Masculinidade em análise

Masculinidade em análise

Desde meninos, homens crescem com ideias de masculinidade que suprimem emoções e premiam reações agressivas; especialistas destacam necessidade de se buscar ajuda especializada

Por conta de dificuldades no trabalho que atrapalhavam sua vida profissional e respingavam em sua vida pessoal, o assessor de imprensa Ricardo, de 33 anos, percebeu que precisava de ajuda e buscou a terapia. A gota d’água para buscar o tratamento ocorreu em 2018, após presenciar a demissão de uma colega.

 

“Trabalhava em uma empresa há 10 meses e a convivência era muito difícil, um volume de trabalho extremamente alto e uma remuneração extremamente baixa, além de desorganização e episódios de assédio moral. Também via colegas sendo perseguidas, o que me causava revolta. O dia que minha amiga foi demitida foi o auge da situação e tive uma reação agressiva dentro da empresa. Gritei com um gerente, sai batendo porta, nesse dia, eu percebi que algo não estava bem”, detalha.

 

Ricardo não é o nome real do nosso entrevistado. Assim como muitos outros homens procurados para esta matéria, ele prefere não assumir publicamente os episódios de fragilidade ou tornar públicas suas idas ao divã. “Faço psicanálise desde então e é óbvio que surgiram outros problemas pessoais nas sessões. Mas o controle dessa agressividade foi o que me levou a procurar ajuda terapêutica”, ressalta.

 

O assessor acredita que fazer terapia mudou sua vida positivamente, pois começou a perceber quais são seus traumas, seus mecanismos de defesa para não lidar com eles e melhorou sua percepção de si mesmo. “É fundamental para mim, como homem gay, pois pude perceber que muitas das minhas dificuldades vêm de situações que vivi enquanto uma criança e um adolescente LGBT e não percebi que o mundo era violento comigo. Só fui ‘sair do armário’ aos 23 anos, tem muita coisa que fui viver só na fase adulta, como o primeiro beijo, por medo das reações das pessoas”, acrescenta.

 

No geral, os homens buscam menos a terapia do que as mulheres. Um relatório da Pesquisa Nacional de Saúde 2019 aponta que 69% dos homens passaram por consultas naquele ano. Já as mulheres foram 82%. De acordo com o mestre em Psicologia pela Unesp, na área de estudos de gêneros e sexualidades, e professor da Estácio, Renato Cezar Silvério Júnior, a questão está diretamente relacionada com os contornos rígidos da masculinidade. Ele explica que homens procuram menos psicoterapia e menos atendimento em saúde de forma geral.

 

“Não é por acaso que a taxa de suicídio entre homens seja três vezes maior do que entre mulheres. Embora haja uma mudança em curso, disparada pelas próprias evidências da necessidade de se redefinir o masculino, ela é lenta. Procurar psicoterapia pode ser visto por muitos homens heterossexuais como sinal de fragilidade e esta característica é erroneamente atribuída ao universo feminino. Isso é muito grave, pois a fragilidade e a interdependência são características humanas, não estão ligadas ao gênero”, explica.

 

A cultura nomeia como masculino e feminino características humanas, esvaziando a complexidade da existência. Diante dessa complexidade, não é incomum surgirem concepções reacionárias e romanticamente saudosistas, buscando no modelo que não funcionou no passado a solução para o presente. Segundo o professor, muitas pessoas ainda acreditam que os homens são naturalmente mais agressivos, mais inclinados ao sexo, líderes e práticos, e que essas características seriam uma expressão de cromossomos e hormônios.

 

“As diferenças biológicas entre homens e mulheres realmente existem, mas, em questões comportamentais, a genética é interacionista, nunca determinista. O comportamento masculino, assim como todo comportamento humano, é extremamente variável entre culturas, sociedades e épocas históricas, sendo a ideia de uma essência imutável do masculino um tanto quanto problemática. Não se deve temer a diversidade humana, ela é a base da criatividade que faz nossa espécie tão fascinante”, defende Silvério. 

 

“Homem não chora”

Durante o desenvolvimento dos meninos, é muito comum ouvirem frases como “homem não chora” ou “isso não é coisa de homem”. A psicóloga clínica especialista em Neuropsicologia Jaqueline Garcia Diniz explica que a repercussão dessa cultura, que invalida emoções intrinsicamente humanas e naturaliza a agressividade como a única forma de gerenciar situações problemáticas, repercute no fortalecimento de uma crença distorcida de que a expressão das emoções ou até mesmo senti-las pode ser um problema ou algo constrangedor.

 

“É importante pensarmos nos valores que estamos reproduzindo nos homens desde pequenos. Frases como essas desvalidam as emoções e podem causar um sentimento de desamparo seguido de comportamentos de esconder as próprias emoções e optar por não buscar formas de gerenciá-las, tornando-se adultos com dificuldade de se expressar”, alerta.


Dentre os principais problemas levados por homens ao divã, Jaqueline destaca os dilemas envolvendo a autoestima, ansiedade, estresse devido ao trabalho e excesso de responsabilidade. Sobre hábitos que os homens podem adotar no dia a dia para melhorar a saúde mental, a neuropsicóloga explica que autocuidado é parte desse conjunto e é o primeiro passo. Desde ter um momento para si, como tomar um bom banho, meditar, ler, assistir comédias, praticar algum esporte, ouvir podcast de pessoas que admire e te inspire, além de alimentar a mente com descanso e informações saudáveis.

 

“Atualmente, ouço e indico grandes homens que tornaram-se referências em suas áreas. Sempre gosto de indicá-los para meus pacientes, afinal, para toda mudança de comportamento, é preciso um modelo de comportamento. Os homens precisam de referências positivas e exitosas, principalmente nos aspectos de saúde mental e autocuidado, para tanto recomendo autores de podcast, livros e vídeos acessíveis no Youtube, como Mário Sérgio Cortella, Leandro Karnal, Joel Jota e comediantes como Tiago Ventura e Rafael Portugal”, recomenda. 


Foto: Pixabay

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