos russos.

A rearticulação do xadrez internacional será significativa, já que há diversos fatores econômicos envolvidos como, por exemplo, a dependência europeia em relação ao gás russo e a solidez da parceria estratégica entre Rússia e China, que pode ser importante no caso das sanções mais pesadas contra Putin. Na Rússia, o governo vem enfrentando, há alguns anos, o avanço da oposição que, aliás, tomou as ruas em São Petersburgo contra a guerra e esse será um problema para o futuro do governo Putin. Há também a questão dos refugiados ucranianos na União Europeia, onde o tema da imigração tem sido central nas discussões políticas.

Como historicamente o governo brasileiro atua neste tipo de situação e o como seria uma boa forma do Brasil se posicionar diante do conflito?

O Brasil não está no epicentro dos eventos e não é uma potência global, ou seja, não precisa se envolver de modo tão assertivo. Trata-se de uma posição muito diferente dos países diretamente envolvidos e das potências, como EUA, França, China, Reino Unido ou Alemanha. Isso pode ser bom para o país, na medida em que, em função da nossa posição periférica, temos mais tempo para ponderar os cenários – especialmente as consequências econômicas. É preciso ponderar, por exemplo, os interesses do Brasil junto aos BRICS. Por isso, o melhor caminho é a prudência. O Itamaraty pode apoiar a evacuação dos cidadãos e condenar a violência, sobretudo, tratando-se de uma deliberada violação de soberania. 

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Foto: Arquivo Revide

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