Desafios e perspectivas

Desafios e perspectivas

Especialista em Educação, José Marcelino de Rezende Pinto analisa o impacto da pandemia no setor

Texto: Paula Zuliani


A educação já passava por uma intensa transformação, com a inserção de novas tecnologias para potencializar o processo de aprendizagem, mas ninguém poderia imaginar que, no ano letivo de 2020, o ensino dependeria, exclusivamente, dos meios digitais para continuar desempenhando seu papel. A Covid-19 fechou as portas das escolas. Deixou milhares de estudantes em casa. A alternativa encontrada, o trabalho remoto, não contempla a todos, evidenciando, ainda mais, a grande desigualdade do sistema. Segundo José Marcelino de Rezende Pinto, as reais consequências dessas mudanças ainda são uma incógnita. Na entrevista a seguir, o doutor em Educação e professor titular da USP discorre sobre os principais desafios enfrentados pelo setor até agora, sobre os prejuízos no aprendizado e sobre as perspectivas em relação à retomada das aulas presenciais.

Do início da pandemia até o final de 2020, quais foram os principais desafios que o setor da educação teve de enfrentar?

Para professores, dirigentes e instituições de ensino, como foi ter que se adaptar, tão rápido, a uma nova realidade? Como professor universitário, trabalhamos remotamente. O maior problema foi que tivemos uma interação bem mais artificial com os estudantes, já que boa parte deles, por diferentes motivos, ficava com a câmera de vídeo desligada. Com isso, a interação foi pobre. Procurei organizar grupos pequenos de discussão virtual, o que, pelo menos, permitiu uma maior interação entre os graduandos, que elogiaram a iniciativa. De qualquer forma, esses instrumentos, nas aulas presenciais, eram bem mais produtivos. Parte do estágio, envolvendo entrevistas com pais, alunos, professores e diretores de escolas da educação básica, também foi feita remotamente. Um dado interessante é que, como temos alunos de diferentes cidades e regiões do Brasil, ampliou-se o leque de relatos de experiências. Não posso falar pelos dirigentes. No caso da USP, entendo que a reitoria se aproveitou da pandemia para aprovar medidas que não eram urgentes e careciam de uma maior discussão com a comunidade acadêmica. Isso ocorreu, também, no âmbito dos governos federal, estaduais e municipais. Ou seja, usou-se a pandemia para aprovar medidas que, se efetivamente discutidas com a população, não seriam aprovadas.

Quais foram as principais conquistas nesse período?

Nenhuma. Nem um apoio na compra de equipamentos de informática para docentes e alunos, ou distribuição de acesso à internet para as famílias de periferia ocorreu. Boa parte do ensino remoto foi bancada pelos próprios professores, com seus equipamentos particulares.

E o impacto nos alunos? A mudança do presencial para o digital comprometeu, de certa forma, o aprendizado?

O que temos observado é muita opinião com roupagem de ciência, falando em ‘prejuízos enormes’. Cheguei a ouvir na mídia uma declaração de um ‘especialista’ estimando o equivalente à perda de quatro anos de estudo. São chutes. É evidente que houve perdas significativas, mas os estudantes também avançaram na aprendizagem do autoestudo (aqueles com condições adequadas, claro) e da autodisciplina. Entendo que houve um ganho em maturidade forçada pela crise. As pessoas deixaram de aprender muitas coisas, mas aprenderam algumas outras, também.

Tanto na rede pública, quanto na privada?

Nenhuma das redes estava preparada para a pandemia. As escolas frequentadas pela classe média tiveram a vida facilitada, pois as famílias possuem em casa mais recursos materiais (em especial o acesso às redes de internet). A maior escolaridade dos pais também facilita o apoio no ensino remoto. Na escola pública, o desafio foi muito maior. Ela responde por mais de 75% da matrícula e garante educação para as famílias mais pobres. A pandemia e, em especial, a timidez das políticas de apoio, aumentaram a já grande desigualdade do nosso sistema de ensino. Nesse processo, muitos estudantes foram esquecidos no caminho.

Do Ensino Fundamental ao Superior?

A questão foi mais crítica para as crianças e jovens pobres, em qualquer nível de ensino. Para os que se preparavam para o vestibular, a falta de apoio aos mais pobres foi particularmente cruel. Na educação superior, foi muito afetada a parte experimental e de estágio, em especial nos cursos de formação de professores e de profissionais da área da saúde.

A falta de sociabilização e de interação no ambiente escolar pode trazer prejuízos que vão além da absorção do conteúdo pedagógico?

Temos de entender que uma criança, um jovem, não é um recipiente vazio, no qual se vai colocando conhecimentos e habilidades, como se enche o tanque de combustível de um veículo. Trata-se de um processo complexo, no qual a interação com os professores e colegas é fundamental. Há que se ressaltar, ainda, em especial no que se refere aos conteúdos escolares, que muitos deles só servem para cair nas provas e que são esquecidos rapidamente, mesmo no ensino presencial.

Fechar as escolas era uma medida realmente necessária para conter o avanço do novo coronavírus?

Com certeza. Imagine uma escola com 500 alunos (que corresponde a um leque de cerca de 2 mil familiares), 40 professores e 30 funcionários, os dois últimos grupos claramente de risco em função da faixa etária e das próprias condições de trabalho que os coloca em situação permanente de estresse (burnout). Tenho ouvido na mídia alguns pediatras que defendem a volta às aulas com ardor, como se as escolas só fossem compostas de crianças, grupo sabidamente de menor risco, mas não de risco zero e com potencial de disseminação do vírus. Temos acompanhado, também, alguns depoimentos de pais, tipicamente de classe média, ‘exigindo’ a volta às atividades presenciais, como se não suportassem mais seus filhos em casa. E esse, em particular, é o risco de uma abertura parcial, para apenas 35% dos estudantes, como se anuncia. Alguém tem dúvida de que os alunos que irão serão principalmente aqueles de famílias com mais recursos? Na verdade, mais importante seria o poder público mapear as famílias de cada escola, mesmo que por telefone, ou com visitas com o devido cuidado, para saber de suas necessidades e apoiá-las em suas carências. Manter o contato é fundamental, mas isso pode ser feito sem o retorno atabalhoado às aulas.

Com uma série de protocolos de prevenção, algumas escolas voltaram a funcionar, gradativamente, no final do ano passado. Esse retorno foi positivo?

Acho que não, pois gerou tensões no grupo de colegas, entre aqueles pais que encaminharam os filhos e aqueles que, preocupados com a saúde coletiva, não o fizeram. Como explicar para uma criança de seis anos que ela não pode ir para a escola enquanto ela vê, no celular, um grupo de coleguinhas com sua professora querida? Foi uma estratégia oportunista de muitas escolas privadas (na busca de não ver minguar as mensalidades) jogar para as famílias a responsabilidade de decidir se iriam, ou não, enviar os filhos. Nada mais antipedagógico e deseducativo.

Existe uma movimentação para a retomada efetiva das aulas presenciais em breve. O que pensa sobre isso? Como esse processo deve acontecer para preservar a segurança e a saúde de todos?

Entendo que a pré-condição para a volta às aulas é a vacinação dos professores e dos grupos de risco. Temos cerca de 2 milhões de professores na educação básica no Brasil. Não é um grupo tão grande assim. Todos os indicadores apontam uma situação crítica nesse começo do ano em relação aos mortos e contaminados. Avalio que em dois meses é plenamente possível, com um mínimo de planejamento, vacinar esses grupos de pais e avós de risco e os profissionais da saúde e da educação. Ou seja, poderíamos voltar às aulas presenciais no início de abril, com todas as crianças, jovens e muito calor humano, ainda que com máscaras e o devido cuidado. Uso a analogia daquele motorista que faz uma longa viagem noturna e, ao se aproximar do destino, relaxa e acaba sofrendo um acidente grave ou fatal. Estamos no fim dessa viagem, não é hora para relaxar. 

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