Encontro de craques

Encontro de craques

O vôlei foi o tema principal desse bate-papo descontraído entre os ex-jogadores Marco Antônio Di Bonifácio e Vânia Mello Kraus

O cenário desse encontro não poderia ser outro. A quadra de vôlei é o lugar onde Marco Antônio Di Bonifácio, o Boni, sente-se em casa. Desde a infância, a intimidade com a bola era visível. Das aulas de educação física na escola, logo garantiu uma vaga nos concorridos treinos da Sociedade Recreativa e de Esportes de Ribeirão Preto (Recra). A paixão pelo esporte se tornou profissão. Vestiu a camisa de grandes equipes do país e, por quatro anos, atuou na Itália. Ao encerrar a carreira como atleta, decidiu assumir a função de técnico e compartilhar o conhecimento com as novas gerações.

O trabalho realizado acabou chamando a atenção de José Roberto Guimarães que, desde 2003, está à frente da seleção brasileira feminina. O convite para integrar o grupo veio para coroar essa trajetória vitoriosa. Em entrevista concedida recentemente à ex-jogadora e atual técnica da Recra e do Colégio FAAP, Vânia Mello Kraus, Boni conta mais detalhes sobre o início em Ribeirão Preto, sobre o dia a dia do time e sobre a preparação intensiva para as Olimpíadas 2016.

Vânia: Você começou a carreira no vôlei aqui em Ribeirão Preto. Como foi sua trajetória no esporte?
Boni:
O primeiro contato que tive com a modalidade foi na escola, nas aulas de Educação Física. Em 1976, comecei um treinamento mais específico quando entrei para o time da Recra, na categoria mirim. No ano seguinte, o clube não disputou campeonatos e a diretoria me emprestou para o Palmeiras, em São Paulo. Foi a minha estreia em uma competição oficial. Chamado de volta para Ribeirão Preto, fiz parte de uma equipe que alcançou resultados expressivos. Fomos, inclusive, campeões estaduais, batendo o Paulistano na final. Mudei novamente para a capital, contratado pela Pirelli, expoente do vôlei à época. Passei, ainda, pelo Minas Tênis Clube, Paulistano e Chapecó. Encerrei a carreira na Itália, onde joguei por quatro anos. 

Vânia: Logo após sua aposentadoria como atleta, iniciou o trabalho de técnico. Essa transição foi tranquila? 
Boni:
Foi um processo natural. Queria continuar no vôlei que, além de ser a minha profissão, é uma paixão. Por isso, optei por seguir como técnico. Voltei para Ribeirão Preto e para a Recra, onde dirigi a categoria juvenil. O time conquistou os Jogos Abertos e, em disputa pelo Paulista B, garantiu a classificação para a competição principal. O progresso era animador. Consegui até um patrocínio. Porém, logo no ano seguinte, recebi uma proposta irrecusável do Finasa/Osasco e acabei me desligando do projeto daqui que, pouco tempo depois, teve suas atividades encerradas. Permaneci atuando como técnico em grandes equipes do país, como Esporte Clube Banespa, de São Paulo, Praia Clube, de Uberlândia, e Vôlei Futuro, de Araçatuba.

Vânia: De que maneira surgiu o convite para integrar a comissão técnica da seleção brasileira feminina?
Boni:
Em 2007, era técnico do Vôlei Futuro e participava de alguns treinamentos com a seleção, como convidado. O grupo, até então, estava completo. Em 2008, ano das Olimpíadas de Pequim, recebi uma ligação do José Roberto Guimarães me chamando para compor a comissão técnica em tempo integral, assumindo toda a parte de estatística. Fiquei receoso porque sabia da importância dessa tarefa, mas não entendia nada de computador. Perguntei se ele me considerava apto para desempenhar a função. Ao ouvir o sim, aceitei o desafio. Na verdade, era exatamente isso o que o Zé queria: um técnico de voleibol, que pudesse avaliar, registrar e passar para ele as jogadas do time e das adversárias. Em apenas 48 dias, transformei-me no profissional responsável pela estatística da seleção. Recebi algumas noções básicas sobre o assunto, mas meu aprendizado maior foi sozinho, com os erros e os acertos. Foi um período difícil. Demorava o tempo real do jogo para editar as ações da partida, uma por uma. Sofri bastante para me adaptar, mas todos foram pacientes. Agora, edito em cinco minutos. Além de estar habituado com o trabalho, utilizo um software chamado “DataProject - DataVolley” que me ajuda muito. É a mesma tecnologia adotada por todas as outras seleções. Agarrei a oportunidade que o Zé me ofereceu e estou com a equipe até hoje. 

Vânia: O que você analisa durante a partida?
Boni:
Todos os movimentos das atletas entram na estatística: saque, passe, defesa, levantamento, bloqueio e ataque ou contra-ataque. Assim, sabemos exatamente quais ações estão funcionando melhor em relação àquele adversário em particular. As jogadas tendem a se repetir, especialmente a partir do 20º ponto, quando o set se encaminha para o fim. Nessa hora, a atleta não arrisca. De forma involuntária, recorre ao golpe que tem maior habilidade para executar. O estímulo já está condicionado. É complicado mudá-lo de acordo com o andamento da partida. Ao identificarmos essa bola de segurança, podemos montar uma estratégia eficiente para neutralizá-la, seja no bloqueio ou na defesa. Difícil encontrar uma jogadora versátil que tenha na manga um enorme leque de recursos e fuja da marcação. Essas são as estrelas.

Vânia: O Zé Roberto utiliza bastante os números da estatística? 
Boni:
O Zé Roberto tem um olho clínico apurado, minucioso. Geralmente, quando ele pede alguma informação, é só para confirmar algo que já detectou. Mesmo assim, investe nesse trabalho porque sabe que a estatística é uma peça importante no voleibol moderno. Interpretar os números e, com base neles, tomar as decisões assertivas, tanto antes, quanto durante a partida, é um grande passo rumo à vitória.

Vânia: Como é a sua relação com o time?
Boni:
A minha interação com a comissão técnica e com as atletas é incrível. Somos uma família, com muita cumplicidade, mas confesso que fazer parte da seleção é estressante. Estamos longe das nossas famílias e temos um cronograma rigoroso a ser cumprido, com condicionamento físico, treinos, alimentação controlada, viagens e campeonatos. Como tenho um jeito mais brincalhão, funciono como uma válvula de escape, um ponto de equilíbrio. Sabemos que a parte árdua é indispensável em um time de alto nível. Tem momentos que precisamos puxar a orelha mesmo, porém, para obter resultados positivos, a descontração também é necessária.

Vânia: Você poderia descrever como é o dia a dia no Centro de Treinamento em Saquarema?
Boni:
O lugar é excelente. Contamos com uma infraestrutura de ponta. As jogadoras encontram lá o ambiente ideal para que desenvolvam o melhor voleibol: alimentação balanceada, instalações confortáveis, quadras, academia bem equipada, piscina, jardins e um grupo de profissionais a postos para atendê-las a qualquer momento. O problema é a rotina. As meninas têm horário definido para tudo. Hora de dormir, de levantar, de ir para a musculação, de treinar, de comer, de descansar, de pegar o voo e por aí vai. Nada foge dessa escala, que é cuidadosamente planejada. Isso se repete dia após dia. Se há alguma mudança no itinerário, precisamos relatar imediatamente ao Comitê Brasileiro de Voleibol (CBV), pois os técnicos da Agência Mundial Antidopagem fazem visitas surpresa para testes clínicos. Ou seja, a vida dessas meninas é muito regrada. O Zé é uma pessoa sensível e, dentro do possível, tenta amenizar essa sensação de mesmice que o cotidiano traz. Às quartas, temos um churrasco de confraternização. Como eu sempre estou envolvido com o entretenimento e a diversão das nossas festas, sugeri que convidássemos uma dupla sertaneja aqui de Ribeirão Preto, Jorge Henrique e Christiano, para uma apresentação. O Zé gostou da recomendação e já agendou o show para o início de maio. Todos estão animados com o evento.

Vânia: Muitas pessoas comentam que os profissionais do esporte são sortudos porque, participando de competições variadas, podem conhecer o mundo. Isso é verdade? Vocês aproveitam as viagens para fazer um pouco de turismo?
Boni:
Quase nunca. Vou citar o Grand Prix como exemplo. São, aproximadamente, 40 dias viajando. A equipe fica confinada, focada nos treinos e nas partidas. Só vemos o aeroporto, o hotel, a academia e o ginásio. Quando temos sorte, ganhamos uma tarde livre que, normalmente, as meninas aproveitam para fazer compras ou para conhecer a atração turística mais próxima. Não conseguimos arrumar tempo para passear durante os campeonatos. O objetivo é outro. 

Vânia: Em 2016, os Jogos Olímpicos serão realizados no Rio de Janeiro. O fator casa gera ainda mais nervosismo e ansiedade?
Boni:
Estudos comprovam que jogar em casa é bom até certo ponto, pois a cobrança excessiva da torcida pode atrapalhar. Temos o peso de duas medalhas Olímpicas de ouro no currículo. Essa geração está acostumada a nos ver sempre no pódio. Para os fãs, vencer no Brasil é uma obrigação. Isso cria uma expectativa que complica o nosso trabalho. Chegar ao topo é difícil, manter-se nele é mais ainda. Todas as seleções adversárias buscam uma brecha para quebrar a nossa estratégia, portanto, a ansiedade é imensa, principalmente, entre a comissão técnica. Ficamos nos bastidores, longe dos holofotes, mas temos consciência de que temos uma imensa responsabilidade nessa complexa estrutura.

Vânia: A comissão organizou algum tipo de preparação especial para este ano?
Boni:
Este ano, o tempo de preparação será bem curto. As jogadoras estão representando seus respectivos clubes em uma disputa acirrada na Superliga e terão apenas uma semana de folga antes de se apresentarem à seleção. A competição nacional termina em abril e as Olimpíadas começam em agosto, ou seja, teremos treinos intensos pela frente e precisamos delas inteiras para encarar essa maratona.

Vânia: Existe muita diferença entre o time feminino e o masculino?
Boni:
Com certeza. Treinei o time masculino do Banespa por um ano. Tirando essa experiência, só trabalhei com o feminino, por isso, posso afirmar: são dois universos completamente distintos. Fiz Mestrado e Doutorado em Psicologia para entender melhor essa questão de gênero. As mulheres contestam, questionam, cobram o tempo inteiro. Temos que, com bastante jogo de cintura, apresentar um motivo, um contexto, uma justificativa para convencê-las a fazer um exercício ou a seguir com uma estratégia. No jogo, a parte emocional tem um papel determinante, muitas vezes, maior até do que a técnica. Com os homens não tem nada disso. A comissão passa a tarefa e os atletas realizam. Simples assim. Acredito que, treinando o masculino, a minha evolução não seria tão significativa quanto foi no feminino.

Vânia: Há algum tempo, a seleção brasileira mostrava um desempenho superior ao das adversárias. Hoje, constatamos uma igualdade maior com outras potências do vôlei, como Estados Unidos e Rússia. O departamento de estatística e o intercâmbio de informações entre as equipes contribuíram para esse nivelamento?
Boni:
Acredito que esses fatores contribuem para o estabelecimento de uma igualdade. O vôlei, hoje, é muito estudado. O Japão ficou 14 anos sem conseguir uma vitória sobre o Brasil. Em todas as oportunidades que tinham, chamavam o nosso time para treinos e amistosos. Queriam entender o estilo de jogo que adotamos. As partidas ficaram cada vez mais acirradas e, um dia, elas ganharam. Ensinar e aprender com as outras seleções é um processo saudável. O nosso problema não é esse. Temos sofrido com a falta de renovação. Talentos estão despontando pelo mundo e fazendo a diferença. Atletas completamente desconhecidas, que são reservas e, de repente, entram em quadra para desequilibrar. Nos Estados Unidos, a comissão avalia, em média, 300 novas atletas por ano, vindas das universidades. Aqui, não atingimos um número expressivo. Temos mantido a mesma base nas convocações, com novidades pontuais, como a Gabriela Guimarães, mais conhecida como Gabizinha, do Rexona/Ades.

Vânia: Como reverter essa situação?
Boni:
Precisamos promover uma revolução, não só no vôlei, mas em todas as modalidades. O esporte deve ser acessível, fomentado e massificado. A ação começa nas escolas, despertando o interesse dessa criançada que só quer saber de computador, de televisão e de shopping. Na minha época, disputávamos uma vaga aqui na Recreativa. Tínhamos fome de bola e víamos no esporte a chance de ter um futuro melhor. Acabei me tornando um profissional do vôlei, feliz e realizado. Outras pessoas também merecem essa oportunidade. Se bem direcionado, o esporte é uma ótima ferramenta social. Semeia valores, abre caminhos e combate a marginalidade, por isso, ver uma quadra vazia me deixa tão chateado.

Vânia: Você pretende voltar para Ribeirão Preto?
Boni:
Sim. A ideia é que eu volte, talvez no ano que vem, com um projeto de esporte educacional e social. Ribeirão Preto tem um enorme potencial para formar atletas em várias modalidades, como natação, atletismo, basquete, handebol e voleibol, porém, atualmente, a cidade, assim como outros antigos centros de treinamento, vive um momento delicado, que inspira cuidados. Temos que reestruturar esse sistema para voltarmos a ser um celeiro de novos talentos. Precisamos de quantidade para depois pensar em qualidade e promover as seletivas nos clubes. Para isso, o apoio do poder público, do setor privado e da sociedade em geral é indispensável. Pretendo colaborar para que Ribeirão Preto retome seu posto de destaque no cenário esportivo nacional. 

Paixão pelo vôlei

“O Boni é um verdadeiro amante do voleibol. Como jogador, foi um craque de bola. Esforçado, estava sempre pronto para treinar e melhorar o desempenho em quadra. Como técnico, aqui em Ribeirão Preto, batalhou bastante para que o esporte prosperasse. Infelizmente, por falta de incentivos e de patrocínios, teve que procurar outros lugares para trabalhar. Em pouco tempo, já comandava grandes equipes do país. Competente como é, não foi surpresa vê-lo chegar ao topo, integrando a comissão técnica da seleção brasileira de vôlei feminino como responsável pelo departamento de estatística. Só posso parabenizá-lo, porque as conquistas que o Boni colhe hoje são resultado de muita determinação, dedicação e comprometimento.” Vânia Mello Kraus, ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei e atual técnica dos times da Recra e do Colégio FAAP.

Texto: Paula Zuliani
Fotos: Julio Sian

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