Não há espaço para a indiferença

Não há espaço para a indiferença

Governo, iniciativa privada e sociedade se movimentam para minimizar uma das principais consequências da pandemia: a fome

Texto: Paula Zuliani

Hudson Rafael Fernandes e Bianca Jeniffer Garcia, ambos com 23 anos, são pais de Amabilly Victoria, Aisla Natyele e Ágata Emanuelle, de três, dois e um ano, respectivamente. Ela fica em casa para cuidar das filhas. Ele trabalhava em um ferro velho, mas foi dispensado. “A nossa situação, que já era muito difícil, ficou ainda pior com a pandemia. Não encontramos serviço em lugar nenhum. Como não posso ficar parado, tenho recolhido recicláveis nas ruas. Por dia, tiro, no máximo, R$ 30,00”, revela Rafael. Bianca foi cadastrada no auxílio emergencial do Governo Federal e recebe R$ 269,00. A renda, no entanto, é insuficiente para cobrir as despesas da família. “Desde que tudo isso começou, nossa prioridade sempre foi alimentar as meninas. Só a lata de leite que a nossa caçula precisa tomar custa quase R$ 50,00. Para nós dois, qualquer coisa serve, um pão, um pouco de macarrão. Algumas vezes, nem isso conseguimos para comer”, confessa a jovem. O casal, então, passou a depender de doações para sobreviver. O mesmo acontece com as outras 369 famílias que, assim como eles, moram na Comunidade da Paz, nas proximidades do Jardim Juliana, em Ribeirão Preto.

A ajuda, aos poucos, tem chegado, graças à solidariedade de empresas e de pessoas da cidade que entendem as circunstâncias desafiadoras, somada à dedicação do líder comunitário Edson Luís Borges dos Santos, conhecido como Cebola. “Todos que estão aqui são pessoas do bem, que querem trabalhar para viver com o mínimo de dignidade. A pandemia atrapalhou a nossa luta, mas nunca perdemos a esperança. Por isso, saí em busca de ajuda. Há alguns meses, recebemos cestas básicas do Banco de Alimentos e do Instituto SEB. Como o número de cestas doadas não dá para todas as famílias, dividimos os alimentos em uma espécie de rodízio, para que cada um tenha, pelo menos, alguma coisa para colocar no prato. Tenho acompanhado outras comunidades e a realidade é muito parecida. Encontramos pessoas vivendo em condições sub-humanas”, descreve Edson. Bianca completa: “Não importa o que as pessoas vão doar. Nós precisamos de tudo. Aceitamos tudo e agradecemos, de coração, quem puder nos estender a mão”, finaliza.

Uma triste realidade

O agravamento da fome na cidade é uma triste realidade que pode ser constatada, por exemplo, pelo aumento na demanda por cestas básicas registrado pela Secretaria Municipal de Assistência Social. Antes da pandemia, eram fornecidas 250 cestas básicas pelo benefício eventual. Hoje, são entregues em torno de 3.500 cestas básicas emergenciais por mês. Para tentar garantir a segurança alimentar, a Secretaria também criou o projeto “NutriAção”. Até o momento, foram distribuídos 1.050 kits alimentares entre hortifruti, em parceria com o Ceasa-RP, e cestas básicas, doadas pelo Fundo Social de Solidariedade. “Além de oferecer um alimento nutritivo, a principal missão do projeto ‘NutriAção’ é inserir essas famílias no Cadastro Único, se necessário, aumentar a abrangência de famílias referenciadas nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e possibilitar o mapeamento e o diagnóstico das demandas sociais do Município. A continuidade e a perenização consistem num cronograma de visitas nessas comunidades, para aproximar e acolher ainda mais essas pessoas em situação de vulnerabilidade”, explica a secretária municipal de assistência social, Renata Corrêa.

Desde o ano passado, o Fundo Social de Solidariedade trabalha para arrecadar doações de cestas básicas com a campanha Ribeirão Solidária, que fortalece as redes de apoio e assistência social do município. “O nosso desejo é o de realmente atender essas pessoas. Vamos continuar com a nossa campanha, graças aos doadores anônimos e às empresas. A solidariedade nos fortalece e nos dá esperança por dias melhores”, afirma a presidente da entidade, Mariana Jábali. Para quem quiser ajudar, as doações de alimentos, produtos de limpeza e higiene pessoal podem ser feitas diretamente no Fundo Social, localizado na rua Cerqueira Cesar, 383. O telefone para informações é o (16) 3625.7194. Valores em dinheiro devem ser depositados na conta da campanha. No site do Ribeirão Solidária (www.ribeiraopreto.sp.gov.br/coronavirus/doacoes) é possível gerar um boleto para fazer o pagamento.

Graduado em Serviço Social, com especialização em gestão de projetos sociais e docência no Ensino Superior, o professor e assistente social da Organização Casa das Mangueiras, João Gabriel Fernandes Manzi também analisa o quadro. “A fome é uma expressão da questão social sempre presente no Brasil, devido ao cenário de desigualdade e injustiça social. Em Ribeirão Preto, temos regiões em sérias situações de vulnerabilidade. No último ano, muitas famílias ficaram sem emprego e sem renda. Com as escolas fechadas, as crianças também não têm acesso à merenda. Sem dúvidas a pandemia agudizou essa problemática. Isto gera outras questões sociais, como pessoas em situação de rua e exploração de trabalho infantil. Essas são demandas que aumentaram bastante no cenário de pandemia. A solidariedade, a paciência e o respeito são fundamentais para superarmos esse momento crítico”, declara. 

Iniciativas que fazem a diferença

Ainda no ano passado, a Catedral Metropolitana de São Sebastião também intensificou o auxílio a famílias carentes com a distribuição de cestas básicas. Em um vídeo recente divulgado nas redes sociais, o padre Francisco Jaber Moussa, o padre Chico, compartilhou a urgência da situação. “Quando abrimos a nossa Catedral, eu me deparei com uma situação que me deixou muito preocupado e, ao mesmo tempo, assustado. Muitas famílias e pessoas já estavam aqui nos esperando para pedir ajuda. Angustiadas, aflitas, sofrendo por causa de toda situação que estão vivendo. A dificuldade de conseguir emprego e muitas foram dispensadas”, declarou o padre. Com o lockdown, em março deste ano, e a alta nos preços dos produtos que compõem a cesta básica, muitas famílias ficaram desamparadas. Em apenas uma semana, a secretaria fez cerca de 300 novos cadastros. Segundo o sacerdote, a Catedral mantém, atualmente, uma relação de 1,9 mil famílias carentes. “Fazemos o cadastro, a análise dessas famílias (com número do RG, CPF, comprovante de residência) e entregamos os alimentos mediante essa documentação. Esse controle é importante para evitar qualquer problema ou injustiça. As contribuições são feitas pela comunidade e por empresários. Recebemos doações não só de cestas, mas também de alimentos avulsos”, completa. As doações de alimentos podem ser levadas na secretaria da Catedral, de terça a sexta-feira, das 9h às 18h.

O Programa Mentoria Social, do Instituto SEB, também tem atuado de forma consistente no combate à fome, atendendo em torno de 14 comunidades da cidade, além de organizações sociais. “A pandemia explodiu em março e começamos esse trabalho em abril de 2020. Mantivemos uma certa estabilidade no número de famílias cadastradas até o final do ano, imaginando que, em 2021, teríamos uma redução. Infelizmente, não foi o que aconteceu. Fazemos o acompanhamento das famílias e o que temos constatado é o agravamento do problema. A quantidade de pessoas que perderam seu sustento e vivem em situação de extrema vulnerabilidade cresce a cada dia. É um cenário que merece atenção. Só no mês passado, 4.678 pessoas foram alcançadas pelas distribuições das nossas cestas”, pontua Dirceu Crysostomo, gestor do Mentoria Social. Os interessados em colaborar devem entregar as cestas na sede do Instituto, que fica na rua Mariana Junqueira, 33.

Solidariedade

Não são só empresas, instituições e entidades que estão empenhados nessa causa. A própria sociedade está se organizando, unindo forças para oferecer suporte nesse momento adverso. O Corrente do Bem Ribeirão é um exemplo. Criado por um grupo de amigos, esse projeto abriu duas linhas de apoio: uma vaquinha on-line, onde é possível doar qualquer valor em dinheiro, e a doação física de alimentos e roupas em pontos indicados na cidade, entre eles Talismã Cristais e Presentes, Bio Marché, Vila Beef, Team Nogueira, NewNutrition, Ibis Styles Rib Maurílio Biagi e Ibis Styles Rib Braz Olaia. Em pouco mais de duas semanas, a iniciativa já arrecadou R$ 17 mil e fez a doação de 60 cestas básicas. Entre os beneficiados estão 600 famílias de favelas vivendo abaixo da linha da pobreza e as entidades locais Garotos do Futuro e Anjos da Cidade RP. “A pandemia nos trouxe esse olhar para o coletivo. Nosso objetivo é conseguir atingir o maior número de pessoas possível para contribuir com esta corrente do bem, não importa a quantidade ou o tipo de doação, o importante neste momento é ajudar de alguma forma, seja doando o que pode ou até mesmo fazendo a divulgação”, destaca Elke Hermann, uma das idealizadoras do Corrente do Bem Ribeirão.

Outro projeto que merece destaque é o coletivo Gente. “Decidimos fazer mais do que apenas acompanhar as notícias. Queremos construir soluções em meio ao caos. Por isso, reunimos pessoas de vários segmentos sociais (artistas, médico, assistentes sociais, engenheira, professores, psicóloga, psicopedagoga, pedagoga, dentre outros), com a intenção de amenizar o sofrimento de pessoas socialmente vulneráveis, por meio de intervenção nas comunidades com ajudas emergenciais, alfabetização, educação artística e apoio psicológico, entre outras modalidades. Precisamos de toda ajuda possível para viabilizar essas ações”, descreve Anita Adas. A pedagoga também participa do projeto Ribeirão Humana. “A partir da percepção de que essa não era apenas a nossa inquietação e de que um grande número de campanhas de arrecadação de alimentos já estava em andamento em Ribeirão Preto, pensamos em uma ferramenta que possa potencializar essas iniciativas por meio da divulgação via Instagram”, acrescenta. Quem quiser pode conferir tudo pela conta: @ribeiraohumana.

A situação no país

De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 19 milhões de brasileiros passaram fome nos últimos meses do ano passado. A sondagem – feita em dezembro de 2020, em 2.180 domicílios, nas cinco regiões brasileiras, abrangendo tanto áreas rurais como urbanas – estima que 55,2% dos lares, o correspondente a 116,8 milhões de pessoas, conviveram com algum grau de insegurança alimentar e 9% deles vivenciaram insegurança alimentar grave, ou seja, passaram fome, nos três meses anteriores ao período de coleta, época em que o auxílio emergencial concedido pelo governo federal a 68 milhões de brasileiros, no valor inicial de R$ 600 mensais, havia sido reduzido para R$ 300 ao mês. (Agência Brasil)

Ação conjunta

Em uma ação que mobilizou associados, diretoria e funcionários, a Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto (Acirp) arrecadou cerca de 40 toneladas de alimentos, quantidade suficiente para montagem de duas mil cestas básicas. Os alimentos foram entregues ao Fundo Social de Solidariedade no dia 8 de abril e serão repassados a famílias do município que se encontram em situação de vulnerabilidade. “A pandemia está trazendo consequências sem medida, tirando a vida de milhares de pessoas e devastando, de forma cruel, milhões de empregos. Por isso, é importante que a sociedade civil se organize para garantir que as famílias fragilizadas socialmente possam ter, ao menos, um prato de comida para se alimentar”, diz Dorival Balbino, presidente da Acirp.

Semeando o bem

Desde 2001, o Grupo Rodonaves promove a Gincana Semeando o Bem, envolvendo colaboradores, familiares, parceiros, unidades de negócios e clientes. Este ano, a campanha vai até o dia 13 de maio. “Estamos arrecadando alimentos de cesta básica, como arroz, feijão, açúcar, leite, macarrão, óleo, sal e bolacha, entre outros itens. Tudo será encaminhado para famílias carentes e entidades sociais. Entregue seu melhor junto com a gente”, convida o casal Vera e João Naves. Todas as empresas do Grupo contam com pontos de arrecadação.

Bom prato

Pelo menos até o dia 30 deste mês, as 59 unidades do Bom Prato espalhadas pelo Estado de São Paulo seguem oferecendo café da manhã, almoço e jantar, inclusive aos finais de semana e feriados. O programa de segurança alimentar, coordenado pela Secretaria de Desenvolvimento Social, garante, também, a gratuidade das refeições para as 50 mil pessoas em situação de rua cadastradas pelos municípios paulistas. Desde a implementação dessa medida, em junho de 2020, já foram distribuídas mais de 716 mil refeições. “Para as demais pessoas, enquanto tivermos disponibilidade, as refeições do Bom Prato continuarão a ser oferecidas com subsídio do governo do Estado”, afirmou o governador João Doria (PSDB), em coletiva de imprensa na primeira semana de março.

A partir do início da pandemia, houve um aumento de cerca de 60% na produção da rede popular, ultrapassando a marca de 34,1 milhões de refeições entregues. Por dia, são servidas cerca de 115 mil refeições a partir de 28 toneladas de arroz; 17 toneladas de feijão; 13,5 toneladas de carne; 115 mil frutas; 17.700 pães e 1.700 litros de leite. Por conta das medidas restritivas, os alimentos são colocados em embalagens descartáveis para a retirada. Os valores são R$0,50 (café da manhã) e R$1,00 (almoço e jantar). Com o objetivo de evitar aglomerações, as unidades operam com horário estendido: das 7h às 9h, das 10h30 às 14h, e das 17h às 19h, ou enquanto houver refeições disponíveis.

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