Senhora do destino

Senhora do destino

Para a presidente da Fundação do Livro e Leitura, com um livro nas mãos, qualquer criança pode aprender, sonhar e ter a chance, assim como ela teve, de construir um futuro diferente

Dulce Maria das Neves nasceu em 26 de setembro de 1969, na Comunidade Anta Gorda, no município de Nova Aurora, no Paraná. Filha dos agricultores Luiz Batista das Neves e Ana Maria das Neves, ela se mudou para Ribeirão Preto aos 27 anos e, há cinco anos, preside a Fundação do Livro e Leitura. Mãe de três filhos, Tâmisa e Estêvão, do seu primeiro casamento, e Abranche Filho, do atual casamento com Abranche Fuad Abdo, a jornalista pontua a importância que o livro e a leitura tiveram em sua trajetória de vida. Seu pai morreu vítima de um câncer de intestino aos 34 anos. Deixou sua mãe viúva, aos 28 anos, com seis filhos pequenos. Ela tinha dois anos e seu irmão caçula estava completando um ano no dia da morte dele. “Cresci com a referência forte da minha mãe, a mulher mais firme e cheia de fé que conheço na vida. Mesmo nunca tendo frequentado os bancos escolares, ela reconhecia o poder da Educação na vida dos filhos. Lembro dela nos dizendo para aprender a ler e a escrever, porque não queria que tivéssemos a mesma vida dura que levávamos quando éramos crianças. De fato, ela tinha e tem razão, saber ler e escrever faz a diferença na vida de qualquer pessoa”, diz Dulce.

 

Histórias da infância

 


Morando em uma cidade pequena, sem acesso a qualquer lazer que não fosse ofertado pela natureza, Dulce teve uma infância ao ar livre e recorda com saudade dos passeios para brincar no rio Melissa. “Mesmo não sabendo nadar [até hoje], achava fantástico. Lembro dos pés de amora espalhados pelas ruas, cheios de frutinhas doces que comíamos direto do pé e que, muitas vezes, manchavam nossas roupas, criando um problemão com minha mãe, porque tínhamos apenas a roupa de ir à missa, o uniforme escolar, que eu dividia com minha irmã mais velha — ela usava de manhã e eu a tarde —, e algumas roupinhas usadas, que ganhávamos. Não tínhamos asfalto nas ruas, luz elétrica e água encanada. Tomávamos banho de água de poço, muitas vezes fria, em chuveiros de balde. Estudávamos com luz de lamparina ou lampião e brincávamos nas enxurradas quando chovia. Uma doce lembrança era quando minha mãe fazia bolinho de chuva. Também recordo do cheiro de terra molhada quando a chuva vinha mansa. Na minha infância, as brincadeiras eram na rua, ao ar livre, não corríamos perigo e sempre era possível olhar o céu estrelado, as diferentes fases da Lua. Ainda hoje, fico encantada com o espetáculo do nascer e do pôr do sol todos os dias e penso o quão isso é maravilhoso”, enfatiza.

 


Como não podiam comprar livros, Dulce e os irmãos os liam na pequena biblioteca da cidade ou levavam para casa. “Lembro de ter ficado encantada, aos sete anos, quando ganhei um livro pop up da ‘Bela e a Fera’. O vestido amarelo dela pulou maravilhoso aos meus olhos e me fez viajar em meus sonhos de menina para o mundo encantado das princesas. Para uma criança pobre, sem acesso à Cultura e lazer, o livro é uma luz brilhante de conhecimento, imaginação e esperança, um tesouro inestimável que pode mudar sua trajetória de vida. Ao abrir as portas da imaginação, o livro inspira a nos tornarmos autores de nossa própria história. Eu nunca me esqueci a emoção que senti. No meu universo infantil e adolescente, o sonho exerceu um papel gigantesco na construção da pessoa que sou. Foi o sonho que me trouxe até aqui e vai me levar adiante sempre”, afirma Dulce.

 


Da infância simples e difícil ao atual papel que desempenha na área da Cultura em Ribeirão Preto, foram muitas conquistas. A própria graduação em Comunicação, na Unaerp, em 1998, chegou na vida adulta. “Não tive a famosa vida universitária. Já era casada e minha filha mais velha, Tâmisa, nasceu junto com meu diploma. Sempre gostei de me comunicar com as pessoas, de me conectar, e escolhi a área por acreditar que o Jornalismo desempenha um papel crucial na promoção da transparência, da responsabilidade e da justiça social”, revela.

 

 

A Cultura como destino

 


Estudante de escolas públicas na infância e adolescência, Dulce reconhece a importância da democratização do acesso às inúmeras formas de Cultura e, em sua trajetória, conta com passagens marcantes por grandes projetos nesta área. Ela foi presidente da Comissão dos Festejos de Aniversário de Ribeirão Preto, de 2009 a 2012, e, também, presidente da Fundação D. Pedro II, entre 2012 e 2016, sendo responsável pela gestão do terceiro maior teatro de ópera do país, onde atuou intensamente para transformar o Theatro Pedro II em um grande fomentador de cultura. 

 


Organizadora do livro e documentário “Memórias de um Theatro: o fio da história”, que apresenta memórias de pessoas que se relacionaram com o Theatro Pedro II ao longo de sua história, Dulce também idealizou a produção da Ópera “O Morcego”, de J.Strauss e o primeiro livro infanto-juvenil sobre o Theatro, intitulado “Pedro II - a história de um Homem e um tHeatro com agá maiúsculo”, com autoria de Alexandre Azevedo e ilustrações de Cordeiro de Sá. “Foi na minha gestão que descobrimos que o teatro pertencia ao Estado e não ao município e iniciamos uma longa campanha — “O Pedro II é nosso!” —, em que, com o apoio da imprensa e do setor cultural, finalmente conseguimos a cessão do prédio ao município pelo governador Geraldo Alckmin. Sinto muita alegria em ter conquistado este patrimônio para a cidade”, afirma. 

 


Em 2016, também assumiu como Secretária de Cultura do município por nove meses e, deste período, tirou uma das maiores lições da sua vida. “Aprendi a enxergar com outros olhos a diversidade humana e o poder criativo e transformador da Cultura. Lidar com a Cultura de uma cidade significa lidar com a diversidade de sua população. Respeitar as diferentes expressões culturais, reconhecendo que cada uma contribui para a riqueza do patrimônio cultural local. Isso foi enriquecedor”, declara.

 


A jornalista também foi vice-presidente da Associação Musical de Ribeirão Preto, mantenedora da Orquestra Sinfônica, entre 2010 e 2012, e, a partir destas experiências, idealizou e ajudou a fundar, junto com Lucas Galon e Luciana Rodrigues, a Academia Livre de Música e Artes – ALMA, uma associação privada, sem fins lucrativos, constituída em junho de 2014, que proporciona aperfeiçoamento técnico e artístico, de forma gratuita, para 450 crianças e adolescentes iniciados em artes, especialmente em música, em Ribeirão Preto, São Joaquim da Barra e Guará. “Temos um convênio com o Departamento de Música da Universidade de São Paulo, um acordo acadêmico e cultural, que nos permite realizar, em parceria, um importante Festival Internacional de Música, em Faenza, na Itália, do qual 70 alunos já participaram. Além disso, mais de 60 alunos da ALMA já passaram em vestibulares em universidades públicas”, orgulha-se.

 


Presidente da Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto há cinco anos, Dulce costumava levar os filhos ao evento, desde pequenos, e aceitou com prazer o convite de Adriana Silva, no início 2017, para integrar a equipe da fundação como vice-presidente. Para ela, a Feira Internacional do Livro se tornou o evento de destaque que é hoje porque passou pelas mãos de muita gente que ama o livro e a leitura. “Desde seu criador, Galeno Amorim, passando por Isabel de Farias, que tornou a feira famosa, por Edgard de Castro e Adriana Silva, até os patrocinadores e apoiadores que acreditam, assim como nós, que o acesso ao livro e à leitura — e o investimento em Educação e Cultura — pode tornar o mundo um lugar melhor para todos”, destaca.

 


Vivendo a ansiedade de encontrar um dos seus escritores favoritos, o moçambicano Mia Couto, na FIL deste ano, Dulce afirma que o hábito de ler precisa ser uma paixão na vida das pessoas e que é papel da Feira ser o “cupido” entre o livro e o leitor e, também, entre o leitor e o autor. “Amo o que faço e dou o meu melhor para deixar uma marca na vida das pessoas através do livro. Isso se reflete no papel significativo que a FIL consolidou, como a segunda maior Feira do Livro a céu aberto do país, abrindo portas para a fundação firmar parcerias e patrocínios que ajudarão a alcançar novos patamares, pois estamos prontos para expandir e atender, não apenas a região, mas todo o interior de São Paulo, alcançando cidades pequenas e regiões onde a oferta de atividades literárias é escassa”, diz.

 


O objetivo da fundação, segundo Dulce, é mudar a vida das pessoas, especialmente crianças e jovens, com programações educativas, oficinas, contação de histórias e acesso a obras literárias. “Temos um compromisso firmado com a transformação social. Somos uma força inspiradora e contamos com o apoio de todos para enriquecer vidas”, conclui. 

 

2010

Assume a vice-presidência da Associação Musical de Ribeirão Preto

 

2012

Assume a presidência da Fundação D. Pedro II

 

2014

Fundação da ALMA – Academia Livre de Música e Artes

 

2016

Assume o cargo de Secretária da Cultura – por nove meses

 

2017

Assume a vice-presidência da Feira do Livro

Assume a presidência da Fundação do Livro e Leitura

 

2018

A Feira do Livro se torna internacional

 

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