Desafio constante

Desafio constante

Falta de condições adequadas nas escolas, capacitação dos profissionais e parceria entre todos os envolvidos dificulta o acolhimento e o aprendizado

Cenas protagonizadas por uma professora em uma sala de aula chocaram o país na última semana. Irritada, a docente arranca a carteira de uma aluna de 13 anos com deficiência intelectual e grita para que a estudante vá para a diretoria. O episódio aconteceu em uma escola estadual do município de Sales Oliveira, na região de Ribeirão Preto, no dia 24 de agosto. Se o fato não tivesse sido gravado por um outro aluno e divulgado nas redes sociais, esse seria apenas mais um exemplo, entre tantos, das questões que permeiam o acolhimento e atendimento a alunos com deficiência nas instituições de ensino país afora.


A Secretaria da Educação de São Paulo (Seduc-SP) informou, em nota, que repudia toda e qualquer forma de agressão dentro ou fora do ambiente escolar. Em relação ao caso citado, a professora foi afastada da sala de aula e uma apuração aberta, sendo que ao final processo ela poderá ter seu contrato rescindido. A família registrou Boletim de Ocorrência e a Polícia Civil instaurou inquérito para investigar o caso. 


O primeiro desafio é o próprio sistema de ensino, não inclusivo em sua natureza, ressalta Carolina Videira, coordenadora de Pós-Graduação em Inclusão da Diversidade do Instituto Singularidades, em São Paulo e presidente da Turma do Jiló. Para ela, o cenário escolar atual está muito distante de incluir crianças e adolescentes com deficiência. Outro problema apontado por ela está na falta de preparo dos professores para que estes estudantes sejam inseridos na Educação Especial Inclusiva.  


"Quando a gente olha para a carga horária, remuneração e materiais que um professor de escola pública tem à disposição, como a gente pode esperar que ele esteja habilitado para lidar com todas as questões dentro da sala de aula? Nós temos que rever nossas políticas públicas referentes à formação, remuneração e ao tempo do professor para planejar as aulas", disse a profissional em um debate promovido em junho pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) por iniciativa da deputada Andréa Werner (PSB).


Na ocasião, Carolina reforçou a necessidade de educar toda a sociedade para entender a importância da inclusão nas escolas. “Não estamos fazendo favor àquelas crianças com deficiência. Os outros pais precisam entender os benefícios da diversidade dentro das salas de aula, porque isso vai formar um cidadão preparado para a vida”, salientou.


A Turma do Jiló, entidade criada por Carolina, é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que visa implementar e garantir a Educação Inclusiva e a Diversidade dentro das escolas e empresas brasileiras.

 

LUTA INCANSÁVEL


Daniela Cardoso tem um filho de dez anos com deficiência intelectual moderada que estuda em uma escola da rede estadual de ensino de Ribeirão Preto. Ela conta que ainda não havia um diagnóstico fechado quando ele foi matriculado na instituição de ensino. Orientada pelos professores e coordenadores, Daniela foi em busca de ajuda médica para compreender melhor o comportamento agitado e irrequieto do filho, até então tido pelos pais como natural. “A escola foi bem acolhedora, o recebeu bem e nos ajudou nessa procura por ajuda Depois dos testes avaliativos com profissionais da área, conseguimos fechar o diagnóstico e, com o laudo em mãos, voltamos à escola que ofereceu o que estava ao seu alcance para acolhê-lo da melhor maneira, mas ainda assim foi insuficiente”, conta. 


A escola dispunha de uma sala de recursos multifuncionais que é, por definição, um espaço com equipamentos, materiais didáticos voltados ao atendimento de alunos com deficiência. 


“Não havia a presença de um auxiliar de sala, que é do que o meu filho necessita. Tive que entrar na Justiça para conseguir. A liminar foi deferida e ainda estamos aguardando a chegada do profissional”, revela a mãe. Daniela ressalta a boa receptividade que o filho teve na escola, sendo bem tratado pela equipe, mas salienta que o problema está na falta de recursos para contratar profissionais que façam um acompanhamento mais individualizado aos alunos com deficiência.


“Não estamos pedindo favor a ninguém, estamos no nosso direito, mas precisamos lutar muito para que esse direito seja respeitado e a legislação cumprida. É uma luta incansável”, desabafa.


Mãe de uma menina de 4 anos com autismo, Danielle de Paula percorreu um longo caminho até encontrar uma escola que melhor acolhesse sua filha. A primeira foi uma instituição filantrópica no bairro Jardim Alexandre Balbo, em Ribeirão Preto, que fechou as portas em 2021. No ano seguinte, Danielle transferiu a filha para uma escola municipal e conta que houve muita dificuldade na adaptação. 


“Na primeira escola ela se adaptou muito fácil. Quem tem um filho com Transtorno do Espectro Autista (TEA) sabe que cada dia é um desafio novo”, relata. “Na segunda escola as turmas eram maiores, não havia um auxiliar para a professora em sala e as reclamações por parte do corpo docente eram muitas. Minha filha ficava dispersa com muita facilidade e, por isso, acabou sendo ‘deixada de lado’. Ela era muito querida por todos, mas acho que faltou preparo por parte da escola para esse acompanhamento mais próximo, além de um conhecimento maior sobre como lidar com uma criança autista por parte do corpo escolar”, completa.


Após muita insistência, Danielle conta que a escola recebeu um acompanhante especializado (AE), cuja atuação foi redirecionada para outras funções e não aquelas para as quais o profissional havia sido contratado.  “Finalmente consegui transferência para uma terceira escola, também da rede municipal de ensino, o que foi chocante e maravilhoso ao mesmo tempo. É uma instituição mais preparada para lidar com alunos com deficiência e não aquela realidade que eu conhecia. Claro que houve dificuldades iniciais de adaptação, mas houve também muito acolhimento e preparo de toda a equipe”, observa.

 

ENVOLVIMENTO E PARCERIA


Nessa busca pela escola que melhor atendesse à da filha, Danielle destaca a parceria entre pais, escola e profissionais (terapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional etc.) como imprescindível. Segundo ela, o trabalho conjunto entre a escola e a terapia é muito rico e contribui para um melhor aproveitamento do aluno com deficiência no ambiente escolar. 


“É preciso ter também um olhar para os professores. Entendo que não é fácil para eles, por isso essa necessidade de suporte e apoio, seja por parte dos gestores escolares, da família e dos órgãos gestores como as Secretarias de Educação”, enfatiza.


Erika Caporal é professora da rede municipal no ensino infantil e fundamental e tem experiência no ensino superior. Desde o início da carreira, trabalha com alunos com deficiência em salas de aula do ensino regular. “Como profissional vejo o papel da escola como fundamental para a inclusão desses estudantes, mas acredito que a parceria com a família e demais instituições que atendem essas crianças e jovens seja um movimento mais importante. A escola sozinha não consegue atender a demanda desses alunos que, muitas vezes, chegam sem um laudo médico ou avaliação profissional para que possam ter um atendimento mais direcionado e com orientações ao professor”, explica.


A professora observa ainda que, somente por meio dessa troca e interação entre todas as partes (família, corpo escolar e profissionais de saúde), será possível a inclusão acontecer de fato. 


“É difícil para o professor realizar as adaptações curriculares necessárias sem uma orientação de um profissional especializado. Com o passar dos anos vem aumentando o número de alunos com algum tipo de deficiência e esse apoio começa com uma avaliação mais completa, um diagnóstico fechado para que o apoio necessário seja solicitado.  Existe toda uma parte burocrática que precisa ser vencida”, frisa. “O professor, muitas vezes, sozinho em uma sala superlotada, se frustra por não conseguir avançar. Como professora posso dizer que essa sensação de impotência é contínua”.


Erica ressalta que essa conexão entre todos os envolvidos na caminhada de aprendizado do aluno com deficiência é uma situação ideal, mas reconhece que ainda há muito o que fazer nesse sentido.  “É preciso ir para dentro da escola, saber o que de fato acontece lá. Há realidades com salas lotadas, poucos profissionais, falta de material e de pessoal que precisa ser mostrado, por mais que me incomode e me cause muita angústia, mas esse é um recorte. Existem também outras realidades que são muito positivas”, frisa. Para a professora, essa relação entre escola, profissionais e pais contribui para uma melhor compreensão da deficiência do aluno e a maneira mais apropriada de atendê-lo com uma equipe multidisciplinar que consiga fazer a criança avançar nas áreas de aprendizado e socialização.

 

Rede pública de ensino


A Secretaria Municipal de Educação informou que os professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) são especialistas no atendimento da Educação Especial e que a pasta realiza formações constantes por meio da Divisão da Educação Especial.  A Educação Especial da rede municipal conta com 178 professores de AEE, 412 agentes de suporte operacional (profissionais de apoio) e mais 394 professores mediadores. 


Atualmente a rede estadual de ensino de São Paulo conta com 72.605 alunos elegíveis aos serviços da educação especial. São alunos com deficiência (auditiva, física, visual, intelectual), Transtorno Global do Desenvolvimento (TGD), Transtorno do Espectro Autista (TEA) e altas habilidades/superdotação. Segundo a Seduc, eles contam com docentes especializados no contraturno e no projeto de ensino colaborativo, professor de libras e profissional de apoio escolar. Nesta área, a Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais do Estado de São Paulo (Efape) oferece Curso de Educação Especial para que os profissionais da educação entendam as especificidades e contribuam com os processos de ensino e aprendizagem de cada estudante.


Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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