O espetáculo da ópera

Reunindo artistas e profissionais consagrados, La Bohème atraiu várias gerações ao Theatro, transformando-se em um evento de primeira grandeza

A plateia em si já era um espetáculo. Em 20 minutos, o Theatro Pedro II estava quase completamente lotado. Quando se abriram as cortinas, o branco do cenário de Chris Aizner refletiu pelo teatro sua simplicidade requintada. Conduzida por Cláudio Cruz, a melodia se fez firme, em total harmonia com as vozes que, ao som da Orquestra Sinfônica de Ribeirão Preto, povoavam o palco.

Entrava em cena a La Bohème, uma das obras-primas do mestre italiano Giacomo Puccini, que aos poucos conduzia o público a um bairro proletário de Paris e o introduzia nas vidas boêmias do poeta Rodolfo, do pintor Marcello, do filósofo Colline, do músico Schaunard, com suas aventuras e desventuras, em meio a uma cidade intensa e vivaz, mas que pode ser dura com os mais humildes, sobretudo no rigor do inverno.

Não demorou muito e o público estava completamente capturado pelo drama que assombrava o amor de Mimi e Rodolfo e pela comédia que emergia do tumultuado e ardente romance de Musetta e Marcello. A plateia, então, transformou-se em um palco onde várias gerações passaram a vivenciar e a comungar da mesma história, simplesmente deixando-se envolver.

Conforme a trama se desenrolava, o envolvimento crescia. A emoção chegou a ficar suspensa como o próprio cenário, ao fim do terceiro ato, quando a insegurança e a fragilidade de Rodolfo e a instabilidade e a sede de liberdade de Musetta impossibilitam os romances, pré-anunciando o drama que estava por vir, que desembocava no quarto e último ato, em que, frente à morte iminente de Mimi devido à tuberculose, a miséria mostrava suas faces mais nobres — a compaixão, a generosidade, a lealdade e o compromisso que emanam do amor —, arrebatando por completo a emoção da plateia.

A imortalidade da arte é sempre mencionada. A produção ribeirãopretana da La Bohème pôs essa máxima à prova, reafirmando que uma obra-prima pode ser produzida no século XIX (1896), adaptada para o século XX (início da década de 40) e assistida no século XXI, imune à ação do tempo, despertando reflexão e emoção em uma plateia representada por várias gerações.

Apaixonada pela música, a assistente social aposentada Laís Faccio assistiu a eventos do gênero em São Paulo, na Rússia e em Paris. Laís destaca que gostou muito dessa montagem, sobretudo dos cantores líricos. “A Rosana estava muito bem, também gostei muito do barítono (Leonardo Neiva), que tem uma voz linda, e do baixo (Savio Sperandio). A Orquestra estava excelente e o cenário, muito bem idealizado — o nível da ópera foi ótimo”, afirma Laís.

O advogado Sérgio Roxo da Fonseca conta que já assistiu a La Traviata, em Florença, e a performance de artistas, técnicos e produtores não deixaram a desejar em relação ao espetáculo internacional. “Assisti a La Bohème ao lado de parentes vindos do Rio de Janeiro. Eles saíram eletrizados do teatro e vão voltar testemunhando o altíssimo grau de cultura de Ribeirão Preto”, enfatiza.

A artista Gilda Montans havia assistido a uma montagem da La Bohème realizada na década de 50 em Ribeirão Preto por uma companhia italiana. “A montagem atual teve nível internacional, com cantores maravilhosos e Orquestra em perfeito equilíbrio com os solistas. Fiquei muito feliz de ver a participação dos artistas da cidade e encantada de ver o profissionalismo dos participantes. Senti uma emoção fantástica”, avalia.

Mariana Jábali, empresária que já desempenhou um papel importante frente à Fundação Pedro II, criando um espaço fecundo para a realização de óperas, com a produção de Rigolleto, em dezembro de 2007, ficou muito satisfeita ao verificar que suas ações abriram caminho para novas produções do gênero. “Temos pessoas competentes para produzir espetáculos de ópera, temos credibilidade junto aos patrocinadores e precisamos acreditar nessa capacidade de produção e de agregar talentos”, opina Mariana, apoiada pelo empresário Antônio Vicente Seixas. “A magistral apresentação mostrou a capacidade ribeirãopretana de produzir espetáculos de altíssima qualidade, projetando o Theatro Pedro II como palco ideal para uma ópera de tal grandeza. Parabenizo todos que tornaram possível esse momento mágico que compartilhei com minha esposa e com todos os que tiveram a oportunidade de vivê-lo numa noite de gala na vida cultural da nossa cidade”, afirma Seixas.

O pianista Gustavo Molinari destaca que o espetáculo não ficou devendo nada aos eventos semelhantes que assistiu em São Paulo. “Gostei da produção, do cenário, do figurino, da condução segura do maestro Cláudio Cruz, do coro, dos solistas, especialmente de Leonardo Leiva. Ribeirão Preto tem público para este tipo de espetáculo. Temos que nos apoiar nisso e fazer montagens com produção local”, destaca.

O juiz Francisco Câmara Marques Pereira ficou muito orgulhoso em saber que o município faz frente a um projeto tão grandioso. “Percebi que todos os que participaram estavam comprometidos com o espetáculo. Foi tão bem realizado que confesso que saí emocionado”, afirma. Tendo em vista o sucesso de público das três noites de apresentação, o juiz acredita que Ribeirão Preto deve investir na cultura. “Isso mostra que o povo tem sede de boas produções. Com a terceira maior sala de ópera do país e a segunda orquestra sinfônica mais antiga em atividade, precisamos valorizar esse patrimônio”, defende.

De todas as cenas emocionantes da ópera apresentada nos dias 16, 18 e 20 de março, talvez a mais significativa tenha sido se deparar com adolescentes e crianças na plateia; descobrir que muitas despertaram para uma nova visão do universo cultural, como é o caso da estudante Beatriz Santana (15 anos), que assistiu a sua primeira ópera. “Geralmente, a gente subjuga a ópera. Eu esperava que fosse chata e extremamente exagerada porque é diferente da música que costum ouvir no rádio. Quando terminou, eu estava super feliz, foi muito legal, fiquei surpresa. A La Bohème tem até um toque de comédia. As pessoas deviam assistir a uma ópera pelo menos uma vez para saber como é”, sugere.

Qual será a reação de uma criança, pela primeira vez diante da complexidade de uma ópera? Como parte de uma família que adora música e incentiva essa paixão nos filhos, Joaquim Moraes Sarmento Neto, de 9 anos, não se queixou quando os pais decidiram levá-lo à ópera e, depois de assistir ao espetáculo, surpreendeu-se. “Achei muito legal, os músicos e os cantores conseguem acompanhar o maestro direitinho. Além disso, todos os que cantam são brasileiros e tiveram que estudar italiano para se apresentar. Fiquei emocionado. Outras crianças deveriam ir porque vale a pena”, ressalta.

Depois de acompanhar a tia em um dos ensaios, Júlia Bunholi Lavagnini, de 10 anos, tornou-se frequentadora assídua da preparação da ópera e levou a mãe, Jaqueline, para o programa inédito. “Achei emocionante”, conta, orgulhosa e feliz com o envolvimento da filha. Para Júlia, este deve ser o primeiro de muitos espetáculos. “Fiquei muito feliz e emocionada. Quando houver outra ópera vou indicar aos meus amigos porque é muito bonito e emocionante”, conclui a garota.

A ópera também cumpriu um importante papel de inserção social: a jornalista Flávia Machado realizou, no dia 20, o trabalho de audiodescrição, apresentando o espetáculo a 40 pessoas com deficiência visual. Veja matéria na íntegra no www.revide.com.br

Acompanhe AQUI o vídeo exclusivo dessa matéria.

Texto: Carla Mimessi
Fotos: Ibraim Leão e Carolina Alves

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