Legado para democracia

Legado para democracia

Dez anos após as jornadas de junho de 2013, especialistas e pessoas que participaram das manifestações falam sobre o legado que os atos deixaram para Ribeirão Preto e o Brasil

Há 10 anos, o Brasil recalculava sua rota política. As jornadas de junho de 2013 surgiram da insatisfação de boa parte da população com a classe política e a má qualidade de serviços públicos, como o transporte coletivo, saúde e educação. A revolta, que teve início com o aumento de R$ 0,20 no preço da passagem em São Paulo, rapidamente se espalhou por todo o país. Ainda com reivindicações difusas, o poder público e os agentes de segurança do Estado tinham dificuldade em assimilar os atos e enfrentamentos violentos se repetiram. 

 


Em Ribeirão Preto, os protestos ficaram marcados pela morte do estudante Marcos Delefrante, de 18 anos. O jovem participava do ato em uma quinta-feira, dia 20 de junho, que saiu do Centro da cidade e rumou para a Zona Sul. Estima-se que cerca de 25 mil pessoas estavam presentes. Os manifestantes se sentaram no cruzamento das avenidas João Fiusa e José Adolfo Bianco Molina, quando o empresário Alexsandro Ichisato de Azevedo, saindo de um supermercado na região, foi impedido de passar. Manifestantes pediam que o empresário recuasse e tomasse outro caminho. Em um dos vídeos que circulou pelas redes sociais na época, em um primeiro momento, o automóvel recua, mas, logo em seguida, avança sobre a multidão, atingindo 12 pessoas. 

 


A defesa alega que Ichisato teria se assustado com a reação dos manifestantes. Em uma das imagens, é possível ver um jovem batendo com um skate no capô do carro. O empresário foi condenado a 64 anos por homicídio doloso e quatro tentativas de homicídio. Contudo, em 2021, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reduziu para 18 anos e oito meses a pena. Portanto, em até dois anos, Ichisato deve ter o direito à liberdade provisória. Ele está preso desde julho de 2013. A defesa da família ainda pode recorrer da decisão.

 


Apesar do mês de junho ter ficado marcado na história, manifestações se desenrolaram por todo o ano. Na esteira da consciência política adquirida nas jornadas de 2013, manifestantes ocuparam a Câmara Municipal dos Vereadores de Ribeirão Preto, em dezembro daquele ano. Parte dos manifestantes derivavam de grupos como o “Movimento Panelaço”, “Se Vira Ribeirão” e “Passe Livre”, que ganharam força em junho. À ocasião, os manifestantes protestavam contra um projeto de lei que prorrogava, por um ano, a contratação de professores emergenciais. Foram atirados ovos, bombas e até um sinalizador em direção aos parlamentares. Ramon Faustino, hoje vereador pelo PSOL, era um dos manifestantes que participaram do ato. Na época, Ramon concluía o curso de Pedagogia na USP. “Participar desse movimento, como um todo, foi extremamente enriquecedor, porque havia um clima de insatisfação popular que trouxe muitos temas importantes para a ordem do dia, para os debates públicos de nossa sociedade. Nesse sentido, os movimentos de junho foram muito importantes para formar uma geração, uma crítica social necessária sobre a cidade, sobre como vivíamos, sentíamos, como era morar, viver em Ribeirão Preto. De certa forma, eu sou fruto de junho. Aprendi muito com esses movimentos”, destacou o vereador. 

 


O sociólogo Estevan Martins de Campos, que já era conhecido em movimentos sociais na cidade, também foi um dos que participaram da ocupação da Câmara em dezembro e das jornadas de junho. “Foi um recado dado com força e uma conquista exemplar dos trabalhadores que participaram daquele protesto. Tem trabalhadores que estão até hoje lá e que foram convocados naquele concurso. Os protestos de dezembro não teriam ocorrido se não tivéssemos participado dos de junho”, frisou. Para ele, os protestos foram um divisor de águas na política nacional. O momento marcou um tensionamento severo na esquerda e o afloramento da direita como atuante em movimentos de massa no país, mais tarde, enveredando para movimentos extremistas. “Os protestos mostraram que a transformação que nós desejamos só vai acontecer com processos como os de junho de 2013, não com negociatas em parlamentos, em escritórios e em gabinetes. O que precisamos é do povo nas ruas, com pautas em defesa de direitos como o emprego, redução de jornada de trabalho, reajuste salarial e contra a terceirização”, reforçou. Campos pondera, contudo, que o movimento também teve seus deméritos. Para ele, a falta de articulação política e a inexperiência em movimentos populares de boa parte daqueles que foram às ruas em 2013 fizeram com que o movimento se dissipasse muito facilmente.

 


Marcos Papa (Cidadania), que já era vereador na época, conta que havia um certo temor com a presença de políticos nos atos. Apesar disso, o parlamentar apoiou os protestos pacíficos. “Foi maravilhoso estar eleito, ser acolhido e participar junto da população de maneira pacífica. O aumento da tarifa de ônibus em São Paulo foi a chama no rastilho de pólvora, que chegou até Ribeirão e em muitas cidades do Brasil, numa soma de protestos que evidenciavam o descontentamento gritante da população com a má qualidade com a qual é atendida pelos governos em todas as esferas. Protestos legítimos, porque a maioria dos brasileiros continua desatendida pelos Poderes constituídos”, lembrou Papa.  

 


Sobre a ocupação da Câmara, o vereador reiterou a legitimidade do protesto. “No mesmo ano, houve a invasão do recinto dos vereadores para impedir a votação de projeto de lei que a ex-prefeita insistia em votar, sem o devido diálogo com o Conselho Municipal da Educação, os alunos e a comunidade escolar como um todo. Os manifestantes literalmente impediram a votação na marra”, declarou. O parlamentar ressaltou a importância da participação ativa da população como um legado positivo dessas jornadas. “A principal lição que fica é que política é coisa muito séria para ficar somente nas mãos dos políticos. A população precisa se organizar, participar e tencionar por melhorias, sempre de forma pacífica, com consciência e energia. Precisamos construir a democracia participativa, porque a democracia representativa está praticamente falida”, argumentou. 

 


Outro vereador que ocupava uma cadeira na Câmara em 2013 era Maurício Gasparini (União Brasil).  Em seu primeiro mandato como vereador, o parlamentar lamentou a tragédia ocorrida com o estudante Marcos Delefrate, mas reforçou a importância do movimento. “Esse foi um dos momentos mais marcantes da década. Manifestações pacíficas são sempre válidas para demonstrar a força da população e causam um impacto muito forte, principalmente em cidades como Ribeirão Preto, muito atuante e com participação ativa. Manifestar-se é exercer a democracia. Lembro quando esse movimento ‘Vem pra Rua RP’ teve a concentração na Praça XV, onde manifestantes protestaram nas ruas de Ribeirão Preto e outras cidades da nossa região em apoio aos atos em todo o país”, ressaltou.

 


Para o cientista político Luiz Rufino, as jornadas de junho de 2013 abriram as portas para um grande movimento de massas, a princípio difuso e sem uma liderança definida. A pluralidade política nessa massa – muitas vezes diametralmente opostas – fez com que surgissem outros movimentos a partir de 2013. “O que as pesquisas da época conseguiam pinçar de todos os movimentos era uma aversão gigantesca ao ‘status quo’ político. Tanto que, no início das jornadas, políticos não podiam entrar nas manifestações. Até mesmo Jair Bolsonaro foi impedido de entrar em manifestações no Rio de Janeiro. Apenas mais tarde, os políticos vieram se aproveitar na rabeira desse movimento para conseguir, a partir daí, mobilizar as massas e ascender ao poder com esse discurso anti político que se originou nos protestos”, avaliou Rufino. 

 


O especialista acrescenta. “Algo relevante para termos como uma reflexão, é que as massas foram levadas às ruas pautadas pelas redes sociais, um fenômeno exclusivo do século XXI. Como desdobramentos, vale ressaltar que o movimento se inicia com o ‘Passe Livre’ e, depois, se desdobra para os movimentos como o ‘Black Block’, que causavam um pouco mais de reação por parte da população para que a polícia controlasse isso. E, por fim, essas jornadas deram início a um movimento de massas que levou às ruas uma grande parte da população historicamente avessa a qualquer partidarização política”, concluiu. 

 

22 de maio de 2013

O ex-prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), anunciou um aumento de R$ 3 para R$ 3,20 no preço da tarifa de trens, ônibus e metrôs. O reajuste valeria a partir do dia 2 de junho. Movimentos sociais ameaçam atos contra o reajuste.

 

6 de junho de 2013

São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia e Natal registram protestos contra o reajuste das passagens. Em todas as capitais, a Polícia Militar foi acionada e entrou em confronto com os manifestantes.

 

18 de junho de 2013

Protestos seguem por capitais e atingem o interior com enfrentamentos. Por conta da pressão das ruas, Haddad admitiu, pela primeira vez, que poderia rever o valor da tarifa dos ônibus.

 

20 de junho de 2013

Protesto leva 25 mil pessoas às ruas de Ribeirão Preto. Marcos Delefrate é morto após ser atropelado enquanto participava do ato na Zona Sul da cidade. Nesse dia, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram às ruas em todo país.

 

25 de junho de 2013

Manifestantes ocupam sessão da Câmara em segundo protesto. Dárcy Vera envia proposta ao Legislativo para redução no preço da tarifa de ônibus de R$ 2,90 para R$ 2,80. Por fim, Câmara aprovou R$ 2,80.

 

26 de junho de 2013

Manifestantes acampam em frente ao Palácio do Rio Branco. Dárcy Vera se senta na calçada e debate pautas com manifestantes que exigiam a redução para R$ 2,60 na passagem.

 

18 de julho de 2013

Alexsandro Ichisato é preso por homicídio doloso e quatro tentativas de homicídio. Ele estava em uma clínica para dependentes químicos em Bragança Paulista.

 

19 dezembro de 2013

Manifestantes ocupam Câmara de Ribeirão Preto em protesto contra projeto de lei que prorrogava a contratação de professores emergenciais.

 

18 de junho de 2014

Após seis meses, busto em homenagem à Marcos Delefrate é entregue. Porém, nome do estudante estava com a grafia incorreta.

 

2 de outubro de 2014

Passagem em Ribeirão Preto volta a subir, saindo de R$ 2,80 para R$ 3. O valor voltou a subir em 2015, atingindo R$ 3,40. Protestos massivos como os de 2013 nunca mais ocorreram contra o preço da passagem na cidade.

 

4 de fevereiro de 2020

Alexsandro Ichisato é condenado a 64 anos de prisão.

 

24 de setembro de 2021

Justiça reduz de 64 para 18 anos a pena de Alexsandro Ichisato.


Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom - Agência Brasil

Compartilhar: