
Cérebro afiado
Adotar estilo de vida e hábitos saudáveis ajuda a manter o máximo da capacidade neurológica, mesmo com o avançar dos anos
A médica neurologista Dra. Marília Pereira Graner (CRM:164058/RQE:68446) descreve o nosso cérebro como um verdadeiro computador de alto desempenho, sem rival conhecido no universo da Inteligência Artificial. Aliás, ele próprio foi o criador de toda a tecnologia disponível atualmente. Processos cerebrais formam a base, não apenas de comportamentos motores — como caminhar e comer —, mas, também, de comportamentos complexos que nos tornam humanos — o pensamento, a linguagem e a criação de obras de arte. Alterações no funcionamento desse sistema podem gerar distúrbios, como transtornos afetivos (sentimento) e cognitivos (pensamento). A forma como o ambiente, incluindo hábitos e interações sociais, influencia os bilhões de células nervosas a produzirem comportamentos e estados cognitivos tem sido objeto de estudo nas neurociências e foco do trabalho desenvolvido por ela nos últimos anos. Na entrevista a seguir, a especialista discorre, essencialmente, sobre a prevenção de doenças neurológicas por meio da promoção de saúde baseada em mudanças de hábitos e de estilo de vida.
Com o passar dos anos, algumas pessoas passam por uma certa perda cognitiva, enquanto outras permanecem com a mente afiada mesmo com o avançar do tempo. Quais são os elementos que podem justificar essa diferença?
O nosso cérebro é como uma máquina que precisa de manutenção ao longo do tempo. Existem fatores genéticos que determinam a forma como essa máquina foi programada, porém, o nosso ambiente e os hábitos que adotamos durante a vida podem mudar essa programação inicial e podem garantir que essa manutenção seja realizada da melhor maneira possível. Isso significa que, mesmo que tenhamos familiares próximos com doenças neurológicas — incluindo a doença de Alzheimer e outros tipos de demências —, podemos moldar o nosso ambiente e os nossos hábitos para guiarmos o nosso cérebro rumo a um envelhecimento saudável, com o máximo de capacidade cognitiva mesmo em idade avançada.
Então é possível reverter o processo de perda cognitiva ou adotar um caminho de prevenção para que isso não ocorra?
Existem causas reversíveis e causas irreversíveis de perda cognitiva. Na avaliação inicial dos pacientes com queixas relacionadas à atenção, à memória e ao desempenho mental é sempre importante investigarmos deficiências nutricionais, alterações hormonais, infecções ou transtornos de humor, como depressão e ansiedade, que são causas reversíveis de perda cognitiva e que podem ser completamente curadas. Quando há o diagnóstico de síndrome demencial — em doenças como Alzheimer, demência frontotemporal, demência vascular, demência por corpúsculos de Lewy, dentre outras —, o processo de perda cognitiva tende a ser progressivo e irreversível, sendo necessário o acompanhamento médico e multidisciplinar para controle de sintomas e melhora de qualidade de vida. Assim, o melhor caminho é a prevenção! Precisamos agir em seis pilares para garantirmos um envelhecimento cerebral saudável: alimentação, atividade física, sono, manejo do estresse, qualidade de relacionamentos pessoais e controle de tóxicos — como cigarro e álcool.
O tempo em que vivemos atualmente, com muita exposição às telas, estresse, ansiedade, acaba sendo prejudicial?
Sem dúvida! O que era uma suspeita no passado se tornou objeto de estudo para trabalhos bem conduzidos na literatura, que demonstram as evidências dos prejuízos relacionados à exposição excessiva às telas, em especial quando essa exposição ocorre na infância e na adolescência. Para o cérebro adulto, há prejuízos a depender do tempo de exposição e do perfil de conteúdo consumido — sendo que, em alguns contextos, pode haver comportamento de adicção semelhante ao que observamos em vícios relacionados a substâncias. É importante adotarmos estratégias para controle do estresse para que as telas não sejam utilizadas como 'rota de fuga' de uma rotina indesejável. Esse comportamento é extremamente prejudicial e aumenta os níveis de ansiedade, gerando um ciclo vicioso no qual o tempo de exposição às telas aumenta proporcionalmente aos níveis de ansiedade, e vice-versa.
Como manter o cérebro funcionando ativo e saudável? Existem algumas técnicas para estimulá-lo positivamente?
A busca pelo conhecimento sempre exercerá um efeito estimulante e funcionará como combustível para o nosso cérebro. Identificar áreas de interesse pessoal que possam ser objetos de estudo diário, atividades relacionadas à leitura e à escrita, aprender um novo idioma, dedicar-se a um novo instrumento musical ou a exercícios e jogos que envolvam raciocínio lógico são estratégias que podem ser usadas. As práticas de mindfulness, voltadas a manter atenção plena no momento presente, têm se mostrado especialmente úteis em alguns contextos clínicos. Além disso, existem situações em que pode ser feito o acompanhamento profissional e a elaboração de um plano individualizado de treinamento cognitivo com foco em melhorar habilidades específicas — memória, atenção, capacidade de planejamento e de execução de tarefas, dentre outras.
Como a alimentação pode contribuir?
A alimentação é um dos seis pilares que trabalhamos para garantir um envelhecimento cerebral saudável e o acompanhamento nutricional deve ser individualizado. De forma geral, o objetivo inicial é garantir uma boa oferta de nutrientes, reduzindo os alimentos ultraprocessados — em especial aqueles com adição de açúcar — e introduzindo maior variedade de alimentos naturais. Manter a hidratação com um consumo adequado de água ao longo do dia é outra medida simples que gera grande impacto logo nas fases inicias de ajuste alimentar. O uso de suplementos pode ser benéfico e sempre deve ser feito de forma individualizada.
E os exercícios físicos?
A atividade física diária pode funcionar como hábito angular para todos os outros pilares. Hábitos angulares são aqueles que têm o potencial de gerar uma série de mudanças de comportamento em diversas áreas da vida. Isso significa que a prática diária de exercícios físicos tem o poder de regular a qualidade do sono, melhorar as escolhas alimentares, reduzir o impacto do estresse cotidiano, lapidar relacionamentos pessoais, auxiliar no controle de comportamentos relacionados ao abuso de substâncias tóxicas. Para as pessoas que não têm o exercício físico como prática regular, iniciar com 15 minutos de caminhada, todos os dias, já é suficiente para a formação inicial de um novo hábito e para obter benefícios relacionados à atenção, foco e memória.
O sono também é importante?
O sono é o pilar fundamental para um cérebro saudável. Basta uma noite de sono ruim para percebermos um aumento na liberação de hormônios como cortisol e adrenalina, assemelhando-se à resposta hormonal que ocorre em situações de estresse. Seguem-se alterações metabólicas que geram o aumento da busca por alimentos ricos em açúcar. Quando a má qualidade de sono é persistente, essas adaptações metabólicas levam ao ganho de peso, aumento de pressão arterial, resistência à insulina — favorecendo o aparecimento de doenças como diabetes — e o cérebro é um dos órgãos mais impactados por esses processos. Assim, o cérebro responde reduzindo a capacidade de manter a atenção e o foco, bem como de armazenar memórias — o que pode ser observado como perda de eficiência e de resolutividade nas atividades do dia a dia.
Quais são os sinais que devemos ficar atentos de que algo pode não estar correndo bem?
Vejo que muitas pessoas se surpreendem quando observam pessoas com idade avançada demonstrando excelentes habilidades cognitivas durante as interações sociais, incluindo a capacidade de manter um diálogo baseado na criação e no aprendizado de novas ideias, bem como na resolução de problemas. Sugiro, sempre, que tenhamos isso em mente como sendo o normal, compatível com o envelhecimento cerebral saudável. Por isso, qualquer observação relacionada a um possível prejuízo das habilidades cognitivas merece ser investigado por um especialista, sendo que alguns sinais frequentes são: discursos repetitivos ou dificuldade para dar um prosseguimento lógico nas conversas, esquecimentos frequentes (torneira aberta, fogão aceso...), dificuldade para se orientar em relação ao tempo (ano, mês, dia da semana...) ou alterações na rotina que estejam sendo motivadas por muitos erros durante a execução de tarefas habituais.
Em relação aos jovens, os principais aspectos que precisam ser observados são a capacidade de direcionamento e manutenção da atenção para a execução das tarefas diárias. Quando existe uma dificuldade nesse sentido, é preciso investigar condições relacionados aos pilares de saúde descritos acima, sendo comum encontrarmos a necessidade de ajustes na rotina e/ou de tratamento de transtornos de humor, alterações metabólicas ou deficiências nutricionais.
O que fazer nesses casos?
Quando os sinais descritos acima estão presentes é importante que seja agendada a consulta com o neurologista, para que se inicie o processo de investigação e tratamento. A avaliação neurológica também é recomendada com o objetivo de prevenir doenças crônicas e degenerativas que possam levar ao declínio cognitivo, em especial quando há história familiar de condições neurológicas, como a doença de Alzheimer.
Foto: Luan Porto