
A fome não pode esperar
A inesquecível frase de Herbert de Souza, o Betinho, é citada por Melhem Adas como um importante alerta sobre o agravamento da insegurança alimentar da população
Em 1978, o professor, escritor e geógrafo Melhem Adas lançou a primeira edição do livro “A Fome – Crise ou Escândalo”. A obra ganhou grande repercussão ao abordar, de forma muito clara, embasada e contundente, o problema que se arrasta por anos no Brasil e no mundo. Décadas depois, infelizmente, o cenário pouco mudou. Enquanto todos presenciam os investimentos e os avanços inquestionáveis na ciência e na tecnologia, entre outras áreas, algo tão básico e essencial, como a segurança alimentar da população, parece ter ficado esquecido. Nesse bate-papo, feito virtualmente, o entrevistado, reconhecido por seu vasto conhecimento sobre o tema, faz um breve relato histórico e explica que a fome é resultado de uma profunda desigualdade social. Por isso, consolida-se como a prova mais contundente do fracasso da nossa civilização. Ele destaca, ainda, a importância de se estabelecer políticas públicas bem estruturadas para oferecer suporte a quem precisa, especialmente nesse cenário tão desafiador imposto pela pandemia, e exalta a força da solidariedade.
A pandemia de Covid-19 agravou o problema da fome no Brasil? Sem dúvida, a pandemia agravou a situação, mas, é importante salientar que a insuficiência alimentar existe ao longo de toda a história da nossa humanidade e persiste, não só no Brasil, mas no mundo, em escala global. É vergonhoso constatar que, em pleno século XXI, com tantos avanços na ciência e na tecnologia, as pessoas ainda não têm acesso ao básico para sobreviver. O homem já pisou na lua e está estudando as particularidades de Marte. Enquanto isso, aqui na Terra mesmo, um percentual elevadíssimo da população ainda passa fome. É uma realidade inconcebível, constituindo a prova mais contundente do fracasso da nossa civilização.
Em 1978, quando lançou a primeira edição do livro “A Fome – Crise ou Escândalo”, imaginava que, tantos anos depois, o tema continuaria tão atual? Infelizmente sim. Naquela época, o problema, de fato, já era gigantesco. Um estudo da Organização das Nações Unidas (ONU) apontava que seis milhões de crianças, até os cinco anos, morriam, anualmente, em decorrência da desnutrição, ou seja, seus organismos debilitados constituíam a porta de entrada de várias doenças. Recentemente, antes da pandemia, graças a esforços de organizações mundiais, esse contingente ficou em torno de três milhões de óbitos anuais. Mesmo com a redução, ainda é um número impactante. Vale lembrar que as discussões sobre o tema vêm de muito antes. As novas gerações possivelmente não conhecem Josué de Castro. Desde 1946, esse médico, nutrólogo, professor, geógrafo, cientista social, político, escritor e ativista expunha uma situação dramática em suas obras, como “Geografia da Fome” e “Geopolítica da Fome”. Depois veio o “Livro Negro da Fome”, que foi traduzido em mais de 25 idiomas. Foi ele quem utilizou, pela primeira vez, o termo fome. É um termo forte e contundente que desagradou a muitas pessoas, pois, na verdade, era uma denúncia que Josué de Castro fez. Caçado pela Ditadura Militar, saiu do país. Lecionou por anos na Universidade Sorbonne, na França, alcançou reconhecimento internacional e chegou até a exercer o cargo de presidente do Conselho Executivo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO). Tivemos, também, outros representantes que marcaram essa luta, como Herbert de Souza, o Betinho. À frente do projeto “Ação da Cidadania”, fundado em 1993, o sociólogo mobilizou a sociedade civil no combate à miséria e na valorização dos direitos humanos. Ele dizia: “a fome não pode esperar”.
Podemos afirmar que essa é uma questão histórica no nosso país? Com certeza. Como disse Josué de Castro, a fome não é um fenômeno natural, ou seja, decorrente de hostilidades de clima ou de solo. Ela resulta de conjunturas econômicas defeituosas. Sim, no Brasil, a fome é uma questão histórica. As elites econômicas, políticas, militares e sociais nunca se preocuparam com questões sociais, ou seja, não implantaram políticas de inserção social e econômica com o objetivo de diminuir a vergonhosa desigualdade social vigente na sociedade brasileira. Para se ter uma ideia, fomos a última nação a “libertar” os escravos. O libertar vem entre aspas porque não houve nenhum tipo de inserção social dessa população. Desassistidos, construíram suas habitações, ou casebres, nos morros dando origem as primeiras favelas no Brasil.
Esse retrato tem mudado nos últimos anos? Essa era uma esperança que eu tinha na minha juventude, de que, no futuro, teríamos um cenário melhor, uma sociedade mais justa. Hoje, na prática, muito pouco mudou. Permanecemos como um país marcado pela profunda desigualdade social. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2019, 54 milhões de brasileiros estavam na linha da pobreza ou abaixo dela, ou seja, na condição de pobreza absoluta. Isso é um absurdo. Com uma distribuição de renda totalmente desigual, várias famílias não têm condições de suprir suas necessidades alimentares. No mundo, cerca de um bilhão de pessoas vão dormir, todas as noites, sem ter ingerido a quantidade e a qualidade de alimentos que precisam para sobreviver. Vivem em insegurança alimentar permanente. A desnutrição deixa o ser humano vulnerável. É uma porta aberta para uma série de doenças e costuma levar à morte precoce.
O quadro pode ser revertido? Sim. Desde que haja políticas públicas focadas ou preocupadas em superar as desigualdades sociais. Como também, uma tomada de posição por parte da sociedade no que diz respeito ao desenvolvimento de solidariedade humana. Lembramos que, ao mesmo tempo em que pessoas passam fome nos países subdesenvolvidos (termo que vem sendo substituído por países em desenvolvimento, o que é um mero eufemismo), esses países exportam toneladas de soja, e outros cereais, para o mundo desenvolvido cujos grãos são transformados em larga escala em ração animal, para alimentar o gado desses países. No meu ponto de vista, isso é uma grande contradição.
Diante desse contexto, a solidariedade nunca foi tão necessária? A solidariedade é sempre fundamental. Existem, sim, políticas públicas voltadas para o combate da fome, mas elas são ínfimas em comparação com o tamanho do problema. Temos que nos unir e estender a nossa mão para quem precisa. A fome é muito maior do que imaginamos. Não podemos ficar indiferentes ao sofrimento do outro. Vemos o esforço de heróis anônimos, sensibilizados com essa causa tão importante. São organizações não governamentais, empresas de diferentes setores, comunidades e indivíduos que se mobilizam, de todas das formas possíveis, para fazer o bem ao próximo. Espero que, diante das tantas adversidades que a pandemia nos impôs, as pessoas se sensibilizem. A solidariedade da sociedade civil, sozinha, vai resolver o problema? Não, mas servirá de alento, dará esperança.
O governo também precisa buscar uma abordagem mais assertiva? O governo, seja no âmbito federal, estadual ou municipal, tem que agir o quanto antes. Conversei, recentemente, com um vereador que conheço há muitos anos. Falamos sobre a possibilidade de organizar um recadastramento da população, onde cada um contribuiria com um valor simbólico: R$ 1,00; R$ 2,00 ou R$ 5,00. Isso levantaria um recurso importante nesse momento emergencial. Não sabemos quando essa pandemia vai acabar. Ela já dura muito mais do que imaginamos no início. O quadro pode ficar ainda pior se nada for feito, uma verdadeira tragédia anunciada. A Prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência Social, a Câmara e os empresários possuem conhecimento e estrutura para viabilizar a logística de arrecadação e a distribuição desses recursos. Precisamos reunir forças e estabelecer uma conexão eficiente entre quem pode ajudar e quem precisa de ajuda. Voltamos a falar, como disse Betinho, a fome não pode esperar.