Alienação parental: um campo minado

Alienação parental: um campo minado

Tema que divide opiniões, principalmente no que tange à legislação e suas sanções, a alienação parental pode ser um mal do comportamento humano mais naturalizado do que se pensa

Só quem já vivenciou a Alienação Parental (AP) “na pele” — como se diz —, seja como filho, filha ou parte no foco da alienação, sabe a complexidade desse tema e como seus desdobramentos vão além do alcance da Psicologia e do Direito.

 

Os relatos surpreendentes de pessoas que vivenciaram esse tipo de situação, registrados no documentário brasileiro de 2009 “A morte inventada”, revelam como a dor não curada de pais e filhos que tiveram elos parentais rompidos por uma separação conjugal malconduzida interferem na formação da personalidade, nos relacionamentos sociais e, sobretudo, na relação de amor entre pai/mãe e filhos.


Doutora em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (FFCLRP) e coordenadora do serviço de triagem e atendimento infantil e familiar na USP em Ribeirão Preto, Fernanda Kimie Tavares Mishima diz que as consequências da alienação parental podem ser vistas principalmente no campo das escolhas pessoais, no tipo de relacionamento que será vivido por este adulto alienado — seja amoroso ou de amizade —, porque sua confiança nas pessoas fica abalada.

 

“As pessoas têm dificuldade de olhar para isso porque não querem ter que pensar e agir sobre”, avalia a psicóloga Fernanda Mishima

 

“Os pais são as principais figuras na vida da criança e é muito saudável que ela possa confiar e nutrir respeito por ambos. Ver os pais respeitarem a opinião um do outro e sentir que há comunicação possível, que existe liberdade para falar o que se pensa, fortalece. Em contrapartida, pais que mentem, escondem e falam mal um do outro levam a criança a sentir medo de expor seus sentimentos e pensamentos, tornando-a mais submissa, deprimida, insegura, com menos autonomia e capacidade de decisão. Provavelmente se torne um adolescente inseguro, que pode achar comum situações de violência e ter dificuldade de discriminar o que seja amor”, afirma a doutora.


Habituada a lidar com esse tipo de caso, a terapeuta Denise Dias explica que a alienação acontece quando a criança é constantemente influenciada a distorcer sua crença sobre o pai ou a mãe. “É feita uma ‘lavagem cerebral’, onde são enfiadas ideias dentro da cabeça da criança — do tipo que o pai não presta ou que a mãe é louca —, para que ela tenha essa visão do pai ou da mãe. Bombardeada por essa falsa mensagem, a criança acaba distorcendo a realidade e crescendo com uma lacuna emocional. Nada justifica a alienação, é uma perversão, uma crueldade, uma tortura, um crime que, com muita frequência, pais, avós e tios cometem”, afirma.


Ambas as especialistas alertam que é bastante comum ver avós praticando alienação, desvalorizando as escolhas dos próprios filhos pelos parceiros diante dos netos, o que consideram muito ‘forte e pesado’ para as crianças ouvirem. “Tive o caso de uma avó que sempre ‘despejava’ sobre a filha — na frente das crianças —, diversas ameaças de situações que ela imaginava acontecerem quando estavam com o pai. Essa mãe, não compactuando com esse comportamento, dizia que já tinha muitos problemas reais para lidar e que a avó alienando seus filhos daquela maneira estava piorando as coisas”, conta Denise.

 

Denise Dias, terapeuta, aponta que a alienação acontece praticamente todos os dias, dentro de casa, também com casais não separados


Segundo a terapeuta, a situação é mais grave e corriqueira do que se imagina. “As pessoas pensam que a alienação parental está associada à disputa judicial pela guarda dos filhos, principalmente por causa do pagamento de pensão alimentícia, situação onde as crianças vivenciam verdadeiros ‘duelos de titãs’, mas não! A AP está muito mais naturalizada do que se pensa e acontece praticamente todos os dias, dentro de casa, com casais não separados que não se respeitam, onde é comum ouvir coisas do tipo ‘sua mãe é burra’ ou ‘não adianta pedir nada para o seu pai’. Com isso, a criança vai ficando dividida, tendo uma convivência difícil e achando natural estar com outra pessoa mesmo não estando tão afim, e leva isso para a vida adulta”, enfatiza Denise.


Ocorre que, para a maioria das pessoas, esse é um “campo minado”, como afirma Fernanda Mishima. “Todo mundo parece ter muito medo de falar sobre AP. É a história do ‘não ver para não ter que mexer’. Muitas vezes, no exercício da profissão, identificamos casos, mas precisamos ir com cautela para que os pais não ‘espanem’, porque é bastante comum reações do tipo: ‘Ah é, está falando isso de mim, então vou tirar meu filho da terapia!’ E quem paga o pato é a criança, que fica sem atendimento”, relata a psicóloga.


Os principais sinais que chamam atenção para a alienação acontecendo, segundo Fernanda, são de crianças mais agressivas, que respondem mais, ficam irritadas quando são questionadas, ansiosas, nervosas, que falam mais alto e chutam ou são mais deprimidas, ficam mais quietas, demonstram desânimo, medo e até choram. Também costumam ter problemas com colegas e dificuldades escolares, porque ficam dispersas, desatentas, já que sua mente se ocupa de questões fora da escola.

 

O único caminho possível, na opinião da psicóloga, quando um pai ou uma mãe percebe a alienação, mas não encontra respaldo legal ou terapêutico para cessá-la, é o diálogo maduro, sem ataques, com a criança. “É pesado, porque além de ser o foco da alienação, esse adulto ainda tem que acolher esse filho, mas é o único jeito. É preciso dizer claramente que o outro está falando tais coisas porque está magoado e orientar a criança a não acreditar, porque o filho, nesse momento, não está em condições de ver e também não quer sentir raiva do pai ou da mãe. No fundo, as crianças sentem medo de não ter esse amor”, avalia a psicóloga.

 

De fato e de direito


Apesar de reconhecida, a Síndrome de Alienação Parental (SAP) não é considerada uma doença psicológica pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ela foi descrita pelo psiquiatra forense norte-americano Richard Gardner, em 1985, como “uma perturbação da infância ou adolescência, surgida no contexto de uma separação conjugal, e cuja manifestação preliminar seria uma campanha realizada por um dos pais junto à criança para denegrir, rejeitar e odiar o outro”, caracterizando, ainda, o genitor alienante como uma pessoa doente, que deveria ser submetida a tratamento psicológico por conta da patologia sofrida.

 

A justificativa para descaracterizá-la como uma doença psicológica é de que não existem pesquisas científicas suficientes publicadas a respeito, revisadas por pares, para apoiar a sua inclusão na Classificação Internacional de Doenças (CID). De fato, a comunidade científica não parece motivada ao exercício de investigação do tema. Na USP em Ribeirão Preto, por exemplo, não foi possível encontrar um pesquisador específico da área.  


De direito, muito embora a Lei de Alienação Parental considere os conceitos de Gardner em sua elaboração, e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) caracterize a convivência familiar como um direito da criança — sendo dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público o assegurar, não são raros os casos de denúncias de alienação desconsiderados pela justiça.

 

“Não há dúvida sobre a existência do fenômeno ‘ato de alienação parental’, porém, não há estatísticas oficiais sobre casos comprovados e não é possível avaliar um aumento ou diminuição do número de casos em Ribeirão Preto. O que existe são muitos pedidos direcionados ao judiciário para reconhecimento destes atos, os mais comuns relacionados a dificuldades em visitar os filhos. Contudo, a maioria deles não é acatada devido ao que se apura durante o processo”, aponta o promotor de Justiça com atuação em Vara de Família, Daniel José de Angelis. Segundo ele, depois que a Lei 12.318 (de 26 de agosto de 2010) completou dez anos de vigência, muitos estudiosos do direito começaram a discutir os motivos de as decisões judiciais dificilmente reconhecerem os casos de alienação parental, mas tais discussões ainda não apontam uma conclusão. 

 

“O ideal seria prever sanções que atingissem somente o pai ou a mãe que praticasse o ato de alienação”, afirma o promotor Daniel de Angelis 

 

Níveis da Síndrome de Alienação Parental (SAP) - Richard Gardner 

 

Ligeiro ou estágio I (leve) – há visitações sem nenhuma dificuldade, no entanto, o genitor alienante faz uma campanha contra o outro e o menor demonstra sentimento de culpa por ser afetuoso com o genitor alienado. Embora não seja, tal difamação é tratada como algo normal e, neste estágio, 
os genitores podem reconhecer como o conflito afeta a criança. 

 

Moderado ou estágio II (médio) – o vínculo entre o genitor alienado e a criança começa a ser deteriorar por conta do intenso processo de desqualificação sofrido. O alienante e o menor tornam-se cúmplices, sendo comum acusações da criança quando o genitor alienado se explica. Com o afastamento do alienador e o passar do tempo, a relação pode se normalizar.

 

Grave ou estágio III (grave) – a criança está complemente perturbada, as visitas não ocorrem ou se tornam difíceis, o ódio contra o alienado é visível e o vínculo cortado após um longo período. A síndrome alcança seu grau máximo, não sendo necessário o alienante para desclassificar o genitor alienado, a própria criança passa a ser hostil ao genitor.

 

Casos e casos


Enquanto a ciência e o direito não chegam a conclusões, crianças permanecem ‘a Deus dará’, sendo diariamente submetidas a atos de alienação por parte daqueles que deveriam ser os responsáveis por compreender sua vulnerabilidade e preservar seu direito a um convívio familiar saudável, como preconiza o ECA.

 

“Os adultos que cometem alienação parental estão tão focados em agredir e humilhar o outro adulto, que não raciocinam que estão prejudicando a criança. Se um adulto comete alienação comigo, que sou adulta, eu tenho condições de avaliar se a acusação é real ou irreal, mas uma criança está sempre suscetível ao que dizem”, ressalta Denise Dias. 


Psicóloga no Tribunal de Justiça de São Paulo e doutoranda na USP Ribeirão Preto, Ana Paula Medeiros afirma que, geralmente, a AP começa branda, com atitudes para dificultar as visitas, depois parte para um impedimento de visitas, onde o genitor alienado fica sem acesso nenhum à criança, e nos casos mais graves, chega a falsas denúncias de agressão e de abuso sexual para impedir o contato entre ambos.

 

“Recebemos muitos processos, a maioria de pais que entram contra a mãe, porque normalmente ela detém a guarda, mas é muito comum durante a avaliação ficar evidente que são pais ausentes, e quando falamos que vão ter que cuidar dos filhos, logo desistem da ação. Temos visto com muita frequência também casos de pais que entram com pedido para ter contato com os filhos e, no meio do processo, o juiz acaba revertendo a guarda. Foi o caso de uma mãe que não concordou com a visita. Então, o juiz estipulou multa e ela continuou não autorizando nem pagando a multa. Após receber advertência, ela autorizou a visita e, em seguida, denunciou o pai por abuso sexual, que não se confirmou em investigação criminal, levando o juiz a reverter a guarda”, conta a psicóloga. 


Segundo Ana Paula, são comuns casos de mães alienadoras, que queimam ou jogam fora presentes dados pelos pais, dizendo coisas do tipo ‘vai fazer mal’, ‘tem veneno’, ou ‘está o demônio’. “Há casos extremos, como o de uma mãe que mordeu o corpo do filho depois de uma visita para acusar o pai. No final, a criança acabou contando que foi a mãe e ela perdeu a guarda”, relata a psicóloga. Neste ponto, acontece um revés que coloca a Lei de Alienação Parental em discussão. No caso narrado, ficou comprovada a falsa denúncia da mãe, que motivou a inversão de guarda, mas o que dizer de denúncias de abusos não comprovadas — pela natural dificuldade nestes casos —, em que se invertem os papéis de criminoso e vítima, e a mãe denunciante se torna ré em um processo de alienação parental e denunciação caluniosa, podendo perder a guarda da criança, em uma sanção prevista pela lei, colocando, assim, a vítima à mercê de seu abusador? 

 

A psicóloga Ana Paula Medeiros tem visto muitos casos de pais que entram com pedido para ter contato com os filhos e, no meio do processo, o juiz acaba revertendo a guarda 


Utilizando-se da referência à Declaração Universal dos Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil, onde está determinado que “a criança da tenra idade não será apartada da mãe” e apoiando-se no argumento de que a separação materna causa danos comprovados à saúde mental da criança, enquanto a SAP não apresenta comprovações científicas de seus malefícios, analistas questionam a aplicação de sanções contra a alienação parental e solicitam a sua revogação, afirmando que a lei abre brecha à ação de pais pedófilos.


A discussão gira em torno da dúvida se a criança seria a maior beneficiada com a lei ou os adultos em conflito. O advogado Silvio César Oranges afirma que ela ajuda “e muito” nos casos em que o direito da criança e do adolescente de ter o(a) genitor(a) em sua companhia está sendo impedido por manipulação psicológica do guardião. “Para quem milita na área do Direito de Família, essa lei tem sido de muita valia na proteção dos interesses do jurisdicionado. Algumas decisões ao longo do tempo podem não ter atingido a prestação jurisdicional desejada, especialmente quando não se consegue apurar a alienação parental, o que não quer dizer que a lei não seja boa. Talvez alguns ajustes devam ser feitos, a exemplo de outras leis, mas sua revogação impedirá mecanismos de proteção à criança e ao adolescente”, avalia Silvio.


Para o promotor Daniel de Angelis, a principal dificuldade existente na lei atual é estipular uma sanção que pode afetar os filhos, como, por exemplo, a inversão da guarda. “Psicólogos especialistas mostram que muitos outros fatores interferem no comportamento das crianças e dos adolescentes, de forma que a solução final não pode ficar adstrita somente às sanções pelos atos praticados. O ideal seria prever sanções que atingissem somente o pai ou a mãe que praticasse o ato de alienação”, pontua o promotor. 

 

“A revogação da lei de alienação parental impedirá mecanismos de proteção à criança e ao adolescente”, alerta Silvio César Oranges, advogado

 

Filmes que ajudam

 

• A morte inventada:  Documentário onde pessoas contam a vivência que tiveram  com alienação parental.

 

Custódia: Aborda violência doméstica e os dilemas enfrentados  pela criança, através da  narrativa de uma batalha na Justiça. Diante de uma determinação de guarda compartilhada, a mãe tenta proteger o filho das práticas violentas do pai. 

 

História de um Casamento: Um dos filmes mais premiados de 2019. Trata da separação de um casal em que, em meio a uma guerra judicial, o mais prejudicado é o filho pequeno.

 

• Uma Babá Quase Perfeita: Comédia clássica de 1990, que trata de forma bem-humorada o drama de um ator recém-divorciado, desempregado e afastado da convivência diária com os filhos, que decide se disfarçar de babá para passar mais tempo com as crianças.


Fotos: Divulgação

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