
A tal preguiça
Pode parecer simples falar sobre preguiça, mas o conceito por trás da ideia de só desejar “sombra e água fresca” na vida vai um pouco além do que já se tornou senso comum
Atire a primeira pedra quem nunca sentiu, uma única vez, a tal da preguiça, que costuma aparecer bem cedinho na rotina do trabalhador e que, muitas vezes, insiste em se impor durante o expediente ou após o almoço, investindo mesmo, com toda força, sua vontade no fim do dia, diante de um aconchegante sofá. Vez ou outra, certamente, o leitor já se viu — ou ainda vai se deparar — com esta famigerada. Jovem, adulto ou idoso, religioso ou não, o encontro com este “pecado capital” é certo em algum momento da vida. A entrega do indivíduo a esse desfrute, no entanto, é outra história.
Num mundo dividido pela Igreja entre inocentes e pecadores, pelo capitalismo entre produtivos e ociosos, ou pela neurociência entre motivados (pessoas que possuem mais dopamina no striatum cerebral e no córtex pré-frontal ventromedial — associados à noção de recompensa —, por isso, mais motivadas para o trabalho árduo) e desmotivados (pessoas não motivadas, mental e fisicamente, com altos níveis de dopamina na ínsula anterior), pode parecer tolice revelar-se preguiçoso (a).
A verdade, se é que há uma, parece escondida sob muitas camadas de preconceito. No dicionário, a preguiça aparece associada à lentidão ou moleza, a uma espécie de aversão ao trabalho e à mobilização de esforço físico ou mental, muitas vezes, também à negligência na realização de atividades. Na religião católica, decretada pelo Papa Gregório Magno, no século IV, como um dos sete pecados capitais, a filha da acídia também não perde o tom pejorativo, ao contrário, passa a ser considerada como um grave defeito humano, capaz de conduzir à covardia, ao rancor e ao vazio interno.
Enquanto isso, para cientistas norte-americanos como Christopher Hsee e Jay Phelan, a preguiça se caracteriza por uma tendência natural do ser humano de poupar e armazenar energia. Dráuzio Varella, em seu artigo intitulado “Ai, que preguiça”, também segue esse raciocínio quando questiona a razão da maioria das pessoas não se exercitarem com regularidade, mesmo sabendo que faz bem ao organismo. “Por uma razão simples: nenhum animal desperdiça energia. Só o faz atrás de alimento, sexo ou para escapar de predadores. Satisfeitas as três necessidades, permanece em repouso até que uma delas volte a ser premente”, responde.
Uma rápida e superficial avaliação histórica permite constatar que a entrega à vontade de não fazer nada parece já ter sido considerada normal. Antes da Revolução Industrial, certamente, ninguém seria tachado de vagabundo por não dedicar no mínimo um terço do seu dia ao trabalho. Tampouco a necessidade de vivenciar um pouco de inércia e da contemplação fosse caso de auxílio médico. Nos dias atuais, no entanto, parece abominável ter tempo livre: todo ele, necessariamente, precisa estar preenchido por algum tipo de obrigação moral ou social para que o indivíduo seja aceito, de preferência, algo qualificável e quantificável. A preguiça, na outra ponta, a todo custo deve ser combatida.
O filósofo Oswaldo Giacóia Júnior faz uma análise interessante desta contradição no Café Filosófico: “A Preguiça e a Melancolia” (disponível na internet). Sobre a ótica de Nietzsche, questiona a glorificação do trabalho e propõe uma busca de sentido para a preguiça dissociada da recusa, da alienação, do ressentimento e da vergonha. “Nietzsche aparece como um dos pensadores mais radicais, o primeiro, talvez, apologista do ócio e da preguiça (com boa consciência). Para ele, o indivíduo necessita de tempo para si, de uma relação de cultivo consigo que só pode brotar do ócio e da preguiça como cordão vital. Ele nos lembra que também somos o que não produzimos, que nos constrói também aquilo que não fazemos”, enfatiza.
Um efeito colateral, bastante cruel, desta “ditadura do trabalho” está na relação da humanidade com as artes que, segundo ele, fica relegada a um segundo plano. “A arte tem contra si a consciência dos laboriosos e capazes”, diz Giacóia. De fato, há uma espécie de “ranço velado” direcionado às atividades intelectuais e artísticas, muitas vezes, associadas pejorativamente a pessoas preguiçosas, folgadas e, até mesmo, vagabundas e irresponsáveis. Isso porque, na modernidade, segundo o filósofo, a relação com a arte é mais de consumo do que de contemplação. Assim, se não se alcança o estrelato, seja na música, nas artes cênicas, na pintura, na literatura ou em qualquer outra expressão artística, se está fadado à falta de reconhecimento, mais do que isso, ao preconceito. Nesta toada, quem sabe, chegue-se ao dia em que “dar asas à imaginação” seja considerado um crime, previsto em lei e passível de anos de reclusão.
Ócio criativoBastante ativo (alguém para quem trabalho e prazer se confundem), José Aparecido da Silva, mestre e doutor em Psicologia, é enfático ao relacionar preguiça e inteligência. “Essa é a minha teoria. Uma pessoa muito preguiçosa, com certeza, tem baixo QI. É alguém que, em geral, não possui muitas habilidades, não quer nada desafiador, ao contrário de uma pessoa inteligente, que nunca vai ser muito preguiçosa porque não quer nada monótono, quer novidades”, explica.
Antes de tudo, segundo ele, é preciso distinguir a preguiça popularmente associada a quem não quer fazer nada do ponto de vista psicológico, que a encara como um estado de ócio, de relaxamento útil ao ato de “emparelhar as novas ideias com as antigas”. “Você relaxa, faz devaneios, reflexões sobre a vida, a natureza, o trabalho e a família, isso também pode ser definido como preguiça”, enfatiza.
Assim como o amor, o medo e a felicidade, a preguiça, segundo José Aparecido, aparece como um construto que, como tal, exige resposta não apenas ao questionamento de sua definição, mas também de sua origem (genética, ambiente); da possibilidade de mensurá-lo, de avaliá-lo (todos têm preguiça na mesma intensidade?); se é possível enriquecer e melhorar a partir dele (fazer alguém sair do estado extremamente preguiçoso) e quais são suas implicações (neste caso, o custo social e o econômico associados à preguiça). “Com isso, verificamos que algumas pessoas são mais criativas do que outras, algumas mais inteligentes e felizes do que outras e preguiçosas também. Felizmente é pequeno o número de pessoas com ‘preguiça crônica’. Algumas têm ‘meia preguiça’, outras não tem nenhum traço de preguiça na personalidade. O interessante é entender que, de vez e quando, você precisa do ócio, mas de forma consciente, para reciclagem das ideias. O mais importante é ter bom senso”, aponta o psicólogo.
Visão bastante semelhante tem o sociólogo italiano Domenico de Masi, autor de Ócio Criativo, que destaca a insatisfação do homem ocidental com a idolatria ao trabalho e à competitividade, propondo maior equilíbrio entre ele, estudo e lazer e, ainda, mais valorização do tempo livre, da introspecção, do convívio, da amizade, do amor e das atividades lúdicas.
Como ensina Heráclito, é da discórdia que nasce a mais bela harmonia. “É próprio a todos os homens o conhecer a si mesmo e ser moderado. Ser moderado é a maior virtude”, enfatiza, em Harmonia Oculta.Pecado mortal
Para alguém que vivencia os opostos, dosando o esforço e a preguiça sem culpa ou remorso, por certo, faz bastante sentido o texto até aqui. Há outros, no entanto, independente da definição dada, para quem a preguiça não merece complacência.
Caso do padre Gilberto Kasper, mestre em Teologia Moral, que acredita que a preguiça não deva ser relacionada apenas ao trabalho, mas à mudança de atitudes e à transformação de comportamentos também. “A preguiça está associada à falta de esforço empreendido para ser diferente. E, na medida em que se tem consciência, tem-se também obrigação de melhorar. Eu distingo preguiça doentia (inconsciente) de preguiça pecaminosa, aquela adotada por livre arbítrio e consciência, em que a pessoa decide ser preguiçosa. A preguiça é um pecado capital porque traz prejuízo à própria pessoa”, afirma. Para o pároco, não são as atitudes boas ou más de uma pessoa que a conduzirão, diante do julgamento, ao prêmio ou castigo eterno, mas seu esforço — o antônimo da preguiça — diário empreendido em ser alguém melhor.
Padre Gilberto destaca que, em função das facilidades tecnológicas e da superproteção dos pais, o mundo atual produz mais preguiça do que há 20 ou 30 anos. “A deformação de personalidade e de caráter — que produz a preguiça —, começa na mais tenra idade, quando os pais negociam com os filhos suas obrigações, como tirar boas notas ou arrumar o próprio quarto. Seguindo a “lei do menor esforço”, certamente, essa pessoa será alguém individualista, que só irá a um evento beneficente, por exemplo, quando conveniente, ou seja, se tiver alguma recompensa. O hábito da preguiça vai deformando o caráter de corresponsabilidade e isso é prejudicial não apenas para a pessoa, mas para os outros e para as relações familiares, sociais, de trabalho, etc”, justifica o padre.
Tédio ou estresse?
Com efeito, o dualismo permeia a relação do homem com a preguiça. Assim, tal qual Leandro Karnal (curador da série do Café Filosófico “7 prazeres capitais – pecados e virtudes hoje”) questionou o filósofo Oswaldo Giacóia Jr, fica ao leitor também a pergunta: é preferível morrer de estresse ou de tédio?
Para Oscar Wilde, não fazer absolutamente nada é a tarefa mais difícil do mundo. Ainda assim, segundo Giacóia, seria preferível uma experiência radical de tédio ao estresse. “Isso nos colocaria face a face com o vazio a partir do qual poderíamos, de fato, começar a preencher nossa vida com alguma perspectiva de sentido”, avalia. E o leitor, o que pensa? Como lidar com a preguiça
Faça isso agora!
“Possuímos muitos inimigos que habitam nosso subconsciente e tendem a destruir nossas vidas. Um deles é o desânimo, pai da preguiça e da procrastinação. Fruto do medo, ele rouba do indivíduo sua maior força: a autoconfiança. No curso de Atitude Mental Positiva, procuramos cortar pela raiz esse grande mal da humanidade. A primeira dica é descobrir seu principal objetivo na vida, escrever num papel e olhar diariamente para ele expressando gratidão. Paralelamente, escrever em uma folha cinquenta vezes, durante sete dias, a frase: Faça isso agora! Com isso, planta-se uma nova semente no subconsciente, que logo se transformará em um novo padrão gerador de pensamentos de motivação e ação. É importante lembrar que tudo reside na mente: ela é nossa propriedade e podemos controlá-la!”
Felício Bombonato, professor de AMP
(Atitude Mental Positiva)
TESTE SEU PERFIL
Alguns estudiosos fazem a seguinte diferenciação das prováveis causas da preguiça
Ausência de autoeficácia
Autoeficácia é a convicção de que, se colocar a própria mente em alguma atividade, o indivíduo será eficiente em lidar com ela. A ausência desta convicção conduz à preguiça porque, não acreditando ser capaz, a pessoa terminará por não tentar.
Ausência de interesse no próprio esforço
Se a tarefa (ou projeto) parece tediosa ou não desafiadora, provavelmente, deseja-se evitá-la. O que leva o indivíduo a evadir de um trabalho não é realmente a preguiça, mas o fato de o trabalho não ser motivador. Entretanto, o que motiva ou dá prazer a algumas pessoa, não funciona para outras.
Ausência de suporte emocional
Sem um suficiente encorajamento, simplesmente pode não haver habilidade para motivar-se à realização de uma dada tarefa. Muitas pessoas dependem dos outros para isso ou para encontrar inspiração para fazer o que, tecnicamente, poderiam habilmente fazer independentemente de incentivos externos.
Ambivalência ou falta de fé
A dúvida sobre algumas prioridades ou valores (falta de fé), pode trazer falta de clareza para seguir adiante. As motivações contraditórias para aproximar ou afastar as pessoas podem ser ponderadas igualmente e, assim, cancelar uma a outra. Sem a crença de que o ato de alguma maneira melhorará a qualidade de vida será difícil (senão impossível) cultivar a iniciativa necessária para empreendê-lo.
Ausência de autodisciplina ou autocontrole
É possível fazer quase tudo que se tem em mente, mas se a mente é também o pior inimigo de cada um, simplesmente a pessoa pode não ser capaz de acreditar nessa máxima inspiradora. Em outras palavras, qualquer ansiedade acerca do fracasso, bem como o pobre senso de autoeficácia, pode impedir de iniciar uma tarefa ou de completá-la.
Medo do fracasso
Enquanto um senso inadequado de autoeficácia reduz a motivação, o medo do fracasso paralisa pela ausência de recursos emocionais para lidar com os possíveis resultados negativos dos esforços. Com uma autoestima muito fraca, muito vulnerável, qualquer risco de fracasso facilmente triunfa sobre todas as outras considerações.
Medo de recusa ou rejeição
Ao requerer ajuda para realizar alguma tarefa, acreditando que a pessoa necessária para dar apoio pode recusar tal pedido, muita gente decide nem tentar. O medo da rejeição também imobiliza porque, quando se considera muito dependente dos outros, a pessoa pode entender que, se não for hábil, a outra ficará frustrada e a rejeitará.
Necessidade de reconhecimento
Quando o indivíduo se aplica a algum objetivo, usualmente o faz com alguma expectativa de recompensa — material ou emocional, interna ou externa. Sempre há expectativas acerca do reconhecimento social para que exista motivação para iniciar uma tarefa, sem isso, a desmotivação pode tomar conta.
Senso de desencorajamento, desamparo ou futilidade
Todos estes ânimos ou estados da mente podem levar à apatia, a partir da qual o indivíduo se sentirá totalmente incapaz de realizar algo frutífero ou relevante socialmente. Isto é dolorido, um estado que paralisa desejos ou vontades, onde virtualmente nenhuma tarefa parece valer a pena.Como lidar com a preguiça
Entre em contato consigo mesmo
“Como terapeuta, educadora em Florais de Bach e especialista em lidar com emoções, prescrevo as essências florais tanto àqueles que sofrem da “preguiça acédia”, que pode vir travestida de depressão — algo muito além da tristeza, nuvem negra que incapacita para vida e, muitas vezes, incitando a morte —, quanto da “preguiça adolescente”, que se apresenta no começar do dia (diz respeito apenas a coisas rotineiras e a deveres e obrigações) e, ainda, àquela preguiça que assola pessoas que perdem a fé em si mesmas, tornando-se desanimadas. Auxilio a entrar em contato consigo mesmo, a definir de que forma seus estados emocionais se manifestam e como podem ser transformados por meio das essências florais, a partir da tomada de consciência.”
Mariza Helena
Ribeiro Facci Ruiz,
Educadora em Florais de BachVocê tem preguiça de que?
Correr
“Confesso que tenho uma preguiça enorme de acordar cedo para correr. Sabe quando o travesseiro te convida, a cama te abraça e o lençol te embala? Foi sempre assim ao longo da minha vida sedentária. Arrumava várias esquivas para ficar mais um pouquinho na cama, ainda à procura de Morfeu. Saí da zona de conforto com a ajuda de amigas, juntamos topos os tipos, modelos e tamanhos de preguiça e montamos um grupo de corrida: o Ludsrun. Nem final de semana escapa: 7h30 do domingão tem corrida! E não tem jeito, treino marcado, treino cumprido. Se o despertador falhar ou a preguiça se instalar, logo as meninas estão batendo na porta, convocando para o aquecimento.”
Ludmilla Puntel, psicólogaDirigir
“Dirigir é uma das coisas que me dá mais preguiça hoje em dia. Não da ação propriamente dita, mas dos vários aplicativos que atualmente se incorporaram a esta tarefa, como prestar atenção à sinalização, aos limites de velocidade, adequar-se aos infortúnios do trânsito, sincronizar todos os recursos da tecnologia embarcada, orientar-se pelo GPS, optar pela música no celular, CD player, USB, atender o celular no Bluetooth, espantar-se com as notícias no rádio ou na TV e, por fim, estar atento às motos, aos apressados e aos barbeiros. Combinar todas estas funções tornou o prazer de dirigir uma grande aventura que, quando posso, passo adiante.”
Edgard de Castro, cineastaComo lidar com a preguiça
Decida ser entusiasmado
“A preguiça anda tão devagar que a pobreza logo a alcança”. A frase de Napoleon Hill mostra os efeitos nefastos desse sentimento no resultado profissional. Sua origem pode ser física ou emocional, mas na maioria das vezes está associada a uma atitude frente à vida. O primeiro passo para enfrentá-la é agir com entusiasmo, pois a ação precede o sentimento, assim como uma gargalhada forçada produz um sorriso sincero. O entusiasmo não é um presente, não é uma chance, é uma decisão pessoal. Se você deseja uma qualidade, haja como se já a tivesse. É possível estar bem disposto, descontraído, alegre e energizado de fora para dentro, sem necessidade de bebida ou qualquer outra coisa, só arrancando isso da alma. Alimentação saudável, uma boa oração e ter um sentido de finalidade na vida são motivadores naturais.”
Jamil Albuquerque, instrutor MasterMind
“Se eruditos se envergonham do ócio, isto é por certo um sinal dos tempos. Mas há algo de nobre no ócio e no lazer. Se o ócio é realmente o começo de todos os vícios, então ao menos ele está bem próximo de todas as virtudes. O ocioso é sempre um homem melhor do que o ativo. Mas não pensem que ao falar do ócio e do lazer eu estou me referindo a vocês, seus preguiçosos. - Nietzsche
“São os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo algum.” - Albert Camus
“A preguiça é o único pecado que nos impede de cometer todos os outros.” - Mário Quintana
Texto: Yara Racy