O que a teledramaturgia sul-coreana tem
"Pousando no Amor", campeão de audiência na Netflix

O que a teledramaturgia sul-coreana tem

Fomos saber o que está por trás da febre dos doramas e k-dramas, que têm contaminado plataformas de streaming e fãs Brasil e mundo afora

Se você ainda está entre os espectadores que subestimam as séries de TV sul-coreanas como fenômeno de entretenimento mundial, experimente iniciar uma busca pelo termo “dorama” na rede social mais popular da atualidade. Se aparecerem mais páginas sobre o tema do que sua paciência lhe permitir contar, opte por checar o top10 de audiência da plataforma de streaming mais acessada no Brasil. Não se surpreenda se houver entre as produções mais assistidas ao menos três ou quatro “doramas”, ou mais acertadamente falando, “k-dramas”.
 

Originalmente, dorama foi o apelido dado às produções da televisão japonesa, em virtude da pronúncia que a palavra “drama” ganha no idioma daquele país [tem a mesma grafia em diferentes idiomas]. Ao se popularizar pelo mundo, porém, o termo passou a denominar todo tipo de produção asiática, razão pela qual ouve-se falar em “doramas chineses” ou “doramas coreanos”, mas, no caso do fenômeno mundial da vez, o mais correto é k-drama (korean drama). Nesta reportagem, optamos por usar um ou outro termo conforme a preferência de cada entrevistado.
 

Nomenclaturas à parte, os k-dramas terem se tornado fenômeno mundial de audiência é resultado de um investimento calculado do governo sul-coreano, que identificou na música e na teledramaturgia do país potencial para fortalecer a identidade nacional e exercer influência em outras regiões do globo. Por isso criou, a partir da década de 1990, leis de incentivo para produção de entretenimento e abriu novos cursos de comunicação nas universidades para formar profissionais aptos a trabalharem na nova indústria. Foi o que deu início à “hallyu”, neologismo criado por jornalistas chineses que se traduz por “onda coreana” – também chamada de invasão coreana –, como ficou conhecida a popularização da cultura sul-coreana, iniciada em países da Ásia, mas que se espalhou depois por Europa, América do Norte, Oceania e, por fim, América Latina.
 

No Brasil, a febre do K-pop – a música pop coreana, que tem nas girl e boy bands suas grandes “minas de ouro” (vide BTS) – chegou primeiro, mas o fenômeno dos doramas não começou por força do mercado. Foi obra de dorameiras (como se autodenominam as fãs do gênero, em sua maioria do sexo feminino) como a universitária Ana Luíza Castelete, de 22 anos. Quando ela descobriu as séries sul-coreanas, aos 15, só era possível assisti-las em sites aleatórios de fãs, que baixavam os episódios de plataformas estrangeiras, traduziam suas legendas para o português e disponibilizavam para sua “bolha”. “Tudo começou com o K-pop”, confirma a estudante. “Muitos ‘idols’ [como são popularmente chamados os cantores de k-pop] são atores também, então as fãs passaram a procurar na internet as produções em que eles atuavam. Aí virou febre! A cultura coreana começou a bombar e só então os streamings passaram a incluir o gênero em suas plataformas”, acrescenta.
 

Depois de furarem as bolhas de fãs, não demorou muito para os k-dramas virarem fenômeno de audiência, a ponto de alçarem o Brasil à posição de quinto país do mundo que mais consumiu séries coreanas em 2022, segundo dados do governo da Coreia do Sul acessados pelo portal Box Brazil Media Group. Em anos anteriores, o filme sul-coreano “Parasita” faturou três Oscar (diretor, filme e roteiro original) e uma palma de Ouro em Cannes, entre outras premiações, e a série “Round 6” virou sucesso mundial de audiência na Netflix, também com direito a prêmios internacionais, como o Globo de Ouro (considerado o Oscar da TV americana) de Melhor Ator para Lee Jung-Dae. Atualmente, a música e a teledramaturgia sul-coreanas são temas de feiras, clubes e cursos mundo afora.

 

Delicadeza
 

A maioria dos k-dramas duram apenas uma temporada, comumente de 16 episódios de 1 hora cada um, mas existem algumas de 12 e até 24 episódios. As que fazem mais sucesso até podem ganhar novas temporadas, mas é raro. Especialistas em entretenimento costumam atribuir a receita de sucesso do gênero a ingredientes característicos de um bom melodrama, como romance, belas locações, figurinos impecáveis e o fato de abordarem temas universais, portanto facilmente assimilados pelo público, como bullying, questões de saúde mental, machismo, entre outros preconceitos estruturais. Mas ninguém melhor que os fãs para explicar o fascínio que os k-dramas exercem.
 

Fã daquelas de colecionar souvenirs, comprar roupas e acessórios vistos nos doramas, estudar o idioma coreano e até assimilar alguns hábitos asiáticos (não entra mais de sapato em casa e se acostumou a pegar e receber objetos com as duas mãos, em sinal de respeito), a dorameira Ana Castelete considera as histórias dos k-dramas muito bem estruturadas. Diz gostar principalmente da estética e do ritmo das produções, mais lento em relação à média da indústria ocidental. “Uma coisa que eu gosto nos doramas de romance é que são delicados. Acontece tudo devagarzinho. Eles exploram muito os elementos de cena. E a estética é maravilhosa! Mesmo nos doramas de ação as cenas são claras, de uma iluminação bonita e com todos os elementos muito bem posicionados. Enfim, é tudo muito agradável de ver”, elogia.
 

Os doramas de época, que retratam a Coreia antiga, com seus príncipes e princesas, são uma atração à parte para Ana e os preferidos da jornalista Marcela Rossetto, 52, que descobriu o gênero durante o isolamento social forçado pela pandemia. “Foi acidental. Gosto de séries históricas, de saber sobre outras culturas e durante a pandemia meu marido e eu entramos num período de maratonar séries e documentários de diferentes países. Foi nesse movimento que apareceu uma série coreana, que de início imaginei ser japonesa. Achei muito esquisito o som da língua no começo, mas depois de um tempo passou a ser divertido identificar os sons da fala deles”, conta. E Marcela gostou tanto que passou a procurar por mais produções sul-coreanas. Resultado: também acabou conquistada pela delicadeza dos romances nos k-dramas. Para ela, assisti-los se tornou uma bem-vinda “desintoxicação desse mundo difícil em que a gente vive”.
 

Japonesa morando há três anos no Brasil, a videomaker mobile Juliana Akemy Sasaki, 27, tem sua própria teoria sobre a razão dos doramas apaixonarem tantas fãs brasileiras e tem tudo a ver com a delicadeza citada por Ana e Marcela. “Na dramaturgia asiática, a gente assiste a gestos de afeto de uma forma mais ingênua, mas com muito significado. São pequenas gentilezas que mudam totalmente o dia de alguém e que a maioria dos ocidentais hoje em dia não praticam. Os asiáticos são mais reprimidos, não são tanto de abraçar, beijar e só fazem isso em locais reservados porque preservam esse tipo de ato com o seguinte raciocínio: ‘vou compartilhar minha intimidade com você, mas é para ser algo só nosso e de muito valor, porque é raro’. Acho que isso deve encantar as pessoas”, opina. Pessoalmente, para ela, assistir a doramas é uma forma de matar as saudades do país natal e, no caso dos coreanos, de um jeito de ser asiático.

 

Soft Power
 

Diretora, roteirista e atriz, Jacqueline Pilar Durans descobriu as produções sul-coreanas numa das vezes em que zapeava por plataformas de streaming à procura de produções de países estrangeiros. “Adoro ouvir outros idiomas e prefiro ver tudo legendado. Foi assim que tive a honra de ver meu primeiro k-drama, ‘Romance is a bonus book’, que me ganhou na hora por conta do protagonismo feminino”, lembra. Seguiram-se muitos outros que cristalizaram uma percepção muito particular da teledramaturgia sul-coreana por Jacky, como ela é mais conhecida.
 

“Sem medo de errar, digo que é uma indústria do audiovisual revolucionária nas questões femininas. Pelo menos nos k-dramas que assisti até hoje predominam histórias de mulheres que estão correndo atrás do seu espaço. São produções que falam de mães que oprimem, de pais violentos, de assédio, das dificuldades de uma mulher batalhar pelos seus cargos. É uma indústria que está dando voz a nós, mulheres”, diz. A explicação para isso ela diz ter encontrado recentemente, pesquisando sobre o gênero: na contramão dos demais mercados de entretenimento mundo afora, o da Coreia do Sul é o único com 90% dos roteiros de dramas assinados por... mulheres! Outro fenômeno coreano difícil de ignorar, principalmente se considerarmos que na outra indústria do gênero mais forte no mundo, a dos Estados Unidos, a porcentagem de roteiristas femininas não chega a 30%. Já no Brasil, segundo dados da Ancine (Agência Nacional do Cinema) apresentados no último FIM (Festival Internacional da Mulher de Cinema), em novembro passado, esse percentual gira em torno dos 19%.
 

Para Jacky, dar mais voz às mulheres é a primeira lição que a teledramaturgia brasileira tem a aprender com a coreana. “Ainda que a sociedade coreana seja conservadora e machista, o poder do audiovisual está ajudando a mudar isso porque os k-dramas estão nas casas das pessoas”, afirma ela, que também enxerga outras lições. “Os roteiros trabalham muito os mundos interior e exterior dos personagens e sempre com um pouco de melodrama. As questões sociais que as roteiristas abordam também são muito interessantes. E não tem maniqueísmos, ou seja, mesmo os vilões têm motivos para serem como são e nem os mocinhos são só santos. E tecnicamente as produções são de excelente qualidade!”, conclui.

 

 

Colírios
 

Todas as entrevistadas citam a beleza e o charme dos atores sul-coreanos como um dos grandes atrativos dos k-dramas.
 

Segundo Jacqueline, vistos pelas lentes dos doramas os homens sul-coreanos exercem uma “masculinidade suave e não arrogante”, que admite preocupações estéticas e lágrimas explícitas. “A masculinidade coreana é diferente da que a gente está acostumada a ver no Brasil até no tocante à aparência. Eles são mais delicados de rosto e feições e é difícil terem barba. Eu gosto!”, acrescenta Ana.
 

Como exemplos dessa preferência podemos citar as estrelas mais bem pagas da indústria sul-coreana atualmente – Kim Soo-Hyun, Song Joong-ki, Lee Jung-Dae (vencedor do Globo de Ouro por “Round 6”), Hyun Bin (protagonista de “Pousando no Amor, fenômeno de audiência na Netflix brasileira) e Lee Min-Ho – entre outros queridinhos das plataformas de streaming brasileiras, como Park Seo-Joon, que acaba de estrear em Hollywood nada menos que na franquia da Marvel (é o príncipe Yan em "As Marvels").

 

 

A cultura coreana vista através dos k-dramas
 

Os k-dramas deixam entrever algumas características da cultura coreana que saltam aos olhos das dorameiras, para o bem e para o mal. À jornalista Marcela chocou o machismo e o conservadorismo. “No começo foi bem chocante, mas a gente vai entendendo que é cultural”, afirma. Também para o mal, chamam a atenção da universitária Ana Castelete a supervalorização da aparência, que faz da Coreia um dos países com maior taxa de cirurgias plásticas do mundo, e a exploração trabalhista. “A Coreia do Sul é um país muito competitivo, por isso as pessoas trabalham demais, quase sem folgas. As escolas também exigem muito dos estudantes. Não por acaso o filósofo autor de ‘A Sociedade do Cansaço’ é sul-coreano”, comenta.
 

Para o bem, a estudante destaca a educação dos coreanos, que prezam o respeito ao outro de uma forma geral, mas principalmente aos mais velhos, o que transparece na formalidade dos hábitos e diálogos. Por exemplo, tomar uma bebida alcoólica em frente a uma pessoa mais velha ou superior hierarquicamente requer virar o rosto e cobrir a boca com as mãos durante a golada. E a gramática coreana estabelece ao menos três formas de expressar a mesma coisa, dependendo da hierarquia vigente entre os interlocutores. Por exemplo, um simples “obrigado” pode ser dito de três modos diferentes: o formal, usado com desconhecidos e superiores em idade ou cargo; o medianamente formal, para usar com alguém que se conhece, mas com quem não se tem intimidade; e o informal, para as relações mais próximas. Mesmo este último caso só pode ser adotado mediante autorização prévia do outro.
 

Os cumprimentos são todos feitos de longe, sem contato físico, inclinando a cabeça e, dependendo do grau de formalidade, até a cintura. “Acho que todo o continente asiático segue essa mesma linha. Assisto muito dorama coreano e percebo que a cultura é parecida com a do Japão. Entre os orientais, à medida que vai sendo construída a proximidade, vão caindo os pronomes formais”, descreve Juliana Akemy. “As pessoas vão começando a agir de maneira mais informal gradativamente, até chegar a um ponto em que se pode tocar na pessoa, ainda assim de uma forma muito sutil. Um homem tocar uma mulher em público é um acontecimento e indica uma grande intimidade”, conclui.

Compartilhar: