Música na veia

Música na veia

Em um bate-papo descontraído, Ricardo Gama, diretor artístico do Sambô, conta ao cantor Marcelo Gasparini como conquistou o sucesso em âmbito nacional

Quando duas pessoas como Marcelo Gasparini e Ricardo Gama se reúnem para um bate-papo, cedo ou tarde a música se torna protagonista; afinal, nos dois casos, a paixão pelo tema corre nas veias. Marcelo compõe, ao lado do irmão gêmeo, a dupla Maurício & Marcelo; já a história de Gama com a música remete à infância, ao amor do pai pelos vinis, que faziam parte da trilha sonora familiar em todos os finais de semana, além da musicalidade que escorria do acordeom, do violão e do piano pelas mãos de parentes próximos, que o estimularam, aos oito anos, a aprender piano, e,  posteriormente, a fundar a produtora de áudio para publicidade Audiowork, além de fazer parte da banda Sambô, na qual começou como tecladista, mas se tornou diretor musical. É com intimidade com o tema que Marcelo conduz Gama a uma retrospectiva, sempre permeada pela música.

Marcelo: Sua vida sempre foi medida por duas vertentes: a música e a odontologia. Como nasceram as duas tendências?
Gama: Elas nasceram naturalmente, pois meu pai era apaixonado pela música. Embora não tocasse nada, era um colecionador de LPs e, nos finais de semana, tinha o hábito de ficar o dia inteirinho ouvindo os vinis. Assim, sempre convivemos com a boa música. Aliás, guardo a coleção dele, com mais de 4 mil discos. Além disso, meu avô, minha tia e minha mãe tocavam piano, violão e acordeon, o que me levou a fazer aulas de piano aos oito anos. A odontologia também aconteceu por influência, desta vez, do meu avô, que era dentista. Como a escolha da profissão acontece muito cedo, acabei trilhando os mesmos passos que ele, que estava próximo a mim. Nessa época, meu pai já havia falecido.

Marcelo: Por quanto tempo exerceu a odontologia?
Gama: Por quatro anos.

Marcelo: Quando a música passou a falar mais alto?
Gama: A música já falava mais alto, muito forte, pois nunca deixei de tocar por ser dentista. Chegou uma hora em que desenvolver duas profissões ao mesmo tempo pesou. Não dava para conduzi-las como eu gostaria: o tempo era suficiente para executá-las, mas não para me aprimorar nelas. Mesmo a paixão pela música sendo maior, a decisão foi difícil porque, apesar de músico, achava que tinha que ter outra profissão. Para se ter uma ideia, no momento de escolher uma faculdade, a música não passou pela minha cabeça. Quando chegou a hora de efetivamente tomar uma decisão, percebi que se abandonasse a música, seria uma pessoa triste no futuro. Disso eu tinha certeza.

Marcelo: Como se transformou no empresário de um dos maiores estúdios de jingles do país?
Gama: Logo que decidi tornar a música minha profissão exclusiva, mudei para São Paulo e trabalhei com o Guilherme Arantes. Fiz algumas coisas por lá até ser chamado por um amigo de Ribeirão Preto, que já morava na capital, para criar trilhas para vídeos e gostei muito de fazer isso. Quando meu avô faleceu, resolvi voltar para o interior e ficar perto da minha mãe. Comecei a trabalhar em um estúdio de publicidade fazendo jingles e trilhas. Depois de um tempo, decidi montar uma empresa de áudio para publicidade, a Audiowork, que já tem 12 anos. Passado um período trabalhando somente dentro do estúdio, resolvi, para me distrair, chamar os amigos para tocar nos finais de semana, em churrascos e programas afins. Foi assim que surgiu o Sambô.

Marcelo: Quando percebeu que aquela brincadeira entre amigos poderia virar um grande negócio?
Gama: Nunca tivemos essa pretensão. A banda virou um negócio naturalmente, pela própria necessidade. Era até difícil promover os encontros porque todo mundo já tinha seus compromissos, inclusive eu, com a empresa. Para fazer com que o Sambô tocasse mais, era necessário deixar de lado outras bandas e compromissos para profissionalizar o grupo. Foi, então, que começamos a cobrar para tocar. No começo, isso não acontecia, mas, a partir daí, em cada festa que tocávamos, fechávamos outra e a agenda começou a aumentar, assim como o tamanho das festas. Depois disso vieram os bares, fazendo com que o grupo permanecesse. Já são 11 anos de Sambô.

Marcelo: Hoje o Sambô faz grande sucesso. Qual é o grande diferencial do grupo?
Gama: Um deles é transformar músicas de diversos estilos em samba.  Isso aconteceu porque, certa vez, tocando em uma casa, alguém brincou: “Ei, vocês só vão tocar samba? Toca um rock ai”, e foi o que fizemos. Com os instrumentos de samba na mão, tocamos Mercedes Benz, da Janis Joplin, ao nosso ritmo. Tinha umas 30 pessoas na festa e quem estava lá achou demais, fazendo com que aquilo virasse uma verdadeira mania nas festas daquela época. Os convidados, quando sabiam que  a gente ia tocar, já chegavam com uma listinha e a gente experimentava na hora. Algumas músicas permanecem até hoje no repertório. A brincadeira  se transformou no forte diferencial do Sambô. Não fomos pioneiros nisso, mas nos destacamos bastante. Muitas bandas começaram a fazer o mesmo, e fazem até hoje. Para nós, foi muito legal dar esse “start”. Outro diferencial fundamental do grupo são os próprios músicos da banda, não só por serem bons, mas pela individualidade e pelo respeito de todos em relação às características de cada um. Fazer músicas em samba não é nenhuma novidade, mas muitas bandas fazem e não se destacam como nos destacamos. Atribuo isso exatamente às peças que compõem o Sambô.

Marcelo: Como aconteceu a escolha dos músicos?
Gama: Foi obra do destino e do aproveitamento do encontro. Já havia tocado com o Sudu em outras situações e sempre fui fã dele. Mas uma bateria em roda de samba? Sabia que só daria certo se fosse o Sudu. Foi uma escolha feita pela pessoa e pelo músico. Tanto que tocamos sem baterista esperando ele chegar.

Marcelo: Você imaginava que a banda poderia chegar ao patamar alcançado?
Gama: A gente sempre sonha com isso, mas sabe que é difícil fazer-se presente no cenário nacional da música. Todo mundo quer chegar a esse ponto, mas sabe que a chance é muito pequena pela quantidade de gente boa que tem por aí.

Marcelo: O que é mais difícil: chegar ou se manter nesse patamar?
Gama: Manter-se é mais complicado. Para ficar famoso instantaneamente, basta tirar a roupa na rua, mas quando o objetivo é apenas a fama, não há chance de dar certo. Nossa meta sempre foi fazer uma boa música, primeiramente, para agradar a nós mesmos. É lógico que queremos que as pessoas gostem, mas se a música produzida não agradar a nós mesmos, não será verdadeira, e aquilo que é falso não se mantém. Se pensássemos apenas em mercado, provavelmente não teríamos gravado músicas como “Você abusou” ou “Retalhos de Cetim”. Tocamos o que estamos a fim de tocar.

Marcelo: Recentemente, você decidiu não ir mais para a estrada e permanecer na retaguarda do Sambô. Por que tomou essa decisão?
Gama: Hoje, atuo como diretor artístico, embora tome algumas decisões administrativas quando há necessidade, pois temos uma equipe legal para decidir venda de shows, produção, entre outros quesitos. Depois de passar por algumas experiências em relação ao modelo de trabalho, decidimos ter vida própria novamente, como era antes. Não adianta achar que, da estrada, será possível conduzir seu negócio: conseguimos até conduzir a arte, mas fica sem base administrativa. É preciso ter um gestor e fica muito difícil colocar essa responsabilidade em alguém de fora do grupo porque demora para entender o que é o Sambô com profundidade, tempo suficiente para que ocorram vários erros. Quando sugeri ficar com essa função, todos arregalaram os olhos, mas, após cinco minutos de conversa, todos entenderam que era a melhor opção. No meu lugar como tecladista, ficou Renato Xexéu, que também é de Ribeirão Preto e tem minha total confiança. Passei então a cuidar integralmente do direcionamento de carreira, sobretudo, na parte artística, fazendo contatos com gravadoras, divulgação, produção do CD, entre outras atividades.

Marcelo: Isso te completa?
Gama: Sim, mas é claro que sempre vou sentir falta de alguma coisa. Tenho saudade de tocar, mas, por anos, senti falta de estar com a família e com os amigos. Hoje, trabalho até mais do que quando tocava, mas consigo estar com a família e com os amigos no final de semana, conferir um festival, entrar em contato com demais segmentos do meio artístico, entre outras coisas.

Marcelo: Quantos profissionais estão envolvidos com o Sambô?
Gama: Na estrada, são 18, com os motoristas, 22. No escritório, há mais cinco pessoas, além dos divulgadores de rádio.

Marcelo: Como enxerga o cenário musical?
Gama: O cenário está sempre mudando com o passar do tempo, o que é normal em qualquer mercado. Historicamente, Ribeirão Preto proporciona muitas opções artísticas de qualidade, mas não é fácil para ninguém, porque quem quer ganhar espaço precisa abrir mão dessa vida tranquila e ir à luta. E a competição em São Paulo é difícil. Muitas vezes, a pessoa sai do interior sendo um músico de destaque na sua área, mas percebe que é só mais um na capital. Em São Paulo, há um rol de músicos muito mais amplo, com talentos, às vezes, inegáveis. Mas não precisa se assustar porque, entre tanta gente, quem terá todas as suas qualidades? É preciso, ainda, cumprir horários, responder e-mails, etc. O mercado,  hoje, está muito voltado para isso. Os escritórios dos artistas que estão se destacando são muito organizados, com alto nível em estratégia e em marketing, muito mais profissionais. Quem está por aí tem uma base administrativa de primeira linha. Hoje, as possibilidades aumentaram muito com a internet, já que isso diminuiu a dependência das rádios, da TV ou dos shows em algum lugar. Hoje, basta um vídeo no Youtube para que o mundo te veja, basta saber usar a rede.

Marcelo: Em Ribeirão Preto, você tem fama de ser um Midas, já que tudo que toca vira ouro. Isso é real? 
Gama: Não é verdade, nem tudo o que toco vira ouro. O que é real é que sempre acordei cedo, cumpri todos os meus compromissos e nunca faltei à escola sem estar doente. Faço isso até hoje: tenho responsabilidade com as reuniões, com os encontros, mesmo em relação ao conhecimento de música. Na minha prateleira, há uma pilha de DVDs com plástico porque assisto um atrás do outro, independente do gênero, sem exceção: os que ganho ou os que compro. Toda semana compro vários CDs, escuto e observo todos eles. Essa busca pelo conhecimento também ajuda a construir o sucesso profissional. Nunca fui preguiçoso. Se possuo algum talento, não acredito que seja tão grande, mas foi potencializado por todo o resto. Muita gente me elogia, mas talvez eu não seja tudo o que dizem musicalmente. Agora, não tenho preguiça de trabalhar, de me aprimorar e de complementar o talento.

Marcelo: Profissionalmente, qual será o próximo passo?
Gama: Em março, faremos uma turnê nos Estados Unidos, além de outras oportunidades que estão pintando no exterior. Esse é um grande passo, que reflete a maturidade da banda: ir a outros lugares e apresentar nossas músicas, participar de qualquer festival e mostrar a mistura que a gente faz. A banda está muito madura musicalmente, em uma fase muito boa: todo mundo já sabe o que quer. Em relação a mim, particularmente, é fazer bem o que me propus: a Audiowork está  numa fase bem produtiva, especialmente por causa do link que estou fazendo com São Paulo, com trabalhos diferentes. O próximo passo é consolidar o que me propus a fazer em 2014.

Marcelo: O que destacar sobre os prêmios recebidos pela Audiowork?
Gama: O reconhecimento é legal, mas os prêmios vêm em consequência do trabalho.  A equipe da Audiowork tem ótimos profissionais. Trabalhamos para cada cliente com a maior atenção, o que acaba resultando em trabalhos legais que se destacam, participam de festivais e, às vezes, ganham alguma coisa, o que é gostoso pelo reconhecimento.

Marcelo: Por conhecer artistas de todo o país, como classifica os profissionais ribeirãopretanos?
Gama: Ficamos muito felizes, pelos caminhos que tem percorrido e por sempre tentar levar gente de Ribeirão Preto. Na nossa equipe, tem bastante gente da cidade. Da mesma forma, em nossas conversas, em encontros profissionais sempre falamos de Ribeirão Preto. Quem fez a capa do nosso disco, por exemplo, foi uma agência de Araraquara. Não fazemos isso porque queremos agradar a região, mas porque são bons profissionais mesmo. E é muito legal sentir esse reconhecimento em cada canto do país, apesar de ainda predominar o pensamento de que, se é bom, é de São Paulo. Sempre fazamos questão de lembrar que aqui há ótimos profissionais. Eu poderia escolher qualquer tecladista do Brasil para me substituir, mas meu primeiro pensamento foi o Renato Xexéu, que é daqui e toca muito. A gente sempre faz questão disso.

Marcelo: Você acha que 2015 será um ano de recessão?
Gama: Já estamos vivendo uma crise, e a tendência é piorar. No mercado, o entretenimento é supérfluo dentro do orçamento da família, mas  as pessoas precisam se divertir, então, espaço haverá, só que estará mais restrito. As pessoas que estavam acostumadas a assistir três shows por mês vão começar a assistir a um só, mas se o artista apresentar novidades e fizer bons shows, pode ser escolhido pelo consumidor. Também há alternativas: hoje, não dá para ficar esperando o telefone tocar, é preciso ir atrás, tentar organizar um esquema, talvez procurar outro artista e oferecer dois shows no mesmo dia. A criatividade deve prevalecer.

REFERÊNCIA NA CENA MUSICAL

“Desde muito cedo, já percebia o enorme talento que a nossa cidade tinha concebido. Lembro-me saudoso da época em que eu e meu irmão, Mauricio, íamos à casa do avô do Gama, praticamente todas as tardes, onde sempre éramos recebidos com muito carinho pela sua mãe, e ficávamos horas diante do piano que enfeitava a sala tocando e cantando como uma verdadeira família. De lá nasceu um caminho de muito profissionalismo da dupla Mauricio e Marcelo e de um dos maiores produtores musicais do Brasil, que há alguns anos revolucionou o mercado do samba nacional com seu estilo único, liderando o grupo Sambô, que se tornou referência contemporânea na cena musical brasileira. Tenho a honra e o orgulho de ter acompanhado essa trajetória de um amigo que conseguiu, com seu talento e esforço, tornar-se dentista e também um profissional de primeira no ramo artístico, seja como músico, produtor ou empresário”.
Marcelo Gasparini, músico

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