Amor fraterno

Amor fraterno

Coletivo Todos na Fraternidade leva apoio material, social e emocional para comunidade carente de Ribeirão Preto

Desde 2021, a cada terceiro sábado de cada mês, a esquina das ruas Arlindo Brunelli com Capão Bonito, no Jardim Aeroporto, amanhece tomada por uma fila de mulheres, a maioria moradora nas comunidades mais carentes do complexo. Muitas vezes acompanhadas de filhos ou companheiros, elas aguardam o início do que apelidaram de “xepa”, uma distribuição de alimentos e itens básicos de higiene que o coletivo assistencial Todos na Fraternidade arrecada por meio de doações. De forma rápida e organizada, é montada uma estrutura de distribuição de 100 a 120 kits – o número varia conforme o total arrecadado em cada mês– contendo itens de higiene e cesta básica, legumes, frutas e até ração para cães. Enquanto isso, do outro lado da rua, outro grupo de voluntários coordena um brechó gratuito no qual cada contemplado pode escolher até cinco peças de roupas e calçados dispostos em araras e mesas.

 

Terminada a xepa, é realizada uma entrega de cestas básicas a 40 mulheres, as quais as famílias são assistidas pelo coletivo em outros projetos: o “Dando Voz às Mulheres” (curso de empoderamento emocional); o curso de Empoderamento Econômico; e o grupo de adolescentes “Nós no Sonho”, no qual educadoras voluntárias conduzem discussões e reflexões sobre temas de interesse desse público-alvo. Além disso, sempre que uma assistida aparece com uma demanda urgente, como necessidade de um dentista, psicólogo, uma caixa d’água ou até documentação civil – algumas nunca tiveram sequer carteira de identidade –, os voluntários se mobilizam para conseguir – houve casos em que foram arrecadados materiais para construção de cômodos de alvenaria para famílias que viviam em habitações insalubres.

 

“Desde o início do trabalho era clara pra gente a ideia de que não podíamos ficar só no assistencialismo. Tínhamos que dar comida, mas também um caminho próprio para elas”, conta a historiadora e professora universitária Sandra Molina, que atua como uma espécie de coordenadora dos trabalhos. “Focamos em assistir só mulheres porque, historicamente, elas são as chefes de família. As pesquisas mostram que a pobreza é feminina. E uma mulher que consegue romper o ciclo de pobreza leva junto a família inteira. As que têm companheiro não podem contar com eles necessariamente o tempo todo, mas a maioria é sozinha e os filhos são de companheiros diferentes”, explica Sandra.

 

O INÍCIO

 

O embrião do que veio a se tornar o coletivo foi o projeto Guarda-Chuva, criado por iniciativa de cinco companheiros de atuação no Instituto Paulista de Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC). Além de Sandra Molina, a jornalista Adriana Silva, a historiadora Lilian de Oliveira Rosa, o jornalista Guilherme Nali e o fotógrafo Ibrahim Leão, preocupados com o empobrecimento da população provocado pela pandemia de coronavírus, em 2020. Baseado no conceito de “moeda verde”, já adotado em outros países, consistia em trocar trabalho por trabalho. Juntaram-se ao grupo à época voluntários que permanecem até hoje no Todos, como a funcionária pública aposentada Ivone Aparecida Fonsini, as aposentadas Gislene Soares Barbosa, Maria das Graças Francisco Teodoro e seu marido, entre outras pessoas.

 

Até setembro de 2020, o Guarda-Chuva atendeu com cestas básicas mensais 60 famílias dos bairros Maria Casagrande, Vila Virgínia, Parque Ribeirão Preto, Jardim Progresso e Jardim Aeroporto, mas uma parte do grupo percebeu uma melhora na situação de famílias e parou com o trabalho. Entre as famílias que não melhoraram estava uma do Jardim Aeroporto. “Começamos a levar comida para eles e foi assim percebemos que ali havia muita necessidade”, lembra a coordenadora. O ano terminou e o projeto Guarda-Chuva também, mas uma parte dos voluntários quis continuar ajudando famílias carentes. Foi como começou a surgir o coletivo, cujo nome nasceu no Whatsapp. “Como éramos poucos no começo, criei um grupo com o nome ‘Três na Fraternidade’, que depois virou ‘Quatro na Fraternidade’, mas foi crescendo tanto que uma hora coloquei ‘Todos na Fraternidade”, diverte-se Sandra.

 

DESMAME

 

A partir de 2021, o grupo recebeu novas adesões, como a confeiteira Camila Martins, a administradora de empresas Juliana Salvetti e a professora Ieda Maria Daniel, entre outras. Junto dos egressos do Guarda-chuva, elas formaram, ao longo dos últimos três anos, um núcleo decisório democrático e de liderança descentralizada, que passou a se reunir semanalmente para definir ações. Logo de início, decidiram delimitar o atendimento a 40 famílias do Jardim Aeroporto, mas com o objetivo de ir além do assistencialismo, com foco no “desmame” futuro das assistidas.

 

Os voluntários passaram, então, a movimentar seus contatos com o objetivo de conseguir emprego para as mulheres. Mas muitas faltavam às entrevistas, e as que iam e conseguiam o trabalho, não o mantinham por muito tempo. Também foram custeados cursos de manicure, cabeleireira e trancista (de cabelo afro) para algumas delas, mas havia alta taxa de desistência. Os motivos para tudo isso só seriam entendidos mais à frente.

 

Em 2022, uniram-se ao trabalho a assistente social Elisabete Regina Negri e a terapeuta holística há 24 anos Glória Gomes, que forneceria tanto explicação quanto alternativa de solução para a dificuldade das assistidas em manterem-se nos empregos. Aliando intuição e experiências anteriores com populações de baixa renda, ela concluiu que faltavam às mulheres autoestima e autorresponsabilidade, uma consequência do meio em que cresciam e continuavam a viver depois de adultas, apenas reproduzindo os modelos apreendidos com as gerações anteriores, impregnadas de machismo estrutural.

 

Glória ofereceu então ministrar um modelo de curso de empoderamento emocional, que já tinha formatado. “Foi muito interessante o trabalho da Glória com as mulheres e também para nós, porque passamos a vê-las saírem chorando das dinâmicas. Soubemos ali que a coisa ia funcionar”, descreve Sandra.

 

Mas não foi fácil conseguir um espaço para receber o curso. Após muitas recusas, a igreja católica do bairro foi a única a abrir suas portas. Mas o trabalho permaneceu lá por pouco tempo, porque o calendário de eventos da igreja chocar muito com os dias de curso. Além disso, o coletivo continuou “dando cria” a novos projetos, como o curso de Empoderamento Econômico, que dá seguimento ao de Empoderamento Emocional. Com duração de seis meses, passou a ser ministrado pela administradora de empresas Juliana Salvetti. Segundo ela, muitas mulheres que chegaram a este segundo módulo conseguiram empregos e mantiveram-se neles. Outras seguiram acomodadas ao modo que sempre viveram. “Por isso fomos aprendendo a fazer as entrevistas para identificar as mulheres que têm dentro delas a vontade de mudar. Porque várias não querem. Essas vão para a xepa”, acrescenta Ieda.

 

Hoje, a xepa e as cestas para as assistidas funcionam como atrativo para os cursos já que o coletivo estabeleceu a participação neles como condição para receber a cesta. Mas nos dois casos as assistidas são atendidas pelo prazo limite de seis meses, ao fim dos quais abrem vagas para outras candidatas na fila. Se uma assistida faltar a duas aulas consecutivas do curso sem justificativa, também perde a vaga.

 

NÓS NO SONHO

Os cursos foram transferidos para salas da escola municipal Jaime Monteiro de Barros, no Jardim Aeroporto, graças ao apoio do diretor Alexandre Marcelo Divino. Novos voluntários continuaram se aliando ao trabalho, entre eles Renato Caetano Silva e Mônica Jaqueline de Oliveira, que passaram a entreter os filhos das assistidas, que os levavam junto por nunca terem com quem deixá-los. “Eles são uma bênção! Mas os coitados cuidavam de todas as crianças, de zero a 16 anos, no começo”, lembra Ieda, que decidiu pensar um formato de trabalho direcionado aos adolescentes.

 

No início de 2023, ela agregou o trabalho de duas psicólogas para montar o “Nós no Sonho”, um grupo de suporte cuja ideia é ouvir os jovens e dar a eles o que não têm na escola ou em casa, como discussões e reflexões sobre assuntos de seu interesse e a própria realidade. “São eles que nos dizem o que querem discutir e conversar. Fizemos as regras do grupo juntos e eles deram o nome”, conta Ieda, Mas a professora ainda não está satisfeita, pois faltam voluntários que coordenem as crianças de zero a 7 anos de idade, e outros o grupo de 8 a 12 anos, para não ficar tudo só nas costas de Mônica e Renato. Por enquanto, apenas a estudante depsicologia Ana Castelete faz um trabalho mais direcionado ao público infantil. “É muito importante ter voluntários com as crianças pequenas porque é nesse grupo que estão os traumas. E esses traumas são o que fazem as mulheres que nós atendemos. Então, se conseguirmos amenizar os traumas das crianças de zero a 7 anos, teremos uma sociedade melhor daqui 15 anos. Esses dois braços que estão faltando e precisam ser consolidados”, arremata Ieda.

 

FURANDO A BOLHA DA POBREZA

 

A família de Edilene do Socorro Cruz da Silva esteve entre as primeiras assistidas pelo coletivo Todos na Fraternidade, no Jardim Aeroporto. Foi para ela que os voluntários conseguiram arrecadar materiais para a construção de uma casa de alvenaria de dois cômodos e um banheiro, além dos móveis e eletrodomésticos com os quais a mobiliaram. Até então, Edilene, o marido e os dois enteados viviam em um barraco de cômodo único, improvisado com materiais descartados, e dispunham de um banheiro precário, que tinha um cano de onde saía água fazendo as vezes de chuveiro. “Quando contei ao pessoal do coletivo que ratos haviam furado todas as caixas de leite doada às crianças, eles decidiram fazer o mutirão para melhorar nossa moradia”, conta a ex-assistida.

 

Mas Edilene nunca se acomodou. Conforme percebia, com o suporte dos cursos, que contava com meios para melhorar de vida, corria atrás. Em 2023, seu marido foi chamado de volta para o emprego que perdeu antes da pandemia, numa indústria de Sertãozinho. Seus companheiros de trabalho se cotizaram para conseguir uma casa em um conjunto habitacional popular para sua família, que entrou no imóvel já mobiliado em novembro de 2023. O padrão de vida deles se elevou significativamente. Quando fala do tempo que foi auxiliada pelo Todos na Fraternidade, Edilene se emociona. “Sou muito grata a todo o suporte, apoio e amor que recebemos. Tenho saudades de todos. Espero que continuem o trabalho lindo, que foi o pontapé inicial pra gente melhorar de vida”, diz.

 

SOBRE MOTIVAÇÕES

Perguntamos a alguns dos voluntários do coletivo o que os motiva a trabalhar pelo próximo. Leia as respostas:

 

“Ser um ser humano melhor! Vou até a comunidade por mim! Porque na convivência com elas, aprendo o tempo todo”.

Sandra Molina, historiadora e professora universitária

 

Eu acredito na educação como forma dos seres humanos se relacionarem melhor e terem vida mais digna. O que me moveu foi a oportunidade de trabalhar isso junto a mulheres e jovens. O conhecimento é poder e ninguém tira da gente. É a única liberdade!”.

Ieda Maria Daniel, professora

 

Melhorar como pessoa, aprender, evoluir. Também preciso estar com pessoas que pensam diferente de mim, assim aprendo a ter mais paciência, tolerância, me calar, me acalmar. O grupo me acolhe e me ensina isso”.

Ivone Aparecida Fonsini, funcionária pública aposentada

 

Saber que de alguma maneira posso colaborar para amenizar o sofrimento das pessoas, seja com alimentos ou uma palavra de incentivo para que elas consigam um trabalho, voltem a estudar e com isso ter uma vida melhor”.

Gislene Soares Barbosa, comerciante aposentada


Foto: Luan Porto

Compartilhar: