
Eterno aprendiz
Em entrevista à jornalista Mariana Secaf, o renomado médico Wagner Ferreira fala sobre sua vida, suas paixões e mostra como encara as dificuldades com o coração
Pode parecer estranho para quem observa a admiração de uma jornalista tão jovem por um profissional mais maduro, que nada tem a ver com sua área de atuação. Mas a estranheza se dissipa quando se partilha alguns momentos com médico vascular Wagner Ferreira e se constata que é possível tirar das adversidades, por pior que elas se apresentem, lições de humildade, de aprendizado e de generosidade. Foi em meio a esse cenário de descobertas que a jornalista Carla Mimessi acompanhou a conversa de sua colega de trabalho, Mariana Secaf, com o médico, que as recebeu em seu consultório, disposto a contar a sua história, a sua profissão e os amores que permeiam sua vida.
Mariana: Qual é a sua cidade de origem?
Wagner: Nasci em Ipuã. Com nove anos, vim para Ribeirão Preto, onde fiz colégio no Santos Dumont e a Faculdade de Medicina na USP. Fiz residência na Santa Casa, depois fui para Houston, fiquei um ano por lá e voltei para Ribeirão Preto para trabalhar.
M: Como foi a sua infância?
W: Até os quatro ou cinco anos foi uma infância boa, como a de qualquer criança. Depois ela se tornou difícil porque meu pai perdeu tudo e veio para Ribeirão Preto. Aqui, passamos por muitas dificuldades, a ponto de, em algumas ocasiões, passar fome. Quando meu irmão e eu estávamos no ginásio, resolvemos montar uma banda. A banda fez sucesso, começamos a tocar em bailes e, então, nosso padrão de vida começou a melhorar. Nessa época, eu já estava na Faculdade. A banda era composta por mim, meu irmão Willian e outros cinco músicos, e teve diversas configurações, desde uma banda com três sopros a uma banda só com vocal. Conforme a moda se modificava, reestruturávamos o grupo. Desde o início, eu ajudava nas contas de casa. No colégio não tinha cantina, e eu e meu irmão pedimos ao diretor para nos deixar abrir uma cantina. Minha mãe fazia sanduíches que levávamos nos períodos da manhã e da tarde para a escola, muitas vezes, também à noite. Vendíamos sanduíche e Coca-Cola e, com isso, ajudávamos nas despesas.
M: Por que escolheu a Medicina?
W: Quando eu era criança pensavam que eu iria fazer Direito porque eu gostava de falar, de declamar, de ler. Mas eu sempre gostei de medicina. Com cinco anos, eu ficava fissurado quando minha mãe abria um frango — queria ver por dentro —, eu pegava sapo e abria. Desde esta época, eu já sabia que queria ser médico.
M: Como fez para cursar a faculdade?
W: Uma das coisas que me ajudou — uma prova de que as dificuldades vêm na vida para nos fortalecer e não para reclamarmos delas — é que no cursinho tinha um módulo chamado vaga prêmio, que permitia que os primeiros cinco colocados naquela prova, no final do mês, não pagassem o cursinho. Eu tinha que estudar para me manter no cursinho, senão teria que sair dele. Com isso, quando chegou o final do ano, eu estava preparado para o vestibular.
M: Qual foi o significado de seu irmão Willian em sua trajetória?
W: Meu irmão significou toda essa ajuda pois, sem ele, não teria existido o conjunto. Meu irmão era um músico nato, tinha ouvido absoluto. Se você cantasse uma nota, ele imediatamente a identificava, sem referência nenhuma. Meu primo Nelinho ensinou meu irmão a tocar violão e isso foi uma grande ajuda porque, a partir disso, o Willian fazia todos os arranjos e escrevia.
M: Quando saiu do país para se especializar, pensava em voltar para Ribeirão Preto?
W: Eu pensava em voltar, já trabalhava na equipe do Oswaldo Teno Castilho, o que foi de uma ajuda muito grande porque, enquanto eu fiquei nos EUA, foi o Castilho que ajudou a olhar os meus pais que já estavam idosos.
M: Nessa época você já era casado?
W: Casei e fui para os EUA, junto com a Ana.
M: O que a Medicina representa na sua vida?
W: Antes de me casar com a Ana, falei: ‘eu só quero te dizer uma coisa: eu tenho outra esposa’. Ela levou um susto danado e perguntou: ‘como assim?’. ‘A outra esposa se chama Medicina. Se você concordar em casar comigo, você tem que aceitar que já estou casado com ela e que minha fidelidade é a ela’, respondi. Então, a Medicina, para mim, representa tudo: uma arte, uma religião, um ponto de referência. Se você me pedir para definir em uma palavra o que significa a Medicina, respondo que significa sacerdócio.
M: Você imaginou que chegaria aonde chegou profissionalmente?
W: Não. Na verdade, queria ser ortopedista e trabalhar com coluna. Quando meu irmão morreu, eu tive que fazer residência de cirurgia geral. Na residência, numa madrugada, entrei para acompanhar uma cirurgia de ponte de safena, que estava sendo realizada pelo Dr. Oswaldo Castilho. Eu fiquei maluco na hora que vi: fiquei três noites sem dormir só pensando na beleza daquilo. Perguntei a ele onde havia aprendido porque descobri que era isso que eu queria. Ele me disse para ficar em sua equipe e depois ir para Houston. Eu tive muita sorte, pessoas de bom coração que me ajudaram. Eu estava no lugar certo, na posição certa, na hora certa.
M: Todos sabem sobre sua paixão pela música. O que ela representa para você?
W: Representa o meu hobby, a minha diversão, a minha fuga. Eu sinto muita falta de conviver com a música. Estou tendo uma oportunidade, agora, depois de muitos anos afastados, de me divertir com música, cantando na Mogiana Jazz Band, da USP. Isso para mim é lavar a alma. Cada vez que eu tenho essa oportunidade, eu tiro muitos quilos de bile do meu fígado, muito peso do meu coração e me divirto.
M: A música hoje tem o mesmo gosto do que antes?
W: Antes, ela tinha um gosto de aventura, de responsabilidade. Íamos a um lugar, não sabíamos como era, fazíamos sucesso, empolgávamos o pessoal e aquilo voltava. Naquela ocasião, era muito mais intenso. Hoje ela tem um gosto de diversão, de prazer.
M: Em sua família, todos têm a mesma admiração pela música?
W: Todos da minha casa gostam de música, dos mais variados estilos.
M: Como é trabalhar com seu filho, Willian, e ter uma filha fazendo Medicina também?
W: É muito prazeroso. No princípio, confesso que achava que teria dificuldade, então preparei meu coração para ter rusgas, aceitar opiniões controversas em relação às minhas. Menino recém-formado geralmente chega achando que é o dono do mundo, mas isso não aconteceu. O Willian é um doce, uma pessoa fantástica. Se ele tem uma ideia diversa da minha, não bate de frente, mas chega, rodeia, expõe seu ponto de vista, convence. Eu aceito porque ele está muito bem preparado. Aquela ideia que eu tinha de que sentiria certo desconforto se tornou enganosa, eu tenho muito prazer. O fato de eu ter a Giulia fazendo Medicina foi um prêmio: porque eu não esperava por isso. Foi uma surpresa, principalmente ver que ela curte, que estuda e sempre tira notas altas.
M: Como é ser um exemplo para os outros?
W: Sabe que eu não percebo? Há alguns anos fui ao Paraná, onde tenho uns oito primos médicos. Eu estava num casamento e os oito me chamaram para tirar uma foto. Depois da foto, um deles me perguntou se eu sabia porque eles eram médicos. Eu respondi que não, então eles disseram que foi por minha causa, que quando eu ia visitá-los, eram crianças ainda e que eu falava com tanto entusiasmo sobre a Medicina que decidiram se tornarem médicos. É claro que tem outros fatores envolvidos, também tem um tio que é um médico famoso, mas eu fiquei muito orgulhoso de saber daquilo. Agora, tendo dois filhos fazendo Medicina, é a realização máxima.
M: Com você se divide entre a clínica e a família?
W: Quando a Ana estava boa, era mais fácil porque eu chegava em casa às 23h e a gente saía. Chegamos a sair uma hora da madrugada para tomar um café e voltar a dormir. Agora ficou mais complicado porque preciso ter uma hora para estar lá, cuidar dela, fazer companhia. Mas não é pesado. Algumas vezes, eu fico cansado, mas sempre é prazeroso.
M: O que costuma fazer para si próprio?
W: Ir à academia — eu estou fazendo disso uma rotina, até aos domingos. No começo, não gostava, achava chato, mas agora eu sinto falta. Outra coisa que faço por mim é cantar.
M: Tem alguma trilha sonora que acredita falar sobre sua vida?
W: ‘My Way’, por exemplo, mostra minha teimosia, em continuar quando as coisas não dão certo. ‘My Funny Valantine’ é o amor que eu descobri de aceitar as pessoas como elas são e não ter aquele ideal de beleza. De ver nas pessoas o lado belo das imperfeições, eu não percebia isso. Hoje eu percebo. Eu acho todo mundo bonito, são as imperfeições que fazem um ser humano bonito.
M: Você acredita em Deus?
W: Acredito. Uma vez, minha mãe me disse, em um sonho, que o que chamamos de Deus é a mais pura, intensa e incondicional forma de amor. Um amor que transcende a todos os limites, que não vê imperfeição e a tudo perdoa. Assim é Deus.
M: Você tem fé?
W: Tenho muita fé. Se não tivesse fé, não estaria aqui.
M: A fé mudou sua vida?
W: Tem horas que eu acho que nem é fé, mas teimosia. Depois, eu analiso e sei que é fé: uma fé numa coisa superior, uma fé em acreditar nas pessoas. Deus é todo mundo que está em volta de nós, é o amor de um pelo outro.
M: Que lições tirou de suas dificuldades?
W: Uma coisa que aprendi e espero continuar aprendendo, é a não desistir. Ter a certeza de que, no final, tudo acaba bem, mesmo quando acaba mal, você vê, lá na frente, que acabou bem por alguma razão ou por pura coincidência. Meu conselho é nunca desista, tudo vai acabar bem.
Olhar de menino
“Conviver com o Wagner e sua família é um presente que eu tenho a sorte de ter recebido há um bom tempo. Ver nos olhos desse renomado profissional a paixão pela Medicina, o cuidado com todos ao seu redor, e, principalmente, a alegria de viver é contagiante e digno de exemplo. O mais interessante é que, por trás de toda essa força, esconde-se aquela criança que veio de Ipuã com o mesmo brilho e sede de aprendizado. E com esse perfil, o doutor dribla as dificuldades de uma maneira ímpar e contagiante. Suas histórias atravessam gerações, surpreendem e mostram que quem faz o bem, recebe o mesmo em troca. Com tanta experiência, poucos sabem o caminho que trilhou para conquistar o reconhecimento em sua área e se transformar em um modelo para jovens e sonhadores. Eu sou uma dessas pessoas, que diariamente procuro basear meus passos em um pouquinho do que ele me ensinou.” Mariana Secaf, jornalista