Antes e depois de estacionar
Guardadores de veículos abordam motoristas em diferentes áreas de Ribeirão Preto

Antes e depois de estacionar

Situação dos chamados “flanelinhas” vai além de impasse na hora de escolher a vaga do carro: questão já foi parar na Justiça e se tornou dilema público em Ribeirão Preto

Difícil encontrar quem nunca tenha se deparado com guardadores de carros nas ruas de Ribeirão Preto. Os chamados “flanelinhas” se oferecem para tomar conta do veículo em troca de dinheiro — algumas vezes um valor estipulado, outras, “ao gosto do freguês”. Áreas movimentadas, como a Avenida Nove de Julho e o entorno do Estádio Santa Cruz, no bairro Ribeirânia, são os principais locais de atuação dos guardadores. Em dias de partida do Botafogo, por exemplo, chegam a ser cobrados R$ 50, em dinheiro vivo, para fiscalização do veículo.
Promotor licenciado, vice-prefeito entrou com ação civil pública contra atividades de guardadores de carros irregulares
Em 2010, o então promotor Carlos Cezar Barbosa, atual vice-prefeito de Ribeirão Preto, ajuizou ação civil pública contra o Município e o Estado, solicitando que a Justiça determinasse a atuação da prefeitura e da Polícia Militar (PM) para coibir a ação dos flanelinhas. Um inquérito civil havia sido instaurado em 2009 para apurar a situação e a Promotoria chegou a propor à administração municipal a regulamentação da atividade. Em 2013, uma decisão judicial acatou a ação civil pública, obrigando o município a fiscalizar a prática, sob multa de R$ 1 mil por irregularidade constatada. No entanto, seis anos depois, a indefinição continua e nenhuma autuação foi registrada.

À época da ação, Carlos Cezar tentou emplacar, junto à então prefeita Dárcy Vera, a criação de um trabalho para regularizar e regulamentar a atividade dos flanelinhas. “A ideia desse projeto era criar uma brigada voluntária de guardadores de veículos. Cadastraríamos todos os civis que exercem estas atividades nos mais diversos pontos da cidade. As pessoas passariam por uma triagem. Por exemplo, se possuíssem ficha criminal, não poderiam atuar. Não podemos admitir que alguém fora da lei exerça uma atividade como essa. Também pensamos em criar uma avaliação social para saber quais medidas ele necessitaria na atividade e alguns outros requisitos”, afirma.

A brigada funcionaria de um modo diferente do que é praticado pelos guardadores atualmente. Os fiscais não poderiam cobrar, mas receberiam gorjetas, pois, segundo o vice-prefeito, quando uma pessoa é cobrada, pode ser caso de extorsão. “É uma conduta que não podemos admitir, pois isso cria um constrangimento. Essas pessoas poderiam até auxiliar a Polícia Militar. Isso mudaria a imagem que os flanelas têm diante do público. Passaria a ser uma atividade simpática com um guardador de veículos uniformizado. Na época, a prefeita não aceitou e achou que o projeto não era viável”, diz.

No Brasil, a profissão é aceita legalmente somente nas cidades de Belo Horizonte (Minas Gerais), São Luís (Maranhão) e Brasília (Distrito Federal), onde o trabalho somente é remunerado mediante consentimento do motorista.
“Se você não paga, ainda corre o risco de ter problemas no retorno”, diz Felipe
O técnico em informática Felipe Lino, de 26 anos, é contra os flanelinhas. “Você já corre o risco de deixar o veículo na rua e ter de pagar para um estranho não traz garantia nenhuma de segurança. No entanto, se você não paga, ainda corre o risco de ter problemas no retorno”, reclama.
“Deveria haver um policiamento severo fiscalizando esse pessoal”, afirma André
O alfaiate André Lucas, de 29 anos, compartilha da mesma opinião. “Deveria haver um policiamento severo fiscalizando esse pessoal. Geralmente, eles são muito agressivos e, se você não der o dinheiro, eles podem quebrar alguma parte do carro, arranhar ou causar confusão”, afirma.
Manoel Carvalho deixou de dirigir por medo da violência na cidade
Com medo, o aposentado, Manoel Carvalho, de 79 anos, conta que o incômodo é tamanho que até deixou de dirigir. “Eu acho que os flanelinhas não podem existir. Isso atrapalha o trânsito. Eu dirijo, mas com a minha idade avançada opto por ir de ônibus e não enfrentar a dor de cabeça que é o contato com essas pessoas que se denominam guardinhas”, comenta.
Para professor de Sociologia, falta de oportunidades faz com que atividade irregular seja meio de vida para algumas pessoas
Falta de oportunidade

O professor de Sociologia Silas Nogueira entende o desgaste causado pelos guardadores de veículos, mas considera que eles encontraram, nesses serviços, uma chance de sobrevivência. “Nesse sentido, fica clara, à primeira vista, a ausência de políticas públicas. Faltam políticas que possam atender a população nesse quesito, que é também de segurança. O cidadão comum não quer deixar o carro exposto com esses cuidadores, pois, em teoria, todos pagam por essa segurança e bem-estar coletivo e social não privatizado já nos impostos. Por outro lado, essas pessoas que se tornam flanelinhas são de camadas populares de grande carência. Diante do desemprego, que é uma realidade no país há muito tempo, e da falta de alternativas, elas praticam essas atividades que dão sustento e algum ganho para a sobrevivência própria”, afirma Silas.

O especialista não acredita em criminalização. “É uma forma de garantir a subsistência, mas, muitas vezes, às custas de um cidadão que não tem nada com isso. Há uma falha muito acentuada no poder público no sentido de oferecer ao cidadão condições para a sua própria segurança. Essa ausência faz com que indivíduos ocupem esses espaços de maneira ilegal”, conclui. 
“há uma falha muito acentuada no poder público, no sentido de oferecer ao cidadão condições para a própria segurança”, afirma especialista
De olho


O Departamento de Fiscalização Geral de Ribeirão Preto afirma que, embora exista a decisão judicial, ainda não há lei que determine que o trabalho seja feito — ou seja, não existe competência legal da pasta para fiscalizar. Ainda de acordo com o departamento, os casos envolvendo flanelinhas que configuram crime, são de competência da Polícia Militar.

Sobre as políticas municipais sociais, a Secretaria Municipal de Assistência Social informa que conta com o Serviço de Abordagem Social (Seas) que aborda pessoas em situação de rua e, também, ocorrências de trabalho infantil. 

Diante das informações prestadas pelos abordados, o Seas encaminha ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que direciona o atendimento da família para acompanhamento dos Centros de Referência Especializados da Assistência Social (Creas) e dos Centros de Referência da Assistência Social (Cras), com intuito de superar essa violação de direitos. 

Segundo a prefeitura, também é disponibilizado o Disque Denúncia 161 (Fale Assistência), em que todos os cidadãos podem registrar ocorrência de trabalho infantil, já que em muitos dos casos os flanelinhas são menores de idade. Essas denúncias são redirecionadas aos setores competentes. 

Procurada pela reportagem, a Polícia Militar informou que realiza o policiamento preventivo e que prioriza o patrulhamento “proativo para a segurança da comunidade, contra crimes de furtos e roubos de transeuntes”, objetivando ocupar as regiões de maior incidência das ocorrências.

Ainda por nota, a PM pede que a população evite contribuir com valores em espécie, já que acredita que isso contribui para o aumento de pessoas pedindo dinheiro nas ruas. A polícia também alerta para os cuidados, como evitar o uso de objetos de valor ou carregar altas quantias de dinheiro.

Com a palavra

Embora irregular, o trabalho de fiscalização de veículos é realizado diariamente em Ribeirão Preto. Um guardador conversou com a equipe de reportagem da Revide enquanto trabalhava na partida de futebol entre Botafogo e Bragantino, pela Série A do Campeonato Paulista, disputada em 8 de março. Ele optou por não se identificar para não correr o risco de ser banido pelos colegas ou multado por agentes da polícia. “É o meu ganha-pão. Trabalho nesses eventos, pois sei que o fluxo de pessoas que vão estacionar os carros será grande. Não penso se tratar de algo errado, pois trabalhamos para a população. É uma fonte de renda para colocar comida em casa”, disse ele, que opta por não cobrar as pessoas, mas sempre ganha uma gorjeta.

No país

Atuar como flanelinha, de acordo com a lei brasileira, pode constituir uma contravenção — exercício ilegal de profissão — ou mesmo um crime, se associado à prática de extorsão, formação de quadrilha ou loteamento de espaço público. O profissional pode receber como pena de três meses a um ano de prisão.

A punição por ameaça ou violência praticada por flanelinhas poderá ter a pena aumentada para até quatro anos. A comissão de juristas que elabora o anteprojeto do novo Código Penal aprovou aumento da pena para atos de constrangimento ilegal. Quando associada à violência ou grave ameaça, a prática de exigir dinheiro para guardar carros em vias públicas poderá ser punida por essa nova regra.

Para completar

O nome "flanelinha" vem do uso em decadência de uma flanela para limpar os vidros dos automóveis. O termo se espalhou por todo Brasil e agora, mesmo sem as flanelas, os cuidadores ficaram conhecidos pelo nome.

O Brasil é o lugar mais caro do mundo para se contratar os serviços de um flanelinha. A informação vem de um estudo realizado pela Universidade Federal de Sucre, na Bolívia.

O Estudo Geopolítico da Atuação dos Flanelinhas, também conhecido como EGAF, é realizado anualmente desde 1995 e, até 2010, tinha a Índia na liderança como local de maior quantidade de flanelinhas.

No Brasil, o custo médio do serviço é de R$ 5,34, no entanto, em shows e jogos esportivos pode chegar até R$ 50.

A profissão é aceita legalmente em algumas cidades brasileiras. Entre as principais, as cidades de Belo Horizonte, Goiânia, Trindade São Luís e Brasília.

Em Ribeirão Preto, guardadores cobram mensalidade em alguns locais, inclusive com 13ª parcela no fim de ano.

Nomes comuns no Brasil: Flanelinha, Guardador, Arrumador, Flanela.

Texto: Pedro Gomes | Fotos: Ibraim Leão

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