As angústias do homem moderno

As angústias do homem moderno

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes, cerca de 200 milhões de pessoas usam drogas ilícitas pelo menos uma vez por ano

Os dados foram publicados para quem quiser conferir: o uso de drogas lícitas e ilícitas, álcool e tranquilizantes, cresce ano a ano em todo o mundo. Não só por causa da oferta de produtos pelo crime organizado e indução ao consumo pelas campanhas publicitárias das indústrias de tabaco e bebidas alcoólicas. Pouca gente prestou atenção que boa parte desse comportamento tem a ver com a adoção de novos valores adotados pela sociedade de consumo, que procura anestesiar o sofrimento ou mesmo o próprio desconforto, a qualquer preço. Numa sociedade estressada, há uma verdadeira compulsão pelo relaxamento.

Segundo dados do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes, “cerca de 200 milhões de pessoas — quase de 5% da população entre 15 e 64 anos — usam drogas ilícitas pelo menos uma vez por ano. Cerca de metade dos usuários consome drogas regularmente; isto é, pelo menos uma vez por mês. A droga mais usada no mundo é a cannabis (maconha) e haxixe.”

“Em torno de 4% da população mundial entre 15 e 64 anos utiliza cannabis, enquanto 1% consome estimulantes do grupo anfetamínico, cocaína e opiáceos”, diz o relatório das Nações Unidas. “O consumo de heroína é problema em 75% dos países do planeta”. Já o uso abusivo do álcool é grande também desde a adolescência, invadindo as universidades e as rotinas familiares. A venda de tranquilizantes no Brasil, por exemplo, bate recordes em todo o mundo, mesmo com receita médica.

Essa busca pela “paz interior” — mesmo provisória e com sérias consequências para a saúde e para o bolso — é agravada por outros fatores que compõem o painel quase surrealista da sociedade moderna.

ANGÚSTIA E PREVISÃO
O mundo moderno, segundo o filósofo Isaías Pessotti, “é particularmente ansiógeno. Ele é produtor de angústia a toda hora”. Pessotti lembra que angústia — palavra que tem a mesma raiz de ansiedade — está no centro do sofrimento existencial. Esse estado emocional acompanha a humanidade ao longo da história. E é retratado intensamente na literatura, filosofia e artes em geral. Só que atualmente as condições que geram a angústia são maiores. “O ser humano é por definição alguém que antecipa prejuízo, sofrimento, mas sem plenos poderes para impedir que isso aconteça. Essa situação de ansiedade faz parte da condição humana. Eu digo para os meus alunos: se você fosse uma minhoca, não teria ansiedade, porque não anteciparia nada. Um dia alguém te pisa e acabou. Se você fosse anjo, anteciparia muito mais, mas teria poderes que o homem não tem. O homem, portanto, está entre a minhoca e o anjo: ele antecipa danos, fica apreensivo esperando a desgraça e se percebe impotente para evitar, quase sempre, as desgraças que espera. Essa é a situação típica de ansiedade: perceber-se ameaçado e perceber-se ao mesmo tempo impotente para evitar aquilo que se teme.”

Engrenagem x Pessoa
Pessotti cita o filósofo Kirkegaard, do século XIX, que já dizia que quanto mais possibilidades o homem tem, maiores são suas angústias potenciais. O problema é que o mundo de hoje oferece mil possibilidades. Não de se realizar como pessoa. “De se realizar perante o grupo. Então, a pessoa vale pelo que tem, pelo que produz e pelo que consome. O que você sabe, o que dá para os outros, isso não interessa. Só o que o grupo pode aplaudir. O que é típico de uma sociedade capitalista que valoriza o sucesso, a eficácia e a eficiência”, explica Isaías Pessotti.

Ganhar dinheiro é a meta, não apenas para sobreviver, mas para dizer que tem e mostrar que tem. As pessoas se esforçam para sair com o carro da moda para serem respeitadas. “E você se percebe numa engrenagem que exige, exige, exige, e está cada vez mais pobre como pessoa. Porque você está cumprindo regras dos outros. A sua identidade está sendo definida de fora. E não pelo que você sente, quer ou pretende saber”, alerta.

Pessotti está preocupado com o fato de que a pessoa tem apenas que dar lucro para a empresa, deixando de ficar com a família, ir pescar, ler um bom livro ou fazer aquilo que está de acordo com seus valores pessoais. “O que é importante para você é decidido pela moda e, fundamentalmente, pelo capitalismo, que cria essa necessidade para vender o produto. É o mercado impondo a busca de uma identidade falsa, de uma importância falsa. Essa busca de status é imposta pela cultura atual”, insiste o filósofo.

Psicologia x agências de controle
Isaías Pessotti fez pesquisas de laboratório e lecionou psicologia médica na Faculdade de Medicina da USP, de Ribeirão Preto — antes de se aventurar na literatura e ganhar um Prêmio Jabuti como escritor de ficção. Uma trajetória pessoal coerente com sua própria análise da realidade social. Para ele, o principal papel do psicólogo atualmente é despertar e iluminar as pessoas. — “Minha briga dentro da psicologia, agora que conhecemos os processos de controle do comportamento, é dizer ao cidadão como ele é manipulado cada minuto. Pela Rede Globo, pela publicidade, pela mídia em geral, pelo governo, pelo candidato local, pela polícia, ONGs; somos de tal modo controlados de fora, que a forma da gente se achar e escapar disso é conhecer os processos que nos controlam’ — alertou, frisando que boa parte da angústia é sentir-se impotente diante dos controles que são exercidos de fora sobre a pessoa.

Pessotti dá exemplos de como a propaganda controla o quitandeiro, a menina que quer ser modelo, se a pessoa deve comprar esse e não outro refrigerante, como o governo engana, assim como o candidato tal seduz. “Portanto, conhecer esses processos de controle é a condição de libertação desse sistema. Tecnicamente chamamos de agências de controle. Você é controlado por uma agência chamada publicidade, outra governo, poder econômico, banco…”

Poder e reflexão
E como o sistema continua manipulando as pessoas? Isaías Pessotti lembra que ter poder é ter a posse daquilo que o outro precisa. E exercer o poder é “dar ou não dar o que o outro precisa, desde que faça ou não o que interessa. Votar, comprar, aparecer para bater palma…Todo exercício do poder é exploração da necessidade alheia.”

O fato da pessoa acabar se conformando com valores que não escolheu, mesmo que não tenham nenhuma importância para ela, é também consequência da falta de reflexão. “É forma de alienação. Essa reflexão sobre si mesmo é impedida hoje por vários motivos: primeiro por causa da correria e a urgência de satisfazer isso e aquilo. A pessoa não consegue ficar sozinha consigo mesma porque se percebe vazia e foge disso. Se percebe “pau mandado” pela propaganda, pela firma, governo; um bobo alegre no mundo servindo no mundo a mil controladores e se desgastando. E deixando passar pescaria, churrasco, brincar com o filho; ele percebe que está jogando fora tudo isso. E não admite refletir sobre isso…”

Obrigado a ser feliz
Outra fonte de angústia que se criou, segundo o filósofo, é o aumento das possibilidades de doenças. “Hoje em dia se criou uma forte preocupação de estar sempre saudável, num mundo que trabalha desde a produção de alimento para você, pouco ligando para a saúde. Quase toda semana, a tevê aparece com uma doença desconhecida. É uma angustia que penetrou na vida urbana de hoje, de maneira avassaladora.”

Pessotti critica o que chama de “psiquiatrização da vida”, essa busca de uma sanidade total e que é uma coisa angustiante. A psiquiatria lista hoje centenas de doenças passíveis de serem diagnosticadas. “Isso é bobagem pura, é grilagem que a psiquiatria americana fez sobre problemas da neurologia, da psicologia. Tudo virou problema psiquiátrico.” Pessotti afirma que o maior “chute” que acontece hoje em dia é atribuir qualquer tristeza ou desânimo a quadro de depressão. “Sempre que a vida não está boa e eu fico chateado, estou deprimido? Não, é que você quer se conformar com um padrão de sanidade ideal que te venderam via propaganda para vender remédio e sucesso de certos profissionais da área médica. Você se sente obrigado a corresponder àquele padrão. Você é obrigado a ser feliz”, ironiza, repetindo que a vida é dura mesmo. “Tem tropeço, perda, prejuízo, tem fracasso, escorregão, gafe. O pessoal não se aceita assim.”

Pessotti faz questão de dizer, se apoiando numa frase da filosofia existencialista, que o homem nasce condenado a ser livre e condenado a escolher. E a pagar o preço das escolhas. “Você só sente o peso das asas quando você as abre”, finaliza o professor.

Excesso de informação e falta de significado
Não é só álcool e droga que dão “barato” e efeito colateral: o excesso de informação também provoca uma excitação extraordinária dos sentidos, ativa as sinapses entre os neurônios e pode causar uma “indigestão” intelectual. Quem nunca passou pelo menos um dia com o rádio ligado ouvindo todos os jogos do campeonato, leu de dois a três jornais em ritmo acelerado e depois ficou de cinco a seis horas diante do horário nobre e da madrugada da TV misturando canal aberto com o canal a cabo? Tem os que, zapeando, assistem ao mesmo tempo dois filmes, novela e um programa de entrevista. E ainda de quebra tenta ler aquele articulista do jornal. Depois vem o desconforto emocional. É aquela impossibilidade de metabolizar milhares de informações visuais e auditivas, com um pouco de reflexão.

O psicanalista José Cesário Francisco Jr, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Ribeirão Preto, entende que a falta de um “processador” mental, que possa dar significado ao volume de informações da mídia, da internet e das exigências da sociedade de consumo, impede a digestão dessas informações. O que provoca e agrava ao mesmo tempo situações angustiantes. “A falta de capacidade de processar informações e de lidar com nossas angústias é o início desse problema. Além disso, todos nós precisamos do outro. O número um nosso é o número dois. Dependemos do outro para comunicação, sob pena de sentir-se só e dependente….Como não existe analista sem analisando, repórter sem entrevistado”, compara o psicanalista, que gosta de se apoiar em Fernando Pessoa, na hora de dar significado às coisas. “Fernando Pessoa diz que, para a gente poder dar significado às coisas que temos, precisamos de cinco qualidades: intuição, empatia, inteligência, compreensão e o que ele chama de o Santo Anjo da Guarda. O que significa exatamente isso, ele não diz, mas a gente intui”, garante enigmático o psicanalista.

Consciência da finitude
Além dos problemas da sociedade atual, que despersonaliza a pessoa, Cesário Francisco Jr entende que a consciência da morte contribui para agravar a situação de impotência, de não poder. “O problema do homem é a morte. Sempre foi e sempre será. Como digerir essa finitude? Essa morte final, angustiante, dá pequenas amostras ao longo da vida e até do dia: termina uma jornada de trabalho; termina o arroz e feijão. É finitude, acabou. Muita gente diz: qual a receita daquele bolo? O bolo nunca mais vai ser feito. Ele é único, aquilo acaba, tem aquele momento. São pequenas amostras de finitude. Somos castrados existencialmente. Não temos poderes contra isso. Só podemos aprender a lidar com essa situação angustiante”, aconselha Cesário, que, apesar de ter-se formado em Medicina e se especializado em psiquiatria, hoje — depois de mais de 20 anos como psicanalista —, nem gosta de dar um nome aos problemas que ajuda a digerir ao longo das sessões com os pacientes. “Não me preocupo há muitos anos em dar um nome oficial a um problema. Você vai aprender ali junto com o paciente dar significado para aquele episódio, aquele momento pontual. O ser humano é pontual, existe por um momento. O problema é querer fazer desses momentos um ‘continuum’ … aí vira tragédia. O problema do homem é sair do pontual e ir para a tragédia. O épico é pontual, tem finitude, tem luto, se você estiver disponível em lidar com essas dores”.

Para ele, a patologia é macroscópica. “Os problemas ocorrem de forma microscópica no funcionamento mental. Por exemplo: tem uma música da Marisa Monte que fala do infinito particular. É um tipo de pedido de análise. A letra da música diz : “eis o melhor e o pior de mim. O meu termômetro, o meu quilate, não sou difícil de ler, faça sua parte. Só não se perca no meu infinito particular”.

Ditadura emocional
As angústias não digeridas geram dor muita intensa. E, segundo o psicanalista, “nossa disposição é tomar uma atitude ditatorial. Você não pensa. Quando é muito doído, você não tem mente para dar conta daquele momento, você usa um pensamento ditatorial para sobreviver. Tem que fazer, deve fazer aquilo... A gente pega só uma fatia da coisa.”

Cesário não se abastece apenas de teorias psicanalíticas para enfrentar a angústia da vida e dos pacientes. Há oito anos, estuda regularmente filosofia, literatura e ouve muita música, sempre pensando em abarcar o significado maior da existência humana. Reafirma que o ser humano depende muito do “olhar do outro” para dar significado à existência, como a criança de colo, principalmente, depende da mãe. “Bastou nascer, já tem angústia. E a nossa tendência é atribuir ao outro aquilo que é ruim em nós. O outro sempre é o causador de nossos males, desde o nascimento. Não temos como digerir tudo o que existe dentro da gente. A nossa mente é insuficiente para acolher. Por isso, a gente precisa de mãe. No começo da vida, a gente não suporta viver uma angústia existencial.” Cesário lembra que como psicanalista absorve os problemas dos pacientes, dá uma processada e diz: isso é seu. A mãe faz isso. A criança está angustiada, a mãe canta, pega no colo, vê se está com dor, com fome”. 


Rubens Zaidan - especial para a Revide

 

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