O mito, a psicanálise e a bola

O psicanalista David Azoubel Neto entra em campo para desvendar o que passa na cabeça do jogador durante uma partida de futebol

De algum tempo para cá, o futebol, esporte definido por muitos como uma religião no país, tem chamado a atenção de teóricos das ciências humanas. Os dois exemplos mais recentes são as obras “A Dança dos Deuses” (2007), de Hilário Franco Júnior, e “Veneno Remédio – O Futebol e o Brasil”, de José Miguel Wisnik (2008), editados pela Companhia das Letras. No primeiro, o autor traça um paralelo entre a evolução do esporte e os perfis históricos da Europa e do Brasil no último século; no segundo, Wisnik repensa o esporte com olhar histórico e filosófico. O livro recém-lançado por David Azoubel Neto — “O Futebol como Linguagem – da Mitologia à Psicanálise” — constitui-se um “fecho de ouro para a trilogia sobre futebol”, na definição de Juca Kfouri, responsável pelo prefácio da obra.

Com o mesmo olhar antropofágico que a Semana da Arte Moderna dirigiu às expressões artísticas da época, Azoubel analisa o futebol, tentando absorver e digerir em sua análise o que passa na cabeça de um jogador nos momentos decisivos de uma partida. “O livro é um ensaio, o escrevi tentando me colocar dentro da cabeça do jogador, ou seja, é uma leitura de dentro para fora”, argumenta.

Por convicção, um apaixonado, que aprendeu com as “peladas” a substituir o egocentrismo, a rebeldia às regras, o medo do fracasso, sentimentos comuns na infância, pelo senso de grupo, de solidariedade, de humanismo, pela disciplina e pelo espírito de luta, que fez com que percebesse que um jogo sempre pode ser virado, mesmo quando a derrota pareça consumada.

Enquanto teórico, Azoubel aventura-se pelo tema buscando compreender a importância desse esporte que lota estádios por todo o mundo e que se originou com nuanças de barbárie, tendo como fonte de inspiração os campos de batalha, na Dinastia Huang-Ti, por volta 2197 a.C., quando os crânios dos inimigos de guerra eram utilizados pelos chineses como bola, em um esporte que pode ser considerado o ancestral do futebol. O jogo era utilizado com o intuito de treinamento militar, tendo, entre outras finalidades, atiçar nos soldados a ira contra o inimigo.

Foi quando chegou à Inglaterra, vindo da Itália do século XVII, que o futebol adquiriu um perfil mais civilizado. Hoje, o esporte é totalmente revestido de seu potencial simbólico e desponta em várias competições como um instrumento de conscientização sem, entretanto, deixar de ser palco de rivalidade e de violência entre as torcidas, o que, analiticamente, pode ser explicado pela rivalidade, inveja e disputa que desde tempos imemoriais permeiam a relação entre irmãos. O futebol abandonou o concreto das concepções violentas e começou a fazer abstrações e simbolizações. “No período de 900 a 200 a.C, os Maias praticavam um jogo semelhante, na Península de Yucatan, em que o capitão do time que perdia a partida era decapitado. A decapitação permanece, mas no âmbito simbólico: o sujeito derrotado realmente perde a cabeça, tanto que podemos dizer que ‘cortaram a cabeça do Dunga’, depois da Copa da África do Sul. O simbolismo continua, e enquanto o homem puder utilizá-lo, preserva sua capacidade de expressão e de realização por meio de canais que resultam em uma atividade produtiva”, explica Azoubel.

Por ser um esporte de multidões, que expressa todos os fenômenos da psicologia de massa, o psicanalista vislumbra no futebol uma grande ferramenta de transformação social. “Serão fundadas várias escolas de futebol. Por onde passa, esse esporte deixa rastros, ele tem um poder tão grande que é capaz de enfrentar guerras. Pelé interrompeu duas vezes a Guerra da Nigéria para se apresentar, primeiro de um lado e depois de outro. Um esporte capaz de parar guerras tem uma força muito grande, que precisa ser aplicada em movimentos sociais”, ressalta Azoubel.

Tanto o autor acredita nessa perspectiva que destaca que o futebol é um elemento mais apaziguador do que a política e a religião, apesar de envolver os mesmos ingredientes contidos em ambas — a paixão e a fé. Segundo ele, o esporte se mostra mais eficaz porque a fé é usada no futebol de forma mais intensa.

Era isso que Nelson Rodrigues queria dizer quando afirmou que o primeiro esporte praticado no Brasil é o voleibol, o futebol é religião. “Não é um esporte porque ele compete em nível de gênero e número com uma grande manifestação religiosa”, Azoubel explica. A religião não tem a mesma força porque, apesar do paralelismo entre as vertentes, no esporte, há um desprendimento natural. “Os torcedores incorporados à Fiel tem o mesmo pensamento, a mesma fé no time que, para ele, é como se fosse um
profeta. Os religiosos também podem mergulhar de corpo e alma, mas nem todos fazem isso”, acrescenta.

Quanto às regressões civilizatórias, comuns em grandes clássicos sob forma de rivalidade, o psicanalista afirma que tais movimentos regressivos ocorrem porque o futebol precisa permanecer fiel à sua própria história, que é agressiva inicialmente, mas que preserva uma parte que permite o processo civilizatório. “A civilização se efetua por avanços e recuos, mas um movimento desses é muito pequeno frente a massacres como o holocausto ou os aniquilamentos que testemunhamos no século XX. O futebol matou muito menos do que guerrilhas, torturas e assassinatos em massa”, assegura o autor.

Com o pensamento essencialmente mitológico, Azoubel compara as torcidas ao coro do teatro grego das acrópoles, que pré-dizia o que ia acontecer nas tragédias. “O coro participa aconselhando, estimulando, indiciando, sempre com uma grande paixão. A torcida é parte do ego do jogador colocado fora dele: o jogador olha na multidão e identifica como se fosse uma parte dele. Não é à toa que se diz que torcida ganha jogo”, avalia.

O problema é que no meio desse processo civilizatório está o homem, com todas as suas limitações. A indústria de heróis, associada à paixão e à fé que transformam os jogadores em verdadeiros mitos, não supre suas deficiências em lidar com a glória e o deslumbre que acompanham essa ilusória e frágil transformação. Na mitologia, o status de mito abriga duas condições fundamentais: a dor e a imortalidade. A história do titã Prometeu ilustra bem essa questão: o semideus que muniu o homem das ferramentas necessárias ao desenvolvimento da humanidade, roubou o fogo, um elemento exclusivo dos deuses, e entregou-o ao homem. Como castigo de Zeus, por proporcionar aos humanos a condição que permitiria a eles dominar os demais habitantes do mundo, o titã foi acorrentado no Monte Cáucaso, tendo seu fígado dilacerado por uma águia, diariamente, órgão que se regenerava durante a noite, devido à sua condição de semideus.

Essa condição, conforme Azoubel, faz toda diferença entre o homem e o Deus e torna tão difícil para o ser humano lidar com a fama. No mundo moderno, ídolos são fabricados em todos os segmentos e não é diferente no futebol. Não são poucas as histórias de meninos de procedência humilde, como o goleiro Bruno, do Flamengo, que por meio do esforço e da dedicação se destacam no esporte. De desportistas, repentinamente transformam-se em mitos para as torcidas.

O psicanalista destaca que, tanto na mitologia quanto na psicanálise, o galgar súbito de posições para as quais não estão efetivamente preparados é chamado de Mito do Herói, personagens que geralmente conseguiram reafirmar essa condição após se submeterem aos infortúnios do inferno. “Essa garotada não está, absolutamente, preparada para essa relação do herói com o mito. A grande maioria perde a fortuna que ganha porque fica embriagada com ela. O sujeito perde a noção do limite e começa a pensar que é Deus, que é imortal. Esse é o predomínio do instinto de morte”, afirma o autor.

Tanto no caso do goleiro Bruno quanto de outros expoentes que se envolvem com marginais, como o cantor Belo, a grande lição é a humildade, segundo o psicanalista. A diferença entre o êxito e a derrota está em saber administrar o limite entre a humildade e a arrogância. “Ao contrário dos deuses e dos semideuses, o homem é mortal e finito”, conclui.


Texto: Carla Mimessi
Fotos: Júlio Sian
Agradecimentos: Boleiros Futebol Society

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