A vida através de um microscópio

A vida através de um microscópio

A patologista Margarida Maria Fernandes da Silva Moraes avalia mais do que cortes de tecido para diagnóstico. Ela dispara um olhar para a pessoa que está sendo submetida àquele exame

Uma mulher bonita, elegante, muito bem cuidada, no alto de seus 75 anos. Assim é Margarida Moraes vista superficialmente. Porém, em pouco tempo de conversa é possível perceber uma pessoa inteligente, culta e com histórias interessantes para contar. Aliás, é tão habilidosa em narrar acontecimentos que está escrevendo um livro. Margarida é patologista há 50 anos. Graduou na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP), especializou-se nos Estados Unidos, atuou no Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, na Unaerp e em diversas outras instituições nacionais e internacionais, como professora, palestrante e participante de congressos. Há 37 anos, também mantém um laboratório de Patologia e Citologia que é referência. Margarida possui bem mais que um currículo de alto nível: é uma mulher interessante, de bom gosto, bem-humorada, uma pessoa que se sensibiliza com o próximo e faz questão de compartilhar conhecimento.

Revide: A senhora costuma dizer que o patologista faz parte de um “serviço secreto da Medicina”, já que é uma “médica oculta”. Por que essa associação?
Margarida:
Porque quase ninguém sabe o que o patologista faz. É igual a um pato que faço em casa. Eu compro, lavo, faço o recheio, tempero, costuro, coloco na assadeira, enfim, fico o dia todo nos preparativos. Aí vem a Geni, uma amiga que contribui na cozinha e assa o pato porque não posso usar muito os braços no calor do forno. Daí todo mundo se refere ao prato como “o pato da Geni”. Assim também acontece com a Patologia. O médico vê uma lesão, uma imagem, palpa um caroço e precisa de um diagnóstico definitivo. Faz uma biópsia, envia para mim e eu trabalho incansavelmente para chegar à conclusão. É um procedimento muito detalhista, um trabalho manual o da Patologia. No fim das contas, o resultado chega de uma forma simples, como se fosse a tarefa mais fácil do mundo. Nós, patologistas, olhamos a doença onde ela acontece, no próprio tecido e, muitas vezes, o paciente desconhece nossa contribuição, o trabalho que existe atrás daquele laudo. Por isso, costumo dizer que, hoje, no Brasil, ainda fazemos esse “serviço oculto”. Veja os programas de prevenção de doenças, como o Outubro Rosa. Na televisão, aparecem oncologistas, mastologistas e radiologistas, mas nunca se vê um patologista, sendo que, ao final, somos nós que confirmamos a natureza da lesão.

Em 2015, Margarida participou da edição especial da Revide que retratou as mulheres que venceram o câncer.Essa realidade é diferente em outros países?
Nos Estados Unidos, por exemplo, o patologista tem um papel ativo na orientação e até no contato com o paciente. É a outra ponta de um mesmo trabalho, mas isso, para nós, é impraticável porque demanda muito tempo. Tem casos em que ficamos dias nos computadores, nos livros e, algumas vezes, até buscando outras opiniões, seja aqui mesmo no laboratório ou até de colegas no exterior. Nós, patologistas, nos entrosamos porque temos um serviço muito particular e não hesitamos em buscar outras opiniões. Eu já tive oportunidade de receber pacientes para esclarecer suas doenças. Expliquei tudo em linguagem simples e elas ficaram agradecidas, mas para fazer isso, no dia a dia, não sobraria tempo para os estudos que são necessários.

De que forma a tecnologia tem contribuído com o seu trabalho?
Muito pouco. O nosso trabalho é manual e cerebral, assim como cozinhar e bordar, atividades que adoro fazer. Temos metodologias, que abrangem genética, biologia molecular aplicada à Patologia e à imunohistoquímica, muito avançadas, mas, em termos de aparelhagem, não mudou muito. O preparo do nosso material é meticuloso e, para isso, a mão do técnico é essencial. Tem um mundo inteiro aqui, através da lente do microscópio. Eu adoro o que faço, mas, hoje, também sei que a Patologia não resolve tudo. O que funciona, na Medicina, é a equipe. É preciso juntar um bom clínico, um bom imaginologista — radiologista ou ultrassonografista — e um bom patologista para chegar a um diagnóstico definitivo. Afinal, o melhor equipamento ainda é o nosso cérebro. Algumas doenças detectamos apenas por uma imagem ao microscópio. Em outros casos, preciso conversar com o dermatologista, o ortopedista, o radiologista, ou seja, essa integração, na Medicina, é a base de tudo. Quando olho a imagem, não vejo um corte de tecido, olho a pessoa que está lá atrás e o que posso fazer por ela.

Por que a senhora escolheu a Patologia, em especial?
Quando estudante, eu me envolvi com todas as matérias. Tudo me fascinava. Sempre fui interessada em aprender e isso é a base do que faço hoje. Todas as especialidades me atraíam e, na Patologia, posso exercer todas. Sou uma espécie de clínico com um método semiológico especial. Além disso, nas reuniões anatomoclínicas, quando se discutiam os casos dos pacientes já falecidos e todas suas doenças, parecia a nós estudantes, que, no final, as respostas definitivas vinham dos patologistas. Hoje, sei que isso não é verdade. É a interação da equipe médica que permite o melhor diagnóstico e o melhor tratamento.

A senhora fez essa especialização há 50 anos. Como era o cenário da Patologia, naquela época?
Eu fui fazer a especialização nos Estados Unidos. Fomos eu e o Cássio, meu marido, que é radiologista. Como havia sido uma boa aluna da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), pensava em voltar, trazer o que tivesse aprendido e permanecer na instituição. Eu me sentia o máximo quando voltei. Na época, o pessoal aqui era muito envolvido e capacitado em pesquisa e eu me julgava boa em diagnóstico, esse negócio de ficar atrás do microscópio resolvendo aquilo que não era possível nas outras áreas. Eu e meu marido fomos convidados e ficar nos Estados Unidos. Ele foi convidado para dar aula na Universidade da Califórnia, com o Philip Palmer, um radiologista inglês que acompanhou o primeiro transplante cardíaco da África do Sul, realizado por Christiaan Barnard. O Philip ficou na Universidade da Pensilvânia com o Cássio e gostou muito dele, por isso, queria montar um serviço junto. Meu chefe também fez um convite para que eu ficasse, mas nós recusamos. Ele não entendia a minha decisão, afinal, o salário seria mais escasso no Brasil, mas eu estudei em escola pública a vida toda, então, dizia a ele que o povo havia investido em mim, através dos meus estudos. Era uma forma de retribuir e, por isso, resolvi voltar.

Como foi a experiência de viver nos Estados Unidos?
Nós ficamos nos Estados Unidos de 1968 a 1970. Em 1969, teve o Woodstock, a chegada do homem à lua, a Guerra do Vietnã estava acontecendo. Foram grandes momentos da história do século passado e nós assistimos tudo pessoalmente, ao vivo. Mais do que isso, eu me esforçava muito em aprender, em fazer tudo da melhor forma possível. Um dia, inclusive, eu e uma colega filipina, minha amiga até hoje, cansadas de ver a sala de autópsia suja e descuidada, limpamos o espaço todo. No fim do mês, até ganhamos um adicional no salário por isso. Sempre disposta ao trabalho, na realização de autópsias e biópsias, interessada em aprender, ganhei a confiança do chefe, mas queria retornar para a minha terra.

O retorno foi da forma que planejava?
Quando cheguei, sentindo que era o máximo, não tive a recepção que esperava. Um amigo meu, já falecido, disse que eles não queriam mulheres na Faculdade de Medicina da USP, devido as licenças que a trabalhadora tem por conta da maternidade. Assim, não fiz carreira universitária, que era o meu sonho, mas fiquei na USP durante 14 anos como médica contratada. Paralelamente, fui trabalhar em outro laboratório até que, em 1980, montei meu próprio serviço. Aos 63 anos, fui substituir um colega que necessitava de um afastamento temporário na Unaerp. A ideia era que eu, como professora, ficasse por três meses, mas acabei ficando sete anos e adorei a experiência. Fui patronesse e paraninfa e mantenho relação com meus ex-alunos até hoje. Aos 70 anos, encerrei essa atividade porque o meu laboratório começou a crescer demais e exigia minha presença. Fui muito bem tratada pela reitoria, pela diretoria e pelos alunos da Unaerp. Na USP, apesar de ser da área “espúria e desvinculada”, com valor diferente de quem está na carreira universitária, também tive a oportunidade de fazer  um mestrado e de dar aulas quando meus colegas me convidavam. Talvez, se eu tivesse insistido muito e pago o preço de esperar, teria conseguido essa vaga que desejava. Também dei aula nos Estados Unidos, no Uruguai e no México. Participei de congressos internacionais dos mais diversos assuntos. Posso dizer que tenho uma vida profissional bem rica.

A sua decisão pela Patologia, especificamente, já foi explicada, mas o que a levou a estudar Medicina?
Eu sempre me encantei com os médicos. Os profissionais da minha infância eram maravilhosos. Tinha o Constantino Galízia, em Bariri, que era especial com as crianças e o suporte de todo mundo. Eu pensava que médico sabia tudo, pois curava as doenças. Minha mãe morreu quando eu tinha nove anos. Assisti à morte dela. Quando ela ainda vivia, eu já dizia que queria ser médica, mas ela falava que eu tocaria piano e seria professora. Fui incentivada a gostar de línguas e de literatura. Eu tinha um pai intelectual. Depois que minha mãe morreu, eu ia pouco à escola, não escovava os dentes direito, enfim, relaxei. Sofri muito, mas não queria dar o braço a torcer. Fui uma péssima aluna até o secundário. Quando cheguei ao Ensino Clássico, no segundo ano, um professor de física questionou sobre o que queríamos estudar a seguir. Eu disse que não poderia fazer o que gostaria, Medicina. Ele respondeu que eu poderia sim e me incentivou nos estudos de química, física, matemática, biologia, entre outras disciplinas. Eu não acreditei em mim, mas o professor me incentivou. Quando fui para o terceiro ano, já iniciei o cursinho também. Acabei ficando de segunda época de Português e não prestei exame naquele ano. No fim do ano seguinte, prestei vestibular e entrei para a Faculdade de Medicina da USP.

Margarida e o marido, Cássio: sensibilidade e páreo intelectual.

Nesses 50 anos de profissão, qual o momento mais feliz que já presenciou?

Os momentos mais felizes acontecem quando conseguimos ajudar uma pessoa a ter o melhor tratamento possível. Quando se pode dar o apoio pessoal fica melhor ainda. Fico imensamente feliz quando chega alguém triste no laboratório e sai confortado. Isso quer dizer que eu consegui contribuir de alguma forma, mesmo no “serviço secreto”. Conquistar a confiança do paciente é motivo de felicidade.

Em contrapartida, quais os momentos mais difíceis?
Difícil é errar o diagnóstico. É o meu maior medo. Minha grande preocupação é me enganar e a natureza faz de tudo para nos enganar. Já tive casos em que falei para o paciente: “eu pensei que o seu diagnóstico fosse esse, mas é outro”. Ainda bem que não houve dano e tivemos tempo de consertar. Por conta da grande responsabilidade, realizamos de uma série de mecanismos para evitar o erro. Sempre posso ter três respostas: é benigno, é maligno e eu não sei. É preciso reconhecer quando não se sabe e, a partir daí, buscar respostas.

De que forma seleciona os profissionais que atuam na sua equipe?
Tenho dois magníficos companheiros: a Giovana Bachega Badiale Biagi e o Daniel Ferracioli Brandão, que compartilham meus valores. Em relação aos outros colaboradores, também estou com um time da mais alta capacidade, não só do ponto de vista profissional, de elaboração de diagnóstico, mas de qualidade ética. Juntos, discutimos casos e avaliamos os materiais com muito carinho.

O seu laboratório fornece, entre outros serviços, diagnóstico de câncer, doença pela qual a senhora já foi acometida. Como foi a experiência de vivenciar o outro lado da mesa do consultório?
De Patologia, tive aulas teóricas e práticas, mas a experiência com a dor e o sofrimento criou vivências muito positivas para o meu crescimento. Quando tive câncer de mama, há 22 anos, o Dr. Sérgio Bighetti, que cuidou de mim nos processos de quimioterapia e radioterapia, na primeira consulta, disse: “Você vai perguntar por que eu?” Respondi: “Por que não eu?  Passo o dia todo fazendo diagnósticos das outras pessoas. Por que seria eu imune?” Tive que aproveitar essa experiência da melhor maneira. Dizia que a quimioterapia era um “peeling” e havia melhorado a minha pele e que pensaria a radioterapia como um “banho de sol”. A experiência contribuiu para melhor habilidade nas conversas com outras pessoas com doenças semelhantes. Digo que câncer não é doença, é defeito, uma falha no DNA. Como todo mundo, tenho sofrido doenças de vários tipos, tendo atravessado episódio de cirurgia recente, mas completamente recuperada e com a mesma força de trabalho de sempre. Na doença, nosso maior inimigo é o medo. Eu olho meus “demônios” de frente e minha força é intensificada por crenças espirituais e pelo total apoio da família, dos amigos e dos colegas.

Como é a Dra. Margarida em família?
Tem gente que espera se aposentar para fazer o que gosta. Eu já faço isso. Cozinho bem. Faço strogonoff, bacalhau, doces, enfim, vários pratos. Gosto de uma frase em inglês que diz: “Life is life. You make it beautiful”. Na realidade, o que ganhamos é a nossa vida, o que muda é o que fazemos com ela. Eu tive a sorte de ter um bom marido. Nós nos entendemos no mesmo nível sobre os problemas e conjunturas da vida. Acredito que é preciso buscar quem tenha sensibilidade e seja páreo intelectual quando se trata de uma união duradoura. Tem um livro da Anais Nin, chamado “Em busca de um homem sensível”. É disso que as mulheres sensíveis precisam. Eu leio muito. Há pouco tempo, li os três volumes da “Trilogia do Século XX”, do Ken Follett. Tenho todos em inglês. Leio tudo que me derem, desde bula de remédio, passando por romances até Tolstói e Dostoiévski. Vou de matemática até literatura grega. Estudo o que não tem nada a ver com a minha área por diversão, por querer aprender. Também gosto de música e sou eclética no que ouço. Fui criada com música erudita, mas eu gosto de jazz, de samba, de tudo. 



Texto: Máisa Valochi  
Fotos: Luiz Cervi

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