Campos Elíseos: gigante invisível

Campos Elíseos: gigante invisível

De "depósito do indesejado" a maior e mais populoso bairro de Ribeirão Preto, o Campos Elíseos inspira saudosismo

Quase uma cidade dentro da cidade, afinal, em tamanho e população, chega a ser maior do que muitas cidades brasileiras, o Campos Elíseos é um dos mais antigos e tradicionais bairros de Ribeirão Preto.

 

Autônomo, possui hospitais, bancos, escolas, universidade, supermercados e uma forte referência em termos de comércio e serviços: a Avenida Saudade e seus arredores. Começou com imigrantes, já acostumados com a vida urbana.

 

Talvez por isso tenha se consolidado um bairro empreendedor e se tornado um gigante, mesmo tendo seu nascimento associado ao que não se queria visível no Centro, como o cemitério, por exemplo, e sendo, ainda hoje, tão pouco valorizado histórica e culturalmente.


Com 45.546 moradores, sendo 48,02% de homens e 44,31% de mulheres, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE/Censo 2010) —, o Campos Elíseos compreende uma área total de 6.291.545,11m² — 6,29 km —, delimitada pelas avenidas Dr. Francisco Junqueira, Meira Júnior, Via Norte, Guido Golfeto e pelo Córrego do Tanquinho, segundo a Prefeitura de Ribeirão Preto. Engloba Vila América, Vila Lapa, Vila Zaneti | Parque São José, Vila Gertrudes, Vila Cel. Quito Junqueira e Vila Tamandaré.

 

E um detalhe interessante sobre sua topografia: quase a metade de sua área — distribuída em 146 ruas e avenidas —, corresponde a travessas. Ao todo, são 58, com os mais distintos nomes de gente, cidade, estado e até de santa. 

 


O bairro das travessas — são 58 ao todo —; segundo moradores, cria-se nestas ruas estreitas um ambiente mais seguro e familiar para se viver


Além disso, o bairro reúne algumas peculiaridades, como o Cemitério da Saudade, o mais antigo da cidade, o Bosque Municipal Fábio Barreto, que embora seja Jardim São Bento acaba encampado por ele, a primeira unidade do Centro Universitário Moura Lacerda, uma das mais respeitadas instituições de ensino da região e do país, a Santa Casa de Misericórdia e a imponente Igreja de Santo Antônio de Pádua, erguida em função do enorme número de imigrantes italianos na região e elevada, em 2019, à Basílica Menor, pelo Papa Francisco.

 

“Quando eu era criança, frequentei muito a missa ali com meus avós. Foi onde fiz catequese e crisma. Na época, era dirigida por Dom Hipólito, um padre já bem velhinho, que falava com sotaque italiano e tinha um coração muito bom. Lembro que ele pegava seu fusca e ia nas casas dos fiéis que não conseguiam mais ir à missa por estarem acamados ou algo do tipo. A encenação da Paixão de Cristo é algo que me marca muito até hoje. E, claro, a Festa Junina e a distribuição do pão bento de Santo Antônio, no dia 13 de junho. Recordo que a fila para pegar o pão rodava o quarteirão e meu avô (já falecido) dizia que era para pôr um pedaço do pão na lata de arroz para sempre ter fartura”, conta a historiadora e professora Juliana Dominato moradora do bairro.

 


Os primeiros atendimentos na Santa Casa de Misericórdia (criada em 1896) foram realizados num casarão simples.

 

Trechos da história


Diferente do Centro (formado em terras doadas à igreja) e da Vila Tibério (consolidada pelo fracionamento da Fazenda Monte Alegre), o Campos Elíseos nasceu a partir do loteamento do Núcleo Colonial Antônio Prado, criado pelo governo, em 1887, para receber imigrantes. Este antigo núcleo colonial deu origem também ao Ipiranga, Sumarezinho e outros bairros da zona norte e leste da cidade. O Campos Elíseos corresponde à Terceira Sessão deste loteamento (veja o mapa), conhecida, à época, como Barracão de Baixo.

 

 

Considerando que o Cemitério da Saudade foi inaugurado em 30 de setembro de 1893 e que a Estação Barracão — uma das primeiras a serem construídas na região, oficialmente inaugurada em 1900 —, já existia desde 1892, segundo a urbanista Adriana Capretz Borges da Silva Manhas, provavelmente como um estribo simples para o desembarque de colonos que seguiam para o Barracão, um galpão próximo, que abrigava os imigrantes que chegavam à cidade, pode-se dizer que o atual bairro Campos Elíseos, que também foi chamado de Retiro, começou a se formar no final do século XIX, principalmente como uma alternativa para afastar do Centro da cidade serviços de saúde considerados “indesejáveis”.


Em sua dissertação de mestrado, Adriana descreve que as seções localizadas próximas ao núcleo urbano principal (atual Centro) — a Sede e a Terceira Seção —, foram sendo ocupadas antes das demais, e, mesmo não contando com serviços de infraestrutura urbana, passaram a abrigar equipamentos de saúde como o cemitério, que foi construído no lote número 16 da Terceira Seção e o “leprosário” ou “lazareto”, como era chamado o Hospital de Isolamento de Leprosos, inaugurado em 1897, juntamente com um Cemitério dos Leprosos e Variolosos, no lote 24 da Segunda Seção. 


Próximo à Sede e Terceira Seção do Núcleo Colonial Antônio Prado também foi escolhido um terreno para a instalação, em 1903, do Matadouro Público (removido das margens do Córrego Retiro, onde funcionava desde 1874). A nova localização considerava a proximidade com o ribeirão Preto, onde os detritos eram jogados, e a estrada de ferro, por onde chegavam os bois e era feita a circulação dos produtos.

 

“Por fim, hospitais, hospícios, asilos, orfanatos e demais equipamentos de saúde e instituições de ordenamento da cidade passaram a se localizar na área do Núcleo Colonial Antônio Prado, tanto pela distância da área central, quanto pelos preços dos terrenos, que eram adquiridos por meio de desapropriações ou doações por parte de entidades beneficentes. [...] A área correspondente a esta seção, juntamente com o Retiro, denominação do bairro já existente às margens do córrego Retiro antes do Núcleo, era chamada ‘Barracão de Baixo’ [atual Campos Elíseos], para distinguir do ‘Barracão’ (de Cima) [atual Ipiranga], que correspondia à área da Sede, próxima à linha da Mogiana”, explica Adriana em sua tese. 

 

Mercado imobiliário


Corretora de imóveis e subdelegada do CRECI São Paulo, Sandra Maria dos Santos Queiroz tem uma relação forte com o Campos Elíseos, onde morou por muitos anos. Passou pelas travessas Icaraí, São Jorge e São Roque e também pelas ruas Luiz Barretos e Conde Francisco Matarazzo.

 

“É muito bom e seguro morar em travessa. Cria-se um ambiente como se fossem todos da sua família e, por ser uma rua mais estreita, o vizinho acaba cuidando da sua casa na sua ausência”, conta. Com mais de 20 anos vivendo na região, Sandra conhece bem o mercado imobiliário por ali e diz que as perspectivas são ótimas, já que o bairro possui faculdade, muitas empresas e poucos edifícios, sendo carente de apartamentos tipo flat e um dormitório para estudantes e jovens empreendedores.

 


“Há muitos moradores que criaram raízes e não saem do bairro por ser independente, com comércio forte e diversificado”, avalia Sandra Queiroz 

 

“Por ser um bairro antigo, o m² varia de R$ 1.500,00 a R$ 3.500,00. A parte mais nobre e procurada fica acima da avenida Saudade e também na Vila Tamandaré. Há muitos moradores que criaram raízes e não saem do bairro por ser independente, com comércio forte e diversificado. Atendo muitos clientes de fora da cidade em busca de imóveis de menor valor para estudantes, funcionários de empresas e mesmo empresários querendo um ponto de apoio no bairro por custo/benefício”, explica a corretora. 

 


Coordenador de vendas da Construtora FRJR, Denis Frias destaca a tradição, a proximidade com o Centro, vários acessos e a força comercial do bairro como pontos que levaram a empresa de Belo Horizonte a escolher o Campos Elíseos para seu segundo empreendimento em Ribeirão Preto — o Parque do Sol Marechal —, que será construído ao lado do Tenda Atacado, próximo à antiga Cianê/Matarazzo, e deve ser lançado no segundo semestre de 2023.

 


“Há um sentimento de ‘meu bairro’ muito forte, que temos que respeitar, e que foi levado em conta na concepção do Parque do Sol Marechal”, explica Denis Frias

 

“Será um empreendimento de torres de apartamentos com 15 andares, lazer totalmente diferente do visto na cidade, apartamentos com plantas de 3 e 2 dormitórios com suíte e opções de varanda gourmet com churrasqueira e sacada tradicional. Estudamos a paixão dos moradores pelo bairro e entendemos que nossos clientes serão os filhos dos moradores mais antigos, pois há um sentimento de ‘meu bairro’ muito forte, que temos que respeitar e que foi levado em conta na concepção do projeto”, conclui. 

 

Cemitério da Saudade


Inaugurado no dia 30 de setembro de 1893, o Cemitério da Saudade foi o 4º da cidade — primeiro secularizado e fora dos limites do Centro. Localizado no quadrilátero formado pela avenida da Saudade e ruas Flavio Uchoa, Luiz Barreto e Fernão Salles, conta com uma área de 110.000 m² onde foram sepultadas 137.678 pessoas até 24/10/2022 — em 7.604 jazigos e 2.622 gavetas ossarias.

 

 

Provavelmente a ele se deva o nome atual do bairro, Campos Elíseos, em referência ao lugar onde, segundo a mitologia grega, homens virtuosos repousavam dignamente após a morte. A arte funerária presente no Cemitério da Saudade, segundo a pesquisadora Maria Elizia Borges, retrata a produção padronizada, inspirada nos modelos registrados nos manuais especializados da Europa e efetuada em marmorarias locais, muito característica dos cemitérios no interior do país.

 

Entre 1983 e 1988 ocorreram várias demolições de túmulos antigos de grande valor artístico. Em 1986 dois túmulos foram tombados pela Secretaria da Cultura Municipal, através do Decreto nº 067/86. Atualmente muitos trabalhos artísticos encontram-se em estado de abandono. (Fonte: Arte Funerária Brasil)

 

Ciane-Matarazzo: um capitulo à parte


O fácil acesso entre o Centro da cidade e as estações ferroviárias levou muitos imigrantes a se instalarem no Núcleo Colonial Antônio Prado. O auge de crescimento do bairro, segundo Juliana Dominato, foi na década de 1945, em função da instalação da fábrica de tecidos — o complexo industrial Matarazzo, que funcionou de 1945 a 1981, seguido pela Cianê (Companhia Nacional de Estamparia), que chegou a empregar cerca de 5 mil pessoas até sua falência e fechamento, em 1994.

 

“Praticamente todos da minha família trabalharam ali, minha tia, meu tio, a esposa do meu tio e meu pai. Minha tia avó, Ebe, trabalhou toda a sua vida ali. Foram mais de 30 anos. A fábrica foi seu primeiro e único emprego, até se aposentar”, conta a historiadora.

 


A história da antiga Cianê/Matarazzo se confunde com a da família de Juliana Dominato: “Praticamente todos trabalharam ali”, conta


Às margens da Avenida Marechal Costa e Silva, o local que um dia sediou as Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo (IRFM) encontra-se abandonado. Mesmo tombado em 2010 como patrimônio histórico, o terreno de 39,4 mil m² sofreu tanto vandalismo e degradação, inclusive um incêndio em 2011, que, do projeto original do engenheiro civil Mário Calore, só restam ruínas. 

 

A Prefeitura estudava a instalação da Faculdade de Tecnologia (Fatec) de Ribeirão Preto no local, mas o Governo do Estado acabou optando pela Vila Virgínia.

 

 

 

Em julho de 2014, a Prefeitura de Ribeirão Preto anunciou a doação do terreno, avaliado em R$ 17.811.906.15, para a implantação de uma unidade do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), que ofereceria cursos gratuitos de nível Médio, Técnico e Superior e formação anual para 1,2 mil alunos. Em fevereiro de 2022, no entanto, a doação foi desfeita, por descumprimento da lei que estipulava prazo de quatro anos para o início das atividades.

 

O destino do local segue “em análise” pela secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Urbano. Do outro lado da avenida, em frente à enorme entrada por onde um dia passaram tantos trabalhadores do bairro, permanecem intactas as casas para operários construídas também na década de 1950, demonstrando que onde há uso, há preservação. 

 


• Confira mais sobre os Campos Elíseos e outros bairros de Ribeirão Preto na editoria "Nosso bairro, nossa história".


Fotos: Revide/Divulgação/Acervo

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