Marcados pela superação

Marcados pela superação

Dia da Consciência Negra favorece reflexão sobre o preconceito na sociedade e quem conhece de perto a desigualdade aponta caminhos para transformar a realidade

Texto: Cárila Covas


Ainda que não seja considerado feriado em Ribeirão Preto desde 2016, o Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, segue como uma data marcada pela reflexão: mesmo 132 anos após a abolição da escravidão, gerações de afro-brasileiros ainda sofrem com diversos níveis de preconceito. 

ENTRE REALIDADES

Ao participar do projeto social da Feira do Livro, agora Fundação do Livro e Leitura, o “Jovens Protagonistas”, Victoria Sena teve a certeza que queria seguir na área da comunicação aos 15 anos. Hoje com 23, é formada em Publicidade e Propaganda e segue na área de Social Media, atuando em negócios e projeto social. “No projeto, eu tive várias oportunidades de conhecer a comunicação e as vertentes. Eu sempre soube que eu queria trabalhar com comunicação porque eu gostava muito de revista e muito de televisão”, conta. Antes de chegar onde está, Victoria passou pelo cursinho popular no bairro onde mora, no Quintino II, e conseguiu uma bolsa pelo ProUni, o que a ajudou a cursar a faculdade, na qual se formou em 2019.

Victoria retrata que no projeto ela conheceu o “Sarau Preto”, que acontecia todo primeiro sábado do mês, onde um grupo se reunia e ouvia poesias, que na maioria tinham como autores pessoas negras. “Foi onde eu tive todo conhecimento a respeito da identidade, a respeito do racismo estrutural, foi lá que eu criei a minha consciência racial. Em um espaço com outras pessoas pretas discutindo e conversando sobre essa questão, do negro no brasil, do negro na sociedade. Nessa experiência, eu consegui mais esclarecimentos, diferente do que falavam na escola, porque a gente só conhece a história de um ponto de vista europeu, contando sobre o momento e a abolição da escravidão. A partir disso, eu comecei a me interessar mais pelo assunto, a buscar outros autores e outras pessoas que pudessem abordar esse assunto e disso foi se destrinchando: participei de alguns coletivos, alguns movimentos negros — que hoje eu não participo mais — mas, desta forma, eu me tornei quem sou hoje”, pontua. 

A ESCALADA

Victoria afirma que aprendeu desde cedo que, se quisesse conquistar um espaço, teria de se posicionar acima do esperado. “A partir do momento que eu tive a consciência racial, eu era muito nova, tinha meus 15 anos, mas já entendi, através de relatos e depoimentos, que eu teria de ser muito boa no que quisesse fazer, às vezes duas ou três vezes melhor do que as pessoas brancas que estavam ao meu redor”, relata. 

Ela destaca que teve essa primeira experiência ao chegar na faculdade. “Existiam cursos mais elitizados do que Publicidade, onde havia menos diversidade, tanto de mulheres quanto de pessoas negras. Foi quando eu senti diretamente o que era conviver em um espaço que não tinha diversidade ou que tinha pouca diversidade e eu me deparei com professores proferindo afirmações racistas ou tratando de estratégias de comunicação que eram baseadas no racismo estrutural, como, por exemplo, propaganda de margarina”, relembra. 

“Dentro da faculdade, comecei a questionar esses modelos e propor abordagens diferentes, então sempre que íamos fazer trabalhos, geralmente em grupo, fazíamos questão de incluir a diversidade racial, de gênero e de pessoas, ao máximo. Para mim, ficou nítida essa desigualdade, nesse momento, quando não havia diversidade de pessoas, e que a propaganda era uma forma de empoderar as pessoas, de dar visibilidade, de representar e de colocar essas pessoas em evidência, mostrando para a sociedade que pessoas negras também são consumidoras desses produtos”, narra Victoria.

A publicitária explica que, a partir disso, tornou-se mais nítido que não se tratava apenas da questão de representatividade, ou dar voz e visibilidade. “Dentro dos espaços, o movimento negro tem voz, as pessoas negras têm voz ativa onde estão, a questão é a ampliação dessa voz, é levar para mais pessoas, para pessoas diferentes que estão fora da bolha, para que essas pessoas tenham consciência do que acontece”, pontua. “Acredito que hoje o movimento negro está em um momento de incluir pessoas negras nos espaços, colocar de fato pessoas negras nas empresas, dentro dos comitês, dentro dos grupos dos coletivos e coletivos diversos, para além do movimento negro”, afirma.

Victoria também retrata a importância do movimento antirracista. “Esse é um movimento que inclui todas as pessoas, pardas, brancas, negras, que querem aderir e lutar contra o racismo junto com essas pessoas negras, até porque o racismo não é uma responsabilidade das pessoas negras, porque não fomos nós que criamos, mas, sim, os brancos. A participação de pessoas brancas nesse movimento é de extrema importância para nós. São pessoas aliadas à nossa causa e que têm disposição de abrir mão de alguns privilégios e posições para incluir pessoas negras”, argumenta. “Permitir que pessoas negras ingressem nos lugares e colocá-las em posições mais elevadas é um ato de suma importância para minimizar e extinguir o racismo, porque muitas vezes não é a questão de ‘essa pessoa negra não quis estar ali’, primeiro que não houve condições para ela estar ali, segundo que negaram a presença dela naquele espaço. Por isso, cabe às pessoas que têm o poder de decisão permitir a entrada nesses espaços, porque somos qualificados, estamos preparados e gostaríamos de ocupar, mas é um movimento que não depende só de pessoas negras”, finaliza.

SENTINDO NA PELE

“Minha atuação profissional é resultado de uma construção durante minha trajetória de vida. São 22 anos atuando na periferia e, quando percebi, tinha um ‘know-how’ gigante, então vieram os grandes realizações que me deram uma projeção para além dos bairros onde sempre atuei, e muitos dos trabalhos que geraram repercussão tiveram início em ações comunitárias, sociais, mobilizando juventudes e comunidades”, conta Elieser Pereira, conhecido como Leser MC, de 38 anos, que atualmente é apresentador do programa Papo de Futuro, na Tv Thathi, atua como produtor cultural, realiza consultorias e comunicação para relações humanas em corporações, é também educador social, rapper e presidente da ONG Comunidade Barracão — projeto social Comunidade do Simioni.

Hoje, o artista atribui grande parte das decisões assertivas à estrutura que recebeu através da religiosidade que herdou da família. “Mesmo tendo a Bíblia como referência de busca espiritual, nunca consegui desconectar a fé da realidade ao meu redor. Passei a compreender e pesquisar também sobre uma narrativa pouco difundida de homens e mulheres negras que tiveram papéis relevantes na Bíblia e no movimento evangélico, fatos que durante anos foram ignorados e, com isso, passei a combater também nos espaços religiosos fundamentalistas a demonização de tudo que veio da África”, declara.

Elieser afirma que para o racismo perder espaço é necessário uma reparação não só nos pensamentos, mas também na práticaNÃO É REGRA, É EXCEÇÃO

Elieser afirma que teve uma visão melhor sobre a sociedade e a juventude a partir do momento em que a violência e a criminalidade eram problemas constantes que cercavam várias pessoas próximas. “Esses dias parei para pensar sobre os jovens que cresceram na mesma rua em que cresci. A maioria deles, da mesma idade que, eu já foi presa, está presa hoje ou em algum momento se envolveu com a criminalidade — ou melhor, foram aliciados quando ainda adolescentes pelo tráfico de drogas e o crime. Eu fui uma exceção”, destaca.

EM METAMORFOSE

Elieser lembra os anos de injustiça cometidas contra os negros, e como é importante tratar da história. “Existiram leis que nos impediram de progredir com o Brasil, como a Lei n.1, de 14 de janeiro de 1837, que impedia negros de irem à escola. E esse é um dos inúmeros exemplos históricos que posso citar”, afirma.

“É importante dizer que existe um número cada vez maior de instituições e órgãos públicos e privados que estão se atentando para programas de inclusão ou combate à discriminação e o preconceito, mas ainda é um desafio enorme mexer com o racismo estrutural e, nesse desafio, é impossível tratar de diminuir a desigualdade se não falarmos de racismo e poder econômico”, relata. “Uma história que o Brasil insiste em negar, em resolver definitivamente. Para isso mudar, ele precisa assumir que é necessária essa reparação, e assim seguirmos em frente. Só assim avançaremos e seremos uma país mais justo e igualitário para todos”, conclui. 

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