A era do obscurantismo

A era do obscurantismo

Entre terra plana e apocalipse, teorias da conspiração se espalham pela internet, especialmente durante a pandemia de Covid-19

Texto: GABRIELA MAULIM

 

Uma simples busca na internet pode revelar teorias totalmente refutadas pela ciência, mas com adeptos que as defendem com unhas e dentes. Entre apocalipses e anticristos, a terra plana é um dos conceitos mais difundidos em um movimento obscurantista que encontra terreno fértil na internet, especialmente nas redes sociais.

Com a pandemia da Covid-19, novas conspirações começaram a surgir e a serem divulgadas, mas não é de hoje que essas “ideias” são popularizadas: durante as pandemias de outras doenças, como a peste negra e a gripe espanhola, também ocorreu a proliferação de teorias da conspiração. A diferença é que, naquela época, não havia a internet, facilitadora da divulgação rápida e em massa de informações.

O professor e coordenador do Curso de História do Centro Universitário Barão de Mauá,

Rafael Cardoso, avalia que há inúmeros exemplos assim, contudo, algumas questões tornam o assunto mais complexo. “Primeiro, a novidade da Internet e a natureza da comunicação dessas versões, em velocidade de banda larga e frequência diária. Segundo, o questionamento da credibilidade das instituições e da legitimidade da mídia, do Estado, da Igreja ou das Universidades como promotoras fiéis da verdade”, argumenta.

De acordo com Rafael, é parte da história a busca pelo controle da realidade. Ele explica que, há milênios, o ser humano tem desenvolvido diversas formas de contorno do desconhecido, seja pelo campo religioso, científico, mítico mágico ou supersticioso. “Muitos filósofos já nos mostraram a necessidade dos homens em controlar o que ‘não se sabe’, com os ‘saberes’ contextualmente legitimados. O que em um tempo foi chamado de ‘teoria’ ou mesmo ‘ficção’, em outro foi chamado de loucura e hoje de ciência, por exemplo. Como Michel Foucault escreveu, os discursos são produzidos e apropriados por instituições de poder. Nelas, os sentidos são tomados como verdadeiros e legítimos, classificando as teorias como verdadeiras e as ‘outras’ como mentirosas. Por exemplo, se na Idade Média a Igreja determinava as verdades da Europa Ocidental, hoje as universidades buscam ocupar tal espaço de poder”, analisa o professor.

Sobre a popularização de mais teorias durante a pandemia, para Rafael, o período mostrou mostrado como as pessoas estão sozinhas e desamparadas. “A internet virtualiza a vida e concretiza a solidão. Em tempos pandêmicos, o ato de compartilhar teorias da conspiração ou verdades ideologicamente seletivas podem abraçar solitários corações e mentes amedrontadas, na medida do humano interesse (ou seria necessidade?) do controle do real”, conclui.

Apenas teorias

Já o Padre Igor Fernando Ap. M. de Lima, vigário paroquial da Catedral de Ribeirão Preto, pensa que não se pode perder de vista que, como o próprio nome diz, teorias da conspiração são apenas teorias. Para o padre, trata-se de um conhecimento meramente especulativo. “Muitas vezes são baseados em opiniões e ideias, fruto de construções imaginárias, ou ainda utopias, sonhos e fantasias, consequência de uma falsa indução que parece comprovada. Esses fenômenos de ‘teorias da conspiração’ que constatamos em muitos lugares, quase sempre se utilizam do mesmo método, misturando verdades, meias verdades e falsidades. Além disso, por vezes não veem problemas em simplificar o contexto e criar algum tipo de ‘bode expiatório’ que deve ser superado”, comenta Igor.

Em relação às teorias que envolvem o período da pandemia, o padre diz que não há dúvidas de que o contexto que o mundo vive faz aflorar e disseminar conspirações. “Acredito que isso se dá justamente porque elas ganham mais forças em períodos de crise como uma De acordo com Rafael Cardoso, é parte da história a busca pelo controle da realidade forma de querer explicar o contexto, no nosso caso de pandemia, e essas teorias da conspiração não são de hoje. Elas também estiveram presentes em pandemias anteriores como da peste negra, da gripe espanhola e em muitos outros casos”, reflete.

Para o padre, outro ponto que faz com que essas especulações ganhem força é o fato de serem participativas, ou seja, engajam as pessoas de forma direta no desenvolvimento de ideias. “Hoje, as teorias conspiratórias em instantes se proliferam em todos os espaços por uma transmissão rápida da informação (ou desinformação), pelo menos superficial, produzidas por fontes aparentemente confiáveis que não aceitam qualquer evidência que as contradiga”, explica o padre.

Entendimento onde não há

Vitor Hugo Alves, líder de Jovens na Igreja Missionária de Ribeirão Preto, acredita que há uma busca pelo entendimento de situações em que não é necessário entender. “Frequentemente desprendemos energia tentando defender ideologias e teorias que não terão nenhum impacto real sobre as nossas vidas ou de nossos pares, e não contribuirão em nada com a resolução de nossos desafios diários”, afirma.

Sobre a pandemia ter contribuído para a proliferação de informações conspiratórias, Vitor Hugo afirma que é uma realidade e que a internet contribuiu bastante para essa disseminação. “Apesar de me considerar um heavy user [usuário intenso], as ferramentas sociais que temos ao nosso dispor podem se tornar um grande benefício, como também um malefício, dependendo da frequência, do nível de relevância ou do propósito pelo qual as utilizamos. Foi notável como a todo momento notícias totalmente discrepantes foram vinculadas e transmitidas. Não falo sobre tópicos que englobam a pandemia, como política, saúde e economia, mas os que de fato não possuíam relação alguma com o assunto em questão. Desta forma, além de tudo que ouvimos e a que assistimos nos últimos meses, ainda recebemos, como bônus, informações desnecessárias e, em maioria, fraudulentas”, argumenta.

Vitor Hugo ressalta que é preciso zelar pelo que é absorvido e adotado como verdade. Para ele, as pessoas são confundidas e enganadas quando permitem que as emoções e convicções falem mais alto do que a razão. “Infelizmente, nos últimos meses fomos bombardeados por informações que, na maioria das vezes, eram divergentes e, consequentemente, dividiam opiniões. Isso tudo numa celeridade indiscutível. Além de todo desgaste físico, também fomos impactados no âmbito emocional, o que nos tornou suscetíveis ao convencimento de teorias e ideologias”, completa.

Vacinação

Além das teorias que já circulam pela internet há anos, as que envolvem a vacinação contra a Covid-19, são as mais disseminadas no momento. A maioria delas apresenta cunho religioso. Algumas tratam de possível “chip” que será implantado ao receber a dose do imunizante, outras especulam sobre problemas que poderão ser causados ao longo dos anos, entre milhares de informações desencontradas.

Vitor Hugo destaca que há fontes seguras de informação atuando de forma imparcial para fornecer um panorama mais amplo em relação ao cenário atual. “Temos órgãos e instituições sérias trabalhando na resolução deste desafio, assim como de outros e, pessoalmente, sempre busco compilar e equalizar as informações que recebo, para encontrar consenso entre elas”, explica.

Para o padre Igor, a gravidade desse processo de divulgação de teorias sem o compromisso com a ciência, as pesquisas, os estudos e as análises, é o que gera perigo e risco para a saúde pública e a busca por um caminho de solução para a pandemia. “Mistura-se fato e ficção e fica difícil enfrentar o problema de forma coerente e crível. Por isso, meu conselho como Igreja é que nos atentemos à verdade. A Igreja acredita na ciência séria, comprometida com a vida”, conclui o padre.

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