Dois nomes, muitas funções

Dois nomes, muitas funções

Jefferson Cassiano é entrevistado por Melinha Basile. O mediador e a curadora do Encontro de Cinema batem um papo sobre literatura e cinema

A fisionomia jovem e o jeito descontraído de Jefferson Cassiano não permitem defini-lo com propriedade à primeira vista. É preciso questioná-lo, abrir caminho para a discussão, para, aos poucos, desvendar a ampla bagagem que este tímido assumido carrega. Professor, publicitário, roteirista e ilustrador são algumas das funções que ele desenvolve. Porém, foi a atribuição como mediador do Encontro de Cinema que fez despertar em Melinha Basile, idealizadora do projeto, a vontade de conhecer um pouco mais de sua história, suas opiniões e os outros trabalhos que realiza.
 
Melinha: A sua paixão pelas palavras vem desde a infância?
Jefferson Cassiano: Se, aos cinco anos, você me perguntasse o que eu gostaria de ser quando crescesse, eu responderia: desenhista e jogador de futebol. Eu morava na Zona Leste de São Paulo e sonhava em jogar no estádio que o Corinthians construiria em Itaquera. Ao mesmo tempo, adorava desenhar. Eu me irritava porque queria desenhar as imagens que tinha na cabeça, e os rabiscos não saíam como eu imaginava, pois não tinha técnica. Dos sete aos 13 anos, dediquei a vida fora da escola a aprender a desenhar, principalmente quadrinhos. Quando me mudei para Ribeirão, aos 14 anos, queria trabalhar em uma agência de propaganda porque acreditava que este era o caminho para ser ilustrador. Ainda não me entendia como escritor.

Melinha: E você conseguiu esse emprego em agência?
Jefferson Cassiano: Fui trabalhar numa loja de parafusos, em frente ao jornal O Diário. Atravessava a rua todos os dias para mostrar os meus desenhos aos editores. Não consegui trabalhar no jornal, mas recebi algumas orientações e comecei a entrar em contato com agências, em busca de estágio. Ia para um orelhão e telefonava marcando entrevistas. Eu era um pirralho, mas aparecia todo sério, nessas entrevistas. O Wagner, da WGA, à época na Pentagrama, foi o primeiro a me levar a sério. Mas foram o Augusto e a Ana Vera Balieiro, da Multiplus, que me deram a primeira chance, aos15 anos: assistente de arte.

Melinha: Foi como assistente de arte que você entrou no universo da publicidade?
Jefferson Cassiano: Foi. Comecei limpando pincéis e fazendo pequenos trabalhos, até que um dia me pediram para fazer a ilustração do material da Habitec, uma feira de construção que acontecia na cidade, e da Feapam, que existe até hoje. Virei arte-finalista e, aos 16 anos, passei a desempenhar a função de layoutman. No ano seguinte, voltei para São Paulo para estudar e trabalhar em agências por lá, mas retornei a Ribeirão Preto. Naquela época, eu já tinha concluído o curso de Técnico em Contabilidade. Era muito comum que o Ensino Médio fosse feito em paralelo à formação profissional. Acabei me tornando contabilista.

Melinha: Nessa época, você deixou a publicidade?
Jefferson Cassiano: Não. Eu trabalhava durante o dia com propaganda e estudava contabilidade à noite. Sempre trabalhei em departamentos de criação, desde essa época. Era um momento muito romântico da publicidade, quando criar uma campanha significava trabalhar em equipe na discussão do briefing, depois de alguns dias chegar a um conceito e, a partir daí, desenvolver as peças. Era mais lento e mais prazeroso. Hoje, sinto que o trabalho do publicitário é muito solitário, compartilhado apenas com o computador.

Melinha: Quando as palavras entraram na sua vida?
Jefferson Cassiano: Na agência onde eu trabalhava, a Macron Propaganda, surgiu uma vaga de redator. Eu já gostava de escrever. Desde os 15 anos, escrevia poesias e contos. Aquela foi a chance de começar a escrever profissionalmente como publicitário. Criei os primeiros anúncios, que funcionaram. Troquei o pincel pela máquina de escrever. Aos 19 anos, ganhei o primeiro prêmio como redator publicitário, no Fest Video, da Associação dos Profissionais de Propaganda (APP), com uma peça institucional criada para o Hospital Regional de Franca. Era 1990 e as emissoras de TV estavam chegando na cidade. Logo em seguida, recebi um convite do SBT, através do Toni Valente, para ser produtor e diretor de comerciais. Em cinco anos, escrevi, produzi e dirigi centenas de comerciais, vídeos empresariais e programas de TV para clientes do SBT. Uma verdadeira faculdade.

Melinha: E os curta-metragens? Em que momento você se dedicou a eles?
Jefferson Cassiano: Isso foi mais forte no começo do Núcleo de Cinema, quando ainda não existiam os Estúdios Kaiser. Chegamos a ensaiar a montagem de uma cooperativa de videastas e cineastas aqui na cidade, mas a ideia não vingou. Se é difícil fazer cinema nos grandes centros, no interior é complicadíssimo. Fiz alguns trabalhos para o Edgar de Castro, na São Paulo Film Commission (SPFC), e segui criando roteiros encomendados tanto para o projeto da SPFC quanto para empresas. Tenho alguns roteiros escritos, mas nunca filmados. Na verdade, não encontro, hoje, disposição para reinvestir em toda a estrutura necessária para produzir filmes e inscrevê-los em festivais, caminho  que parece ser o mais natural para conseguir um espaço como cineasta. Minha vida tomou outros rumos. 

Melinha: Você trabalhou em frentes muito diversas. Qual é a sua formação acadêmica?
Jefferson Cassiano: O jovem tem a sensação de que vai escolher a faculdade aos 18 anos e isso vai definir a vida dele para sempre. Hoje, o dinamismo do mercado não permite isso.  É importante sempre considerar a possibilidade de mudar de profissão, de acordo com as oportunidades que surgem e guiado por aptidões e interesses pessoais.  É importante ter um plano, estabelecer um objetivo o qual se deseja alcançar. Esse é o começo, mas a jornada, em curso, pode mudar os planos completamente. Foi o que aconteceu comigo.

Melinha: Enfim, quando você iniciou a formação em Letras?
Jefferson Cassiano: Fui fazer Letras bem mais tarde. Eu tenho duas faculdades começadas e não terminadas: Jornalismo e Marketing. Não terminei nenhuma delas porque achava que os cursos não condiziam com a realidade do mercado. Quando estava com 28 anos, senti que precisava concluir uma faculdade. A vida de autodidata tinha funcionado bem até ali, mas poderia ser problemática no futuro. Conversei sobre o assunto com o jornalista Rubens Volpe Filho. Ele me incentivou a estudar Letras, dizendo que, se eu já tinha a convivência com a escrita, o curso de Letras contribuiria até para uma carreira no jornalismo. Fiz minha matrícula com o objetivo de melhorar o meu texto, investir na carreira de escritor e me dedicar à literatura.

Melinha: Como surgiu o professor?
Jefferson Cassiano: No primeiro semestre do curso de Letras, a reitora, Profa. Maria de Lourdes Jorge, fez um convite inesperado: assumir algumas aulas no Ensino Médio do Colégio Moura Lacerda. Agradeci, mas recusei. Ela me convenceu a dar apenas uma aula para ver como era e estou até hoje em sala de aula, que é o lugar onde tenho chance de trabalhar com a palavra em várias de suas dimensões. Ser professor não foi uma escolha, foi um encontro. Esta é prova do que afirmei: nunca tinha pensado em ser professor e acabei me tornando Mestre em Estudos Literários pela UNESP, com doutorado, provavelmente em psicologia, planejado para 2014.  Podemos até projetar o caminho, mas a jornada muda tudo.

Melinha: O Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa é resultado da sua facilidade em ensinar?
Jefferson Cassiano: Eu já lecionava em algumas escolas, mas tinha o objetivo de montar um núcleo de língua portuguesa que, além de preparar os alunos para os vestibulares, com cursos de redação, gramática e literatura, oferecesse oficinas literárias, cursos livres, seminários. No Núcleo Cassiano, recebo alunos com diversos perfis e até empresas que nos procuram para montar cursos específicos. É um ambiente para o trabalho com as palavras. É interessante pensar que alternativas como essa existam.  Muitas pessoas que já pararam de estudar há anos e precisam de espaço para retomar o contato com o estudo da língua.

Melinha: Você tem uma capacidade muito grande de se comunicar, de lidar com as palavras. Você escreve muito? Já tem algo publicado?
Jefferson Cassiano: Eu escrevo o tempo todo. Raramente escrevo usando caneta, lápis e papel. Acostumei-me com as interfaces: máquina de escrever, computador e, mais recentemente, smartphone. Uso o bloco de notas do celular o tempo todo, até para escrever contos. Mas escrever não é só registrar palavras.  É um processo que começa muito antes, com a observação. O escritor é, antes de tudo, um observador do mundo, ao seu redor e dentro dele. Esta é uma característica que eu tenho desde criança: sempre fiquei confortável na posição de observar. Embora não me considere um contador de histórias, registro, nos textos, situações e personagens que encontro por aí ou que recrio. Por meio desse exercício de observação, recriação e registro, escrevi alguns livros.

Melinha: Esse material foi publicado?
Jefferson Cassiano: O romance “O absoluto” foi publicado, em capítulos semanais, no Jornal Tribuna de Ribeirão, durante um ano. No mesmo Tribuna, publiquei a narrativa fantástica “Homem de Terra”, em 32 semanas. Em oito anos, escrevi e publiquei no jornal centenas de contos, crônicas e artigos. Tenho material para três livros de crônicas, dois de contos, além dos dois romances, mas não os publiquei e não sei se o farei. Pode ser polêmico afirmar isso, mas a edição de obras literárias, ao menos no interior, está muito ligada ao ego do artista. Não vejo muito sentido em bancar a edição de um livro meu e ficar com mil exemplares guardados em casa, distribuindo-os para amigos. Sei que, para muitos poetas, essa modalidade de “automecenato” funciona, mas não me vejo fazendo isso. Eu não tenho o distanciamento necessário para avaliar se os meus livros são passíveis de publicação. Prefiro, por ora, pensar que escritor é aquele que escreve, não aquele que publica.

Melinha: Como é fazer parte da Academia Ribeirãopretana de Letras (ARL)?
Jefferson Cassiano: Fazer parte da ARL representa uma honra e, ao mesmo tempo, um esforço para administrar uma tensão interna que há em mim. Eu não aceito algumas posturas do mundo acadêmico. Acredito que as academias precisam reinventar-se. Não concordo com a postura de alguns acadêmicos brasileiros que, tendo um título vitalício — o acadêmico é considerado um imortal —,  usam esse título apenas para adornar a parede e o currículo com um diploma. Para muitos, a Academia é um espaço para o exercício social do exibicionismo. A ARL é atuante, mas há acadêmicos que só são encontrados no roll dos imortais e nunca nas atividades de sua própria academia. Mas o interessante da ARL é isto: abriga, na mesma egrégora, conformados, atuantes e críticos.

Melinha: Como está a sua fan page, “Cassiano Mostra a Língua”?
Jefferson Cassiano: Até três meses atrás eu não sabia o que era uma fan page. A minha página no facebook era frequentada basicamente por alunos, pois foi criada exatamente para dar assistência a eles. Quando eu parei de escrever no Tribuna, passei a fazer isso na internet. Primeiramente, pensei num blog, mas depois pensei em usar a fan page de um jeito diferente. Uso como se fosse um canal de televisão. Tenho seções nas quais publico contos, crônicas, artigos, poesias e até criei um personagem, “Lorde Ludovico, o lúdico”, que escreve máximas. Acabou sendo uma surpresa boa. Um dos meus textos teve 40 mil leituras. Eu nunca alcancei um número como esse em oito anos de jornal. Foi surpreendente porque o contato com o leitor é imediato. Estou feliz com a fan page, com o retorno que estou tendo com ela. É uma ferramenta muito democrática.

Melinha: Por que esta diferença de ser Jefferson no meio publicitário e Cassiano na educação?
Jefferson Cassiano: Meu nome é Jefferson Cassiano. Hoje, eu sou muito mais Cassiano que Jefferson. Na internet, sou Jeff Cassiano. Engraçado que, quando era criança, achava que Jefferson era nome de criança e que, quando eu crescesse, teria que mudar de nome. Cassiano é o sobrenome do meu avô paterno, Manoel. Eu gosto muito desse nome. Quando dirigia comerciais, tentei fazer essa mudança, colocando na claquete “Cassiano de Souza”, usando o  sobrenome da minha avó, mas não funcionou. Então, continuei sendo Jefferson. Quando comecei a dar aula no Liceu Albert Sabin, cheguei lá como professor Cassiano, talvez por causa do Núcleo Cassiano de Língua Portuguesa. Sou cada vez mais Cassiano e fico feliz com isso, pois me conecta com a família.

Melinha: Eu não poderia deixar de falar sobre o Encontro de Cinema. Conte-me, sinceramente, a sua opinião sobre ele.
Jefferson Cassiano: É curioso descrever o Encontro de Cinema para quem não o conhece. Quando explicamos onde acontece, como acontece e quem frequenta, a impressão inicial que as pessoas têm é completamente diferente da realidade. O que acontece no Encontro de Cinema é uma discussão séria sobre a sétima arte. Nesses três anos, percebo que o Encontro de Cinema deixou de ser um evento social para se transformar num investimento no aperfeiçoamento pessoal e na troca de experiências. Os debatedores convidados confirmam isso. Eles chegam pensando que vão participar de um evento e saem surpresos, pois participaram de outro, bem mais produtivo e profundo. Fico feliz com a pertinência e a seriedade das interferências das meninas e com o mergulho delas em cada filme. A plateia que temos hoje encara ver de “Melancolia” a “Parente é Serpente”, dois filmes completamente diferentes, e tirar material para discussão e aprendizado de ambos.

Um encontro através do Encontro de Cinema
“Conheci o Jefferson quando fui convidá-lo para ser mediador do evento que realizo, o Encontro de Cinema. Ele me foi apresentado pela Roberta Assef, então mediadora, e pelo Edgar de Castro, diretor da São Paulo Film Commission. A priori, gostei muito dele, mas não sabia como seria sua atuação no projeto, porém houve uma empatia instantânea tanto com as participantes quanto comigo. Ele tem muitas características importantes para atuar como mediador: expressa-se muito bem, coloca-se de forma adequada com o convidado que eu trago, independente da fama ou da exposição que este convidado tenha na mídia, tem uma atuação muito inteligente e dinâmica e se faz respeitar sempre demonstrando ter segurança em vários assuntos. E, quando tive a oportunidade de entrevistar alguém que admiro, pensei imediatamente no Jefferson. Ele tem, na
minha opinião, um conteúdo para mostrar.”
Melinha Basile, curadora do Encontro de Cinema

Texto: Máisa Valochi | Fotos: Carolina Alves

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