HC realiza primeiro implante osteointegrado em amputados
Foto: Acervo Médico

HC realiza primeiro implante osteointegrado em amputados

Novo no Brasil, procedimento que visa a melhoria da qualidade de vida e funcionalidade de pacientes é realizado em apenas outros 13 países no mundo

O Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto acaba de realizar sua primeira cirurgia de implante osteointegrado em uma paciente amputada – a 12ª do país. A primeira do Brasil data de abril de 2022. Até então, apenas outros 13 países a realizavam no mundo, entre eles Suécia, Alemanha, Austrália, Holanda, Estados Unidos e Inglaterra. 

Realizado no último dia 20 de dezembro, o procedimento do HC consistiu na implantação de uma peça de titânio direto no osso do membro amputado de uma paciente, que se fixará biologicamente a uma parte exteriorizada, na qual será engatada uma prótese. De acordo com os ortopedistas oncológicos do HC Edgard Eduard Engel e Nelson Fabrício Gava, o objetivo é melhorar a qualidade de vida e a funcionalidade de pacientes que não conseguem se adaptar à prótese convencional – segundo estatísticas oficiais, 40% da população mundial de amputados.



O médico Nelson Fabrício Gava foi quem convidou a paciente da cirurgia inaugural

 

O ortopedista oncológico Antônio Marcelo Gonçalves de Souza foi quem realizou as 11 cirurgias de osteointegração anteriores no país – dez no Hospital de Câncer de Pernambuco, onde é responsável pela parte científica do Departamento de Ortopedia Oncológica, e uma em Belo Horizonte – e também participou na de Ribeirão Preto, ao lado de Gava e Engel. “A gente está criando um novo centro de osteointegração e tive o prazer e o privilégio de poder vir começar esse trabalho aqui”, afirma.



Edgard Eduard Engel espera que operados tenham uma melhora de atividade dez vezes maior

 

Também docente na Universidade Federal e Estadual de Pernambuco e integrante da equipe de implantação da osteointegração no Brasil, ele explica que, quando uma pessoa passa por amputação na perna, coxa ou braço, precisa receber uma prótese externa (exoprótese), que se encaixa sobre o restante do membro ou “coto”, como também é chamado. Como suas partes móveis não foram feitas para suportar tal gênero de carga, vários problemas podem surgir, causando, no mínimo, desconfortos aos amputados. “O paciente amputado restringe sua atividade diária por causa da dificuldade de encaixe da prótese”, acrescenta Edgard Engel.

No caso da paciente Ana (nome fictício, pois prefere não ser identificada), que passou pela cirurgia e seguirá sendo acompanhada pela equipe do ambulatório de amputados do Centro de Reabilitação do HC, a dificuldade em usar prótese sempre foi “imensa”. “Já usei de todo tipo. No início assava todo o meu bumbum, machucava a virilha, formava feridas. Sempre senti muitas dores. Com a evolução da tecnologia, as próteses foram melhorando, mas continuou ruim para mim porque, apesar d’eu ter força, sou ruim de musculatura. Isso dificulta minha caminhada”, conta.

Na avaliação do ortopedista Marcelo Souza, Ana não consegue usar a musculatura porque o músculo atrofiou, quase virando gordura, bem como o osso. “Pela falta de uso, o organismo tira o cálcio dali e leva para outro lugar, deixando aquele osso localizado mais frágil. Tem 30 anos que ela não usa bem a prótese e com a osteointegração a gente quer reverter esse processo da melhor maneira possível”, afirma.

Há cerca de dois anos, Ana teve que ser submetida a uma cirurgia conduzida por Nelson Gava, de quem é paciente há três. Foi para correção do neuroma, o coto de nervo da amputação. “Muito doloroso! Ressecamos esse coto e ela melhorou. Passou a andar melhor do que antes, mas nunca conseguiu andar bem. Então ela ficava pouco com a prótese e vivia fazendo novos encaixes, tentando trocar para se adaptar”, lembra o médico, que atua especialmente em casos de tumores ósseos. “Ela não teve um tumor, mas como o Departamento de Ortopedia Oncológica do HC tem muita experiência com amputações gerais, é um serviço de referência para pacientes que foram amputados por outras causas e têm problemas com o encaixe da prótese”, explica.

Foi Gava quem teve a ideia de colocar Ana como uma das candidatas à cirurgia, após constatar que ela tem o perfil elegível ideal [leia mais a respeito a seguir]. Ela topou imediatamente. 

Projeto

A cirurgia de osteointegração do HC foi possível graças a um projeto escrito a quatro mãos por Gava e Engel e aprovado junto ao Pronas (Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência), do Governo Federal, que financia pesquisas em pacientes com deficiência. Baseados na experiência pioneira de Marcelo com esse tipo de cirurgia, eles propuseram realizá-la em mais pacientes amputados com problemas na reabilitação com a prótese, tornando-os independentes do encaixe. O objetivo é comparar os resultados de forma a atestar a eficiência do procedimento na melhoria da qualidade de vida dos operados. A partir dos resultados, serão publicados artigos científicos a serem apresentados em congressos da especialidade.

De acordo com Engel, a expectativa é a de que os pacientes operados tenham uma melhora de atividade muito maior, com menor restrição em seus movimentos. “Com a osteointegração, esperamos que esse grau de atividade aumente em dez vezes e o paciente passe a ter uma intensidade de atividade muito parecida com uma pessoa normal”, projeta, frisando, porém, que antes é preciso dominar completamente o método e entender suas dificuldades na prática. “Se conseguirmos superar os riscos de infecção, as dificuldades de custo e de acessibilidade ao método, que inicialmente será restrito a pessoas com condições de saúde ideais, no futuro será possível expandi-lo para outros grupos de pacientes: mais jovens, paratletas, talvez diabéticos”, diz Engel.

O projeto prevê realizar a cirurgia em 30 casos. O recrutamento está sendo feito pelos ambulatórios normais do HC e, especialmente, pelo Centro de Reabilitação, onde todos os pacientes traumáticos buscam a prótese e tratamento específico, e atende a critérios pré-definidos de exclusão. Por exemplo, fumantes ainda não estão sendo considerados elegíveis pelo risco de apresentarem problemas como oxigenação e dificuldade de cicatrização da ferida do estoma (orifício circular criado cirurgicamente em uma parte do corpo). “O paciente fumante tem mais pré-disposição a ter infecção, então, neste momento, em que estamos adquirindo experiência, não vamos fazer a cirurgia neles. O mesmo vale para quem tem diabetes descontrolada e acima de 110 quilos”, diz Nelson Gava. Em relação aos pacientes obesos, testes mecânicos feitos em laboratório mostraram que o implante pode ser utilizado com segurança em pessoas com até 110 quilos. Acima disso não é recomendável.

A pesquisa do projeto tem duração prevista de três anos, durante os quais todos os pacientes submetidos à implantação osteointegrada serão acompanhados de perto. “Terminada a pesquisa, eles continuarão no nosso ambulatório. Não há prazo para parar com esse acompanhamento”, conclui Gava.
 

A cirurgia


De acordo com Marcelo Souza, a osteointegração é um procedimento ósseo, ortopédico e plástico. “A gente trabalha com o osso, implantando o dispositivo metálico de titânio, e depois faz a parte cirúrgica plástica ao redor dele, que é o mais difícil e trabalhoso”, explica. A cirurgia dura, em média, três horas, mas isso pode variar conforme cada caso. A ela se segue a fase de reabilitação e cuidados, tudo sempre atrelado a um protocolo rígido.


O ortopedista oncológico Antônio Marcelo Gonçalves de Souza é o pioneiro na realização da osteointegração no Brasil

 

Na cirurgia feita em Ana, a parte óssea consistiu em colocar dentro do coto de seu resto de fêmur um implante sólido, com uma parte que fica fora do osso. A esse implante foi acoplado um conector intermediário. “Na parte interna, o implante entra justo e estável mecanicamente e, com o tempo, de maneira natural, o osso vai colando e se integrando ao implante e ficará sólido biologicamente. Depois, há um trabalho maior, que é reinserir a musculatura ao redor do implante para que ele não fique jogando, irrite e inflame”, descreve Souza.

Ana diz que passou bem pelo pós-operatório, apesar das dores, que eram previstas e seguem administráveis. A próxima etapa será iniciar fisioterapia com carga no membro com implante. O processo de reabilitação deve durar, em média, quatro meses, período após o qual a paciente poderá ser liberada para sua vida cotidiana. Mas ela terá que continuar comparecendo a consultas para acompanhamento do estoma, relato de eventuais dores e outras queixas. “Ou seja, vamos acompanhá-los sempre. O paciente não pode deixar de ser assistido porque é um procedimento que requer cuidado permanente. É quase um casamento entre o paciente e o médico”, brinca Souza.

Ele lembra que toda cirurgia implica riscos e o da osteointegração é “considerável” pelo fato de ser colocado um implante metálico dentro do osso exteriorizado através da pele. “Se o paciente não tiver higiene e cuidado com esse buraquinho, pode inflamar e soltar o implante (rejeição). Essa é a principal e maior preocupação nossa. No entanto, a experiência mundial fala a favor de pouquíssimas complicações e maioria de bons resultados. Tem pacientes com 10, 20 anos de osteointegração vivendo muito bem”, diz.

Segundo Souza, não há como prever se a paciente passará a ter vida semelhante à de um não amputado, mas as experiências têm lhe mostrado, até o momento, operados com uma “vida muito próxima do normal”. “Voltaram a andar e trabalhar sem muletas, a caminhar, andar de bicicleta e até a correr. Mas isso varia de caso a caso, não tem receita de bolo”, alerta Souza. No caso específico de Ana, que tem o osso muito frágil, ele destaca, por exemplo, que ela não poderá fazer carga em três semanas, como prevê o protocolo do projeto. “Faremos isso pouco a pouco e esperamos que ela tenha uma vida infinitamente melhor do que tem hoje. Mas só o tempo dirá como isso vai acontecer”, conclui.

Por fim, ele frisa que a cirurgia de osteointegração em amputados não pode ser feita em qualquer hospital, pois é um procedimento que requer equipe multidisciplinar, formada por ortopedistas, fisioterapeuta, nutricionista e psicólogo, para poder dar certo. “Se não tivermos uma equipe, melhor nem começar. Por isso, a ideia é criarmos centros específicos, como esse que criamos em Ribeirão Preto. Temos aqui uma equipe apaixonada e entusiasmada com o método e, por isso, tem chance maior de dar certo”, finaliza.

Boas Perspectivas


Se o projeto do HC, bem como outros em curso pelo país, comprovarem a efetividade do método de implante osteointegrado em pacientes amputados, devem se abrir possibilidades de investimentos pela cadeia produtiva da saúde, ensejando sua disponibilização em larga escala, até via Sistema Único de Saúde (SUS). Isso, aliás, está no radar do grupo do HC. O ortopedista Edgard Engel explica que, para ter aprovação na tabela SUS, é preciso mostrar que o custo-efetividade do método é interessante e que, em longo prazo, o custo da prótese osteointegrada será menor que o da convencional. 

Marcelo Souza está otimista quanto a isso. “Esse processo está em andamento. O implante foi aprovado pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e tem número de registro com validade de dez anos. Esse registro, dentro da tabela de implantes do SUS, está na família de endoprótese, ou seja, pacientes que precisam de próteses não convencionais, tanto para o fêmur, como para a tíbia (pessoas amputadas na coxa ou na perna). Então é perfeitamente viável que o paciente com amputação seja operado com implante de osteointegração usando essa tabela”, acredita.

Já para a medicina privada (convênio ou particular), ainda não há o registro do método na ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). “Mas isso é normal porque é uma coisa nova, que não tem mais de dois anos de iniciada no Brasil. Em Recife, operamos paciente de convênio Unimed mediante acordo com a presidência da cooperativa, explicando que é melhor entender que o doente precisa e já tem evidência de que o procedimento dá certo do que o judicializar e sair um custo muito mais alto para a empresa. Legalmente, a partir do momento em que um tratamento é registrado pela Anvisa, qualquer paciente tem direito a ele”, exemplifica Souza. 

 

Implante passou por adaptações no Brasil


De acordo com o ortopedista Marcelo Gonçalves de Souza, para iniciar o método no Brasil foi preciso fazer adaptações. A primeira foi no custo, já que no exterior o implante custa entre 25 e 30 mil euros. Para importar, ficaria inviável, por conta de todos os custos envolvidos. “Tentamos que alguém se interessasse em importar, mas não houve reciprocidade. Então, nós desenvolvemos um projeto chamado Osteointegração em Artroplastia de Quadril, um implante totalmente nacional, fabricado em São Paulo, por uma empresa brasileira, a partir da cessão da nossa ideia e com a premissa de podermos usar exatamente o mesmo implante em pacientes do SUS e de rede privada de saúde, sem discriminação”, conta Souza. O material escolhido foi titânio, que tem uma superfície rugosa e porosa. Segundo o médico, a diferença em relação aos implantes de outros países está em alguns conceitos básicos, como a maneira de travar o conector e a ausência da curvatura usada, mas o princípio inicial é o mesmo: fixação mecânica que fica justa com posterior integração biológica.

 

Paciente da cirurgia inaugural se mantém confiante


Amputada há mais de 30 anos, Ana (nome fictício), paciente submetida à cirurgia inaugural de osteointegração no Departamento de Ortopedia Oncológica do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, tinha apenas 17 anos de idade quando sofreu o acidente que mudou sua vida para sempre. Ela decidiu pedalar sua bicicleta Caloi 10 – modelo popular à época –, que ganhara de presente dos pais, para ir até um clube de campo. Ao sair da área urbana, um Volkswagem Variant a atropelou, provocando-lhe traumas graves: fraturou o braço e a perna direitos e teve traumatismo craniano. No hospital, descobriu que precisaria amputar a perna. No tempo em que ficou internada contraiu pneumonia grave e precisou até de traqueostomia. “Fiquei 30 dias na UTI, ‘morre, não morre’, mas graças a Deus estou aqui”, conta. 


Após receber alta, Ana começou a descobrir como é difícil a vida de um amputado, principalmente em uma cidade e um país que não investem em mobilidade equânime. “O mundo não é adaptado pra nós, mas graças a Deus a gente consegue superar. Até hoje tenho que fazer muita fisioterapia, manter uma dieta balanceada e trabalhar o psicológico para poder enfrentar tudo isso, porque não é fácil”, declara.


De toda a experiência até aqui ficou a lição de valorizar mais a vida e até as pequenas coisas. Diz ter aprendido muito graças às dificuldades que vieram com a amputação. “A gente aprende a ser mais humano, mais caridoso. Todo dia, na hora que acordo, agradeço a Deus pela minha vida”, afirma. 


Sobre os resultados da osteointegração, Ana diz que está tentando se manter confiante de que o implante lhe ajudará a usar melhor a prótese, tornando-se, assim, mais independente. “Com a graça de Deus vai dar tudo certo. Não vejo a hora de voltar a andar bem. Isso é o que a gente mais sonha: andar com segurança, sem ter preocupação com obstáculos e tudo o mais”, conclui.

 

 


Fotos: Luan Porto

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