O amor que transcende

O amor que transcende

Assim Gilda Montans e Sônia Camargo dos Santos definem o afeto que surgiu entre as duas


Madura, completa e muito segura da sua trajetória, Gilda Alves Montans é a inquietude em pessoa. Apaixonada por música e tendo esta arte presente em toda a  sua vida, a musicista nascida em Altinópolis conquistou admiradores pelas notas precisas de seus arranjos musicais ao som de sua segunda paixão na vida: o acordeom. Professora de música formada em 1958, recebeu, em 1960, o título de virtuose em acordeom pelo Conservatório Brasileiro de Harmônica de São Paulo, tendo como mestre Edy Meirelles.

Instrumentista, arranjadora e compositora respeitada, Gilda também se graduou em instrumentos (1968), Educação Artística e Educação Musical (1970), além de ser mestra em Pedagogia Musical. Ao lado da amiga Meire Genaro, fundou o primeiro duo de acordeonistas no Brasil e não parou mais de divulgar o instrumento pelo país afora e no exterior. Foram centenas de shows, concertos, apresentações e encontros de acordeonistas promovidos por ela. A paixão pela música, e também pela educação, são divididas há anos com Sonia Maria Camargo dos Santos, que, de colega de trabalho passou a ser amiga pessoal, uma relação marcada pela admiração e pelo respeito. O encontro das duas amigas, no fim de tarde, no cenário perfeito: o Espaço Tulha Santa Estela, local carregado de boas lembranças e com paisagem única, onde a família de Gilda viveu grandes momentos.

Sonia: O que a música representa em sua vida?
Gilda: 
Ao longo dos anos, fui percebendo que a música era como o ar que eu respiro, uma necessidade intrínseca. Esta paixão foi despertada logo cedo, na infância, porque sempre esteve muito presente na minha vida. Minha mãe, Jacyntha Figueiredo Alves, era musicista, cantava e tocava piano. Como na época não existia TV, era comum promover os tradicionais saraus. Eu ficava quietinha num canto, endoidecida com aquela música. Lembro-me que na Igreja, o coro ficava lá em cima e eu subia a escada e sentava no primeiro degrau escutando, maravilhada, aquelas melodias. Minha paixão era tanta que guardo até hoje as letras daquelas músicas. Nas brincadeiras, eu sempre era a pianista, ficava tocando e me divertindo com os meus irmãos menores.

Sonia: Quando começou a estudar música?
Gilda:
 Com 11 anos, iniciei meus estudos no colégio interno e não parei mais. Meu pai, Fábio Meirelles Alves, era apaixonado por acordeom, tínhamos um em casa que foi do meu irmão mais velho, o meu primeiro instrumento. Foi bem mais tarde que ganhei o acordeom de concerto, trazido da Itália especialmente para mim. Aos 13 anos, já tocava nos bailes que aconteciam na fazenda. Lavávamos o estábulo, chamávamos toda a vizinhança, eu tocava as poucas músicas que sabia e o Sebastião, outro sanfoneiro que morava na fazenda, ajudava com outras tantas que sabia. A partir desta época, nunca mais larguei este instrumento.

Sonia: Teve incentivo em casa?
Gilda:
 Sim, mas além da música, também trabalhei muito com a educação musical, na missão de professora em um tempo maravilhoso, mas nunca larguei o acordeom. Mesmo com muito trabalho, dando aula o dia todo, quando chegava em casa, os violonistas já estavam me esperando para  serenatas. Quando fui estudar em São Paulo, a professora Edy Meirelles foi importante em minha vida. Vendo meu talento e sabendo que estava fazendo cursinho para prestar vestibular para Medicina, chamou meu pai para conversar, questionando sobre suas expectativas em relação à minha formação profissional. Foi uma surpresa quando ele disse que ficaria muito feliz em ter uma filha musicista, a ter uma filha médica. Isto aconteceu numa época em que o médico era valorizado na sociedade e a música, simplesmente um complemento da educação das jovens. Sabendo da preferência do meu pai, Edy passou a exigir mais e mais de mim. Toquei muito em eventos em São Paulo e em Ribeirão Preto. Conquistei o primeiro lugar em um concurso, recebendo como prêmio uma medalha de ouro.

Sonia: Como foi sua formação acadêmica nessa área?
Gilda:
 Comecei a estudar acordeom aqui em Ribeirão Preto, mas chegou um ponto em que o professor identificou que não tinha mais nada a me acrescentar e me orientou a seguir os estudos em São Paulo. Então, meu pai foi para a Capital, conversou com Edy Meirelles, conheceu a escola, o Conservatório Brasileiro de Harmônica, e foi proposto que fizéssemos um convênio com o Conservatório Musical de Ribeirão Preto, e assim foi feito. Eu fazia as disciplinas teóricas em Ribeirão Preto e estudava o instrumento em São Paulo. Naquele tempo, as estradas eram de terra e o trajeto levava cerca de oito horas.  Eu viajava de avião, saía de manhã e voltava à tarde, quando meu pai me pegava no aeroporto. Como era tudo muito caro, comecei a trabalhar para ajudar nas despesas. Assim, aos 16 anos, iniciei minha carreira de professora dando aulas particulares, na casa dos alunos.

Sonia: Considerado um instrumento masculino na época, o que fez você se apaixonar pelo acordeom?
Gilda:
 O acordeom chegou ao Brasil por volta do final do século XIX trazido pelos imigrantes. Teve seu auge nas décadas de 50 e 60. Nesta época, o ensino do instrumento se espalhou pelo Brasil afora. O responsável pela façanha foi o músico acordeonista carioca Mário Mascarenhas. Ele montou escolas para todo lado, formou professores com uma metodologia facilitada, o que provocou a banalização do instrumento. Por outro lado, em São Paulo, o ensino era sério, um órgão do Governo do Estado, Fiscalização Artística de São Paulo, era responsável pela qualidade dos conservatórios. Instalou-se um comércio de instrumentos e em quase todas as casas tinha um acordeom. Mas, lamentavelmente, até por conta desta massificação, passou a ser considerado um instrumento de segunda categoria. Hoje, ele voltou a reinar no meio musical. Luiz Gonzaga foi o grande responsável pela valorização do instrumento, da sanfona no território brasileiro, principalmente no Nordeste. Criou o baião e uma maneira especial de tocar, cheia de ginga. Na Europa, assim como nos Estados Unidos, o acordeom sempre teve destaque, não só na música de raiz e folclórica, mas também na música erudita.

Sonia: Como a música, a educação foi gratificante?
Gilda:
 Sem dúvida, sim. Ser professora me trouxe muitas alegrias e me traz até hoje. Tenho alunos espalhados pelo Brasil afora e, agora, por meio das redes sociais, ficou mais fácil encontrá-los. Acho que o professor não ensina nada a ninguém, é apenas instrumento para repassar o conhecimento. Aprende quem quer, e isso deve ser feito com amor, com convicção. Passei para os meus alunos este amor que sinto pela música, que tem o poder de transformar, de envolver e de modificar, portanto, é de suma importância no processo educacional. Aliás, isso é um privilégio de todas as artes. Porém, a música age no mesmo instante do estímulo, em uma ação imediata. O desenvolvimento da sensibilidade é fundamental ao ser humano. Assistimos, hoje, a esta deficiência na educação dos jovens. Arte é fundamental na formação da personalidade. O caos se instalou na educação brasileira a partir do momento em que a arte foi retirada da grade curricular do Ensino Fundamental.

Sonia: Qual o resultado dessa atividade na sua vida?
Gilda:
 Foi fundamental, até porque sempre preciso de mais desafios. Participei de praticamente todas as grandes realizações da educação musical no Brasil nas últimas décadas: encontros nacionais e internacionais, simpósios, cursos latino-americanos de música contemporânea, etc. A música foi fundamental para o meu crescimento. Eu pesquisava muito, nossos alunos tiveram contato com a contemporaneidade, com todos os movimentos de vanguarda. Como tinha acesso a músicos e compositores internacionais, estava sempre antenada, informada e trazia as novidades para cá, partituras, discos, livros, etc. Trazia músicos de fora para se apresentar no teatro da Unaerp, para lecionar. Esta diversidade de conhecimento foi importante na formação dos nossos alunos. O curso de música da Unaerp deixou saudade, foi referência no ensino da música. Os ex-alunos testemunham essa eficiência. Sempre ouço: “você foi importante para mim, eu não esqueço o que aprendi”.

Sônia: Havia dificuldades?
Gilda:
 Claro que sim. Tínhamos problemas de espaço, de montagem, de material, de instrumental. Realizamos no Departamento de Música um projeto pioneiro, com aproximadamente 200 crianças, curso de musicalização integrado com teatro e expressão corporal, com objetivo de promover a vivência das crianças de forma  global e natural, espontânea e criativa, de desenvolver a  sensibilidade para formar homens, nem sempre músicos, e também futuros apreciadores das artes. Trabalhamos sempre pensando na formação do homem sensível, no processo educacional artístico moderno e global. Formamos artistas, professores, instrumentistas, concertistas, plateia e, principalmente, seres humanos.

Sonia: Como foi este encontro com a Meire?
Gilda:
 Ela foi estudar comigo aos 13 anos. Foi aluna brilhante, sempre se destacou. Formou, fez curso de virtuosidade, fomos colegas na Unaerp e, por fim, tocamos juntas durante 28 anos. É um encontro que supera a marca da amizade.

Sonia: Como surgiu o dueto?
Gilda:
 Eu trabalhava como chefe do Departamento de Música na Unaerp. O  RibeirãoShopping pediu para organizar um show em comemoração ao Dia da Mulher. Montei um quarteto de acordeons com, além de mim, Ed Lemos, Meire Genaro — ex-alunas e professoras do departamento — e o acordeonista Antonio Carlos Assalin, Toninho. A apresentação foi um sucesso. Fizemos várias reprises em outros locais. A partir daí, pela dificuldade de horário para ensaiar, a Meire e eu passamos a fazer encontros regulares e a formar um repertório para duo. No final do mesmo ano, já estávamos tocando no teatro da Unaerp.

Sonia: Os repertórios eram variados?
Gilda:
 Não tínhamos experiência com Música Popular Brasileira, por isso, nosso repertório era composto por arranjos folclóricos e músicas eruditas. Certa vez, fomos convidadas a tocar para jovens numa escola de Ribeirão Preto. Ao fazer o programa, percebemos que nosso repertório era quase integralmente estrangeiro. As músicas brasileiras, além de poucas, eram eruditas. Então, vi que precisaríamos tocar MPB, falar nossa “língua”, tocar nossa música. Pesquisei muito, voltei a estudar harmonia e arranjos. Até então, fazia transcrições de outros instrumentos para dois acordeons, mas passei a fazer arranjos de música popular. As linguagens popular e erudita são bem diferentes, sendo que o popular permite maior liberdade ao arranjador e ao instrumentista. Na música erudita, é necessário total obediência às indicações do autor. Eu diria que, na popular, o arranjador é um coparticipante da obra e, na erudita, ele é um restaurador.

Sonia: Foi assim que essa parceria se solidificou como um duo?
Gilda: 
Sim, foi nessa época, entre 1995 e 1996, que surgiu o primeiro CD, com arranjos meus e somente duas transcrições, Prelúdio da Bachiana n° 4 e Trenzinho do Caipira de Villa Lobos. Depois veio o segundo, já com um repertório que mostrava mais a MPB. Os arranjos são inéditos, com isso, procuro dar uma “cara” específica para o duo. A minha formação musical é erudita, então, mesmo tocando música popular, o erudito está sempre presente nos arranjos.

Sonia: Quem são seus músicos preferidos?
Gilda: 
Adoro o trabalho de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Luiz Gonzaga, dos mestres do chorinho, músicas verdadeiramente instrumentais brasileiras. Também admiro as canções de Tom Jobim, Chico Buarque, entre outros. Gosto, ainda, da Bossa Nova. A música de Astor Piazzolla, um dos grandes compositores da contemporaneidade, provoca um fascínio. Villa Lobos, Radamés Gnatalli, Guerra Peixe, compositores da maior importância, foram inspiradores. Destaco os acordeonistas Sivuca, Chiquinho do Acordeon, Dominguinhos, Luiz Gonzaga, instrumentistas, arranjadores e compositores que captaram a alma brasileira cantando e tocando este instrumento: acordeom, sanfona e gaita. Não importa o nome, mas sim, o som.

Sonia: Como é o dia a dia da artista Gilda?
Gilda:
 De trabalho e muito estudo. Gosto também de passear ao ar livre. Por isso, aqui tenho o que preciso: espaço acústico só para mim. Não atrapalho ninguém. Posso tocar a qualquer hora, meu estúdio é no jardim. Vivo entre as flores e os pássaros. Consegui tudo o que tenho porque sempre tive o apoio e a segurança da família. Primeiro, meus pais, e depois o Maurício, meu marido. Ele sempre foi uma figura importante na minha vida. Enquanto trabalhava fora, dando aulas e tocando, ele cuidava das crianças. Optamos por permanecer na fazenda e foi uma época em que eu me ausentava muito e ele estava sempre presente. Nós preferimos não privar os filhos de ter uma vida com liberdade e criatividade. Qualidade de vida foi nossa opção para nossos filhos.

Sonia: A música ajudou a superar os momentos difíceis?
Gilda:
 Sempre, e muito! Acho que, nas situações difíceis, todas as pessoas têm uma âncora em que se apegam. Para mim, este suporte veio da música, que sempre foi muito forte em minha vida. Não só me ajudou, mas continua ajudando a superar as dificuldades da vida. Sempre temos dias bons, outros ruins, mas  a música ajuda, transforma e alegra a vida.

Sonia: Fale sobre o CD “As meninas”.
Gilda:
 As meninas é uma música que eu fiz em um encontro de chorinho. Todas as vezes que íamos ao restaurante o garçom dizia: chegaram “as meninas do acordeom”. Ficou sendo este o título do nosso recente CD e DVD. Eu sempre digo que tenho outra menina, que é o meu instrumento. Então, somos um trio. O acordeom me ajuda a criar. Com o tempo, passa a ser um objeto que quando entra em ação tem vida própria. Ele está comigo há 56 anos — é aquele que ganhei do meu pai. Chegou a ser roubado e devolvido, após uma reportagem no jornal relatando o episódio. O receptador ficou acuado e veio me devolver o instrumento. Que emoção!

Sonia: O que o novo CD significa neste momento de vocês?
Gilda:
 Este é um trabalho muito importante e já estava concebido há bastante tempo. Apesar das dificuldades, da burocracia absurda que existe neste país em relação à produção musical oficial, conseguimos concluí-lo. A gestão cultural foi da Origem Produções, cuja diretora, Marici Vila, não mediu esforços para que desse tudo certo. Foi através do PROAC que conseguimos o patrocínio da Virálcool. Este é nosso terceiro CD e o primeiro DVD “As Meninas”, que marca os 25 anos do duo Gilda Montans e Meire Genaro. O CD foi lançado em um show especial, realizado no dia 23 de setembro, no Theatro Pedro II, quando foi gravado o DVD. Foram 14 músicas, sendo cinco de minha autoria, outras de Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga e Luiz Gonzaga, além dos autores da região de Ribeirão Preto, como os irmãos Altamir e Edinho Penha, Manoel Silva (já falecidos), André Mehmari e Walther Neto. O CD tem, ainda, a participação de Carlito Rodrigues (contrabaixo acústico) e Robson Ribeiro (violão), que acompanham o duo. No DVD, além destes músicos, temos a participação de um quinteto de cordas.

Sonia: Quais são os próximos projetos?
Gilda:
 Consolidar e divulgar este trabalho, se possível, no Brasil todo. Pretendemos divulgar também no exterior. Com este CD e DVD, chegamos à formação musical ideal para nós: dois acordeons, um violão e um contrabaixo acústico, com os músicos certos, Robson e Carlito. Em música, é preciso muita sintonia e afinidade.

ADMIRAÇÃO

“Uma mulher, uma artista, uma professora, uma guerreira. Harmonia, sensibilidade, gentileza e arte marcam a vida e a trajetória profissional de Gilda Montans. É acordeonista, instrumento que exige atitude e que em suas mãos vai de um agudo infantil primitivo ao mais potente e elaborado barítono. Um acordeom sozinho se impõe, emite mil sons, nuances e semitons. Em duo, ao lado da amiga Meire Genaro, vira uma orquestra em que cabem de Gonzagão a Villa Lobos. No coração de Gilda cabe também a arte de lecionar. Durante anos, ensinou desde os primeiros acordes, o passeio inicial em partituras até sofisticados arranjos. O meu encontro com ela vem da dedicação à educação, um contato quase diário por um tempo. Gilda faz parte da minha história pessoal e profissional. Foi no quiosque da Tulha Santa Estela que realizamos o “Chá Bar” do meu casamento, há 30 anos, e na cerimônia religiosa, Gilda e seu marido, Maurício, fizeram uma preleção especial. Por esses e outros tantos motivos, Gilda é um espelho para mim: uma mulher, professora, artista e amiga para admirar, respeitar e agradecer.”
Sonia Maria Camargo dos Santos é coordenadora da Divisão de Marketing e Comunicação e da Diretoria de Ensino, Pesquisa e Extensão da graduação da Unaerp

 

* Publicado em 13/11/2014

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