Conscientização e empoderamento

Conscientização e empoderamento

A delegada titular da DDM de Ribeirão Preto, Patrícia de Mariani Buldo, destaca os avanços e desafios no combate diário a violência contra a mulher

A violência de gênero, que causou a morte de pelo menos quatro mulheres por semana no Estado de São Paulo em 2023, é um problema com ampla visibilidade social, mas que ainda tem raízes fortes na cultura do machismo e misoginia.  Dados da Rede de Observatórios da Segurança mostram que, no ano passado, a cada oito horas, uma mulher foi vítima de violência no estado. Na comparação com 2022, o levantamento aponta uma alta de 20% nos eventos de violência contra a mulher em São Paulo. Somente no primeiro mês deste ano, foram, 23 mulheres vítimas de feminicídio no estado, e 15 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres no interior. Além disso, 5,9 mil ocorrências de ameaças contra mulheres foram registradas no interior no estado em janeiro e 3,1 mil casos de lesão corporal.


Na linha de frente do combate a essas estatísticas e à cultura do machismo, profissionais em delegacias, programas de acolhimento e em tribunais tentam empoderar as mulheres vítimas e ressignificar sua história. Segundo Patrícia de Mariani Buldo, titular da Delegacia de Defesa da Mulher de Ribeirão Preto, o acolhimento é fundamental para mudar o destino dessas mulheres e encerrar um ciclo de violência e ameaças. A delegada aprofunda os aspectos dessa violência e as formas de combate à cultura de dominação sobre as mulheres e a violência doméstica.

 

Como foi sua trajetória profissional até chegar à DDM de Ribeirão Preto?

 

Eu ingressei na Polícia Civil aos vinte e sete vinte anos e iniciei a carreira na cidade de São Paulo, no plantão do 10º Distrito Policial da Penha. É uma área grande e muito movimentada, sendo, bastante desafiador. Passados quatro anos em São Paulo, fui transferida para a cidade de Pontal, que é bem menor e diferente, mas também tem os seus desafios em outro cenário. Algum tempo depois, fui transferida para Sertãozinho onde inaugurei, com muito orgulho, a Delegacia de Defesa da Mulher daquela cidade. Com muita honra, ali me deparei com as peculiaridades de combater a violência doméstica. Por fim, fui transferida para Ribeirão Preto, onde trabalhei em Delegacias de bairro, até que, finalmente, em 2016 fui transferida para a Delegacia de Defesa da Mulher de Ribeirão Preto, onde me encontro até hoje sendo titular desde o ano de 2020.


Na sua jornada profissional, já encarou algum tipo de preconceito por ser mulher?

 

Toda mulher enfrenta preconceito. Porque o machismo é estrutural na sociedade. Então, assumindo uma profissão tipicamente masculina e liderando homens ainda jovem, sim, sofri bastante preconceito. Mas, segui minha trajetória com normalidade e penso que, com o tempo, a gente vai conseguindo mudar isso. Devagar, mas com o tempo a gente muda, sim.  

 

Ainda vemos muitos casos de violência doméstica. Na sua opinião, estamos enfrentando um problema crescente ou a coragem para denunciar e os meios de apoio é que aumentaram?

 

Na minha opinião, com base na experiência de vida aqui com a DDM, as mulheres hoje têm mais coragem e aceitam menos a prática de violência doméstica contra elas. A violência doméstica acompanha a nossa sociedade há mais de séculos. Houve um tempo em que era aceito o marido aplicar um castigo físico na esposa. Mas, a nossa sociedade vem mudando, os meios de comunicação estão empoderando as mulheres e mostrando que essa prática deve ser erradicada da nossa sociedade. A Lei Maria da Penha, admirada internacionalmente, é um divisor de águas no combate à violência doméstica e, cada vez mais, as mulheres estão entendendo que não devem aceitar e que existe lei que pune essa prática. Assim, as mulheres buscam cada vez mais a medida protetiva. As medidas protetivas, previstas na Lei Maria da Penha, que salvam vidas. 
 

O que você acha que gera essa violência? Uma questão cultural? Medo? Machismo? Impunidade?


Tudo envolve a cultura. O machismo é algo cultural, o medo da vítima e a impunidade também são culturais, pois, durante muito tempo, esse tipo de agressão ficava na impunidade. Antes da Lei Maria da Penha, se fazia o termo circunstanciado, em que o autor tinha de pagar uma cesta básica ou outro tipo de prestação de serviços. E, muitas vezes, a cesta básica era paga pela própria vítima, que não tinha estímulo em denunciar. Mesmo porque, ela voltava para casa e encontrava ali o agressor que ela tinha denunciado e a situação poderia ficar até pior. Então, com a Lei Maria da Penha, o agressor é afastado do lar e da vítima. E a lei prevê o crime de descumprimento de medida protetiva, em que o autor vai preso sem fiança caso ele descumpra essa medida. Por isso digo que a medida protetiva salva vidas. Penso que ainda é a nossa cultura que gera essa violência, mas ela vem mudando. Porém, para mudar um costume tão enraizado leva tempo. 
 

Em relação à violência doméstica, que tipos de denúncias são mais frequentes?  


No âmbito da violência doméstica, qualquer crime cometido contra uma mulher que tenha com o agressor ou agressora uma relação íntima de afeto é uma violência doméstica. Então, qualquer artigo do código penal pode se tratar de violência doméstica se ele ocorrer no âmbito familiar. Mas, as mais comuns são as de ameaça, injúria e lesão corporal. 

 

Em relação ao atendimento a essas mulheres que, muitas vezes, não denunciam por medo e falta de acolhimento. Como você enxerga hoje o preparo de profissionais da e programais sociais de apoio e assistência, houve uma evolução?

 

Uma das questões que envolvem o aumento das denúncias é esse acolhimento, que é essencial. Hoje é prioridade, e a Delegacia de Defesa da Mulher trabalha juntamente com a rede de acolhimento, a rede de apoio à mulher. Temos a Casa Abrigo dentro da delegacia de defesa da mulher de Ribeirão Preto, inauguramos a sala da justiça restaurativa. Em um ano, a sala da justiça restaurativa realizou mais de dois mil atendimentos. Lá estão presentes psicólogos, assistentes sociais, entre outros profissionais preparados para colaborar com esse acolhimento da vítima e de seus familiares. A nossa cidade também conta outras redes de apoio, como o programa Mãos Estendidas, o Núcleo de Atendimento Especializado à Mulher (Naem), entre outras. Na área da saúde, a prefeitura tem o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS). Toda essa rede de apoio para apoiar a mulher que busca o estado para ela se se ver livre da violência doméstica. 

 

Em Ribeirão Preto, especificamente, como você enxerga a situação. Há uma mudança de comportamento, conscientização?

 

Em Ribeirão, assim como em todo território nacional e em nível mundial, a violência doméstica está sendo combatida em vários âmbitos. E, uma das formas de combate é a conscientização e o empoderamento das mulheres vítimas.

 

Quais são os principais mitos em relação aos casos de violência contra a mulher?


Existem vário mitos que ilustram a violência doméstica. Um bem conhecido é aquele que diz: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, hoje, a gente mete a colher, sim, e o agressor é punido. Outro mito que sou muito contra é o “ele me agride, mas é um bom pai”, um bom pai não agride a mãe daquela criança, um bom pai dá bons exemplos. O pai que agride e causa a violência vai passar para os filhos que a agressão é permitida dentro do lar. Então, ele pode estar criando, para o futuro, mulheres que aceitam ser agredidas e agressores.

 

E quais são os desafios da investigação desse tipo de ocorrência?

 

O primeiro desafio é que ela acontece entre quatro paredes. Muitas vezes, sem testemunhas e nem sempre deixa marcas físicas, às vezes, as marcas psicológicas são muito mais fortes. Outro desafio é que, muitas vezes, a mulher entra no ciclo da violência doméstica. De maneira resumida, é um ciclo que se divide em três fases, a primeira é a do amor, em que ele está tudo bem, a felicidade está ali, presente, o casal está bem. Num segundo momento, quando o casal passa por um algum desentendimento, o agressor começa a praticar a violência verbal, com humilhações e xingamento, fase esta conhecida como “aumento de tensão”. Na terceira fase, denominada “ataque violento”, as agressões verbais se escalonam para ameaças pode passar para o ataque físico. Neste momento a vítima decide se separar ou fazer denúncia. Porém, o agressor se mostra arrependido e promete melhorar. A vítima decide perdoar e retomamos a fase de “lua de mel” quando então o ciclo recomeça.
 

Qual o conselho para as mulheres que vivem essa violência?


Gostaria de alertar que, num caso de emergência, as mulheres devem acionar a Polícia Militar ou a Guarda Civil, no 190 ou 153. No caso de denúncia anônima, que ela se vê na frente de uma vizinha ou de uma amiga que está sofrendo violência doméstica, é possível fazer no disque 180, de forma anônima. O registro de ocorrência pode ser feito no plantão de Polícia Judiciária, na Duque de Caxias, 1048, em funcionamento 24 horas 07 dias por semana ou na Delegacia de Defesa da Mulher, na Costábile Romano, 3230, funcionando de segunda a sexta feira das 08h às 18h ou a DDM on-line, no próprio computador ou aparelho celular a vítima pode registrar o boletim de ocorrência e pedir a medida protetiva de urgência. Por fim vou encerrar com uma frase de Simone de Beauvoir que eu gosto muito: “Que nada nos defina, que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância, já que viver é ser livre.” 


Foto: Luan Porto

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