O sabor dos desafios
Em 2021, Liu fechou a empresa de informática e foi viver de ensinar a cozinhar e a comer

O sabor dos desafios

A história de como o chef Liu passou de médico a empresário de informática e professor de gastronomia; agora ele se aventura como produtor de vinhos e queijos

Texto: Sílvia Pereira

Ele é conhecido atualmente, em Ribeirão Preto, como chef Liu, mas não foi sempre assim. Aos 53 anos, Liu Yao Wen já operou ao menos quatro grandes reviravoltas profissionais em sua vida. Foi médico, empresário, professor de gastronomia e, agora, aventura-se como fabricante de vinhos e queijos artesanais.

A história de como tudo isso ocorreu é longa. Começa com Liu nascendo em Taiwan, em 5 de dezembro de 1967, e sendo trazido para o Brasil com apenas três anos, pelos pais, Liu Hsiao Tseng e Liu Lin Fumei [nos países orientais, o sobrenome vem antes dos nomes próprios]. 

Tseng e Fumei decidiram atravessar um oceano com os filhos Wen e Cho (dois anos mais velho que Liu), na onda do temor generalizado de que os comunistas tomassem a ilha — uma ameaça constante desde que a revolução chinesa instalou o socialismo na China continental, em 1949, relegando os nacionalistas derrotados a Taiwan.

Escolheram o Brasil atraídos pela propaganda do “milagre brasileiro” (crescimento econômico elevado registrado entre 1969 e 1973), sem nem atentar para o fato de que fugiam de uma ditadura para cair em outra. Aportaram em São Paulo e não gostaram. Seis meses depois, aconselhados por conhecidos, embarcaram em um Fusquinha emprestado rumo a Brasília, para conhecer outras cidades. Pararam em Ribeirão Preto para consertar um pneu estourado, na borracharia do famoso Negrão Azevedo, e não prosseguiram viagem.

É que no restaurante chinês, no qual pararam para comer, à rua São Sebastião, Tseng puxou conversa com o dono, que lhe falou de uma loja à venda bem no Centro da cidade. Ele foi direto conversar com o proprietário e fechou na noite daquele mesmo dia a compra da que se tornaria a Casa Fumi, loja de presentes da família Liu. Foi a primeira vez que um restaurante definiu o destino de Liu Yao Wen. Não seria a última.

Médico
Demorou pouco mais de duas décadas para outro restaurante influenciar o destino de Liu. Entrou direto do terceiro colegial para a Faculdade de Medicina da USP Ribeirão Preto, em 1985, sem precisar de cursinho. Ser médico, porém, não foi um sonho de criança. Liu escolheu a carreira pelo desafio — o que permaneceria como um grande motivador por toda a sua vida. “Sempre tive tendência a escolher o mais difícil”, declara.

Foi na época da faculdade que a boa gastronomia começou a chamar sua atenção. No quinto ano de Medicina, comemorou seu aniversário no restaurante L’Escargot, do chef João Roberto Pereira Silva. “Raspei minha bolsa de doutorando para ir, na primeira vez, e não parei mais pelos 20 anos seguintes. Uma vez por ano valia a pena pagar muito para comer tão bem”, conta Liu, que seguiu o chef João Roberto por todos os restaurantes que ele teve depois do L’Escargot — La Pyramide e Mirante Brasserie.

Na faculdade, ainda conheceu aquela que viria a ser sua companheira da vida toda: Lee, também nascida em Taiwan, numa cidade vizinha à sua, e com a grafia semelhante do nome, obrigando-os a integrar a mesma turma de estudos durante todo o curso. Ao menos naquela época, suas semelhanças terminavam aí. “Acreditam em amor à primeira vista? No nosso caso foi antipatia à primeira vista. Quem nos conhece há tempo suficiente sabe que somos diametralmente opostos: eu sou impetuoso, autoconfiante em demasia (metido, dizem alguns), arrojado e elétrico. Falo e dou risadas em alto volume, gesticulando como os italianos. A Lee é a calma em pessoa, centrada, simples e sem frescura para nada. Fala mansa e lenta para tudo. Demora uma hora para comer uma refeição que eu devoro em minutos”, descreveu Lee em um texto comemorativo dos 25 anos de casamento, completos no último dezembro.

Quem os conhece há muito tempo também sabe que, graças ao apoio e à companhia de Lee, todas as reviravoltas na vida de Liu foram possíveis. “Então, minha gratidão eterna por ela ser minha companheira”, derrete-se.

Informática
Durante a graduação, o universitário Liu continuou se desafiando. Fez monitoria de Cirurgia Vascular, Medicina Social e Pediatria — as duas últimas só porque teria a oportunidade de assumir a parte de informática dos setores, que estavam acéfalas. Foi como acabou criando o primeiro programa de seleção de receptores de órgãos transplantados do Brasil no HC de Ribeirão Preto, e também outro que economizou, para cirurgiões cardíacos, três a quatro horas de cálculos manuais pré-operatórios.

Formado em 1990, o médico Liu foi fazer residência em Cirurgia no Hospital das Clínicas. Foi quando começou a perceber que a Medicina não o fazia feliz. “O ambiente do hospital era muito pesado”, lembra. Por isso, terminada a residência, em 1992, decidiu que não seria médico. “As pessoas acham que minha decisão foi a mais difícil do mundo, mas eu acho que continuar com a Medicina seria o mais difícil para mim. Na verdade, eu sempre fui focado em ser feliz. Eu não estava, então fui naquilo que me deixaria”, justifica.

Em 1993, o que deixou Liu feliz foi abrir sua própria empresa, a Solução Informática. A família acatou a decisão sem grandes dramas. Sua mãe até se preocupou um pouco, mas foi tranquilizada pela autoconfiança do filho. “Nunca fui acomodado. Se quero fazer alguma coisa, vou e faço. Até porque, se não desse certo, eu sempre poderia voltar atrás”, declara. Mas deu, por 20 anos. Até a gastronomia, com a qual passou a flertar com mais intensidade, atraí-lo de vez em 2012. Seria a segunda vez que, não um, mas vários restaurantes mudariam o destino de Liu.

Gastronomia
Durante o tempo em que trabalhou com informática, o empresário Liu viveu algumas experiências que contribuíram para atraí-lo cada vez mais à gastronomia. Uma delas aconteceu durante um passeio à Serra da Canastra, em Minas Gerais, quando um amigo abriu uma garrafa de vinho que havia levado. “Quando provei aquela garrafa de vinho achei inesquecível! Nunca tinha provado um tão bom”, conta.

Logo em seguida, veio o convite do mesmo amigo para ingressar numa confraria de vinho, que por alguns anos presidiu. “O legal de conviver com gente que gosta de vinhos é que você passa a comer melhor, frequentar lugares e conhecer pessoas melhores. Muita gente acha que é esnobe, mas não é, porque se você se aprofundar, há muito conhecimento à disposição”, pontua.

Foi na confraria que teve aulas com a então enóloga da World Wine Marcia Carcano, de quem ficou amigo. Ela se ofereceu para levá-lo a conhecer os melhores restaurantes de São Paulo sempre que ele estivesse de passagem por lá a trabalho. Foi como descobriu a gastronomia de algumas das melhores cozinhas paulistanas da década de 2000, como as do Due Cuochi, Supra e Pomodori, por exemplo. Descobriu, assim, que restaurantes conquistam estrelas no Guia Michelin (famoso por avaliações do mundo inteiro com alto grau de credibilidade) nem tanto pela comida ou pelas instalações, mas pelo serviço.

Chef Liu
Liu deixou a confraria em 2011, quando sentiu necessidade de novos desafios. Àquela altura, já havia descoberto, reproduzindo na sua cozinha as comidas que saboreava nos restaurantes, que não cozinhava mal, embora tivesse suas limitações. “Chegou um momento que eu pensei: ou aprendo a cozinhar direito ou largo mão”, conta.

Primeiro, foi aprender com um dos melhores chefs franceses do Brasil, Laurent Suaudeau, discípulo de Paul Bocuse. Depois, com professores do calibre de Sergio Arno. Foi Laurent quem lhe indicou, como um dos ótimos restaurantes do interior, o de Massimo Barletti, em São José do Rio Preto. “Um dia cheguei lá, me apresentei e disse: nem precisa me trazer o cardápio. Desce aí o que você achar melhor. E ele me apresentou um menu degustação inesquecível. Passei a sair de Ribeirão para Rio Preto só para comer lá”, conta, rindo.

Em 2009, uma amiga pediu para Liu indicar um curso de culinária para fazer em Ribeirão e ele teve a ideia de montar um grupo para cozinhar junto, no qual ensinaria o que já havia aprendido e teria a oportunidade de praticar. Convidou mais dois amigos — um dentista e um colega do curso de fotografia que fazia. Os locais das aulas eram as cozinhas dos integrantes: cada semana na casa de um, com degustação dos pratos preparados ao final.

Em uma das aulas, a esposa do anfitrião fez fotos que divulgou nas redes sociais. Passou a chover telefonemas para Liu pedindo pelo curso. Como ele não é de fugir de desafios, foi topando montar uma turma atrás da outra.

Em 2012, Liu foi para a Itália fazer “O” curso que mudaria tudo: Italian Cuisine Institute for Foreigners ICIF (Instituto de Cozinha Italiana para Estrangeiros), em Asti, no Piemonte. Foram três meses de intensivo, dormindo na escola e estudando o dia todo, com muita prática. “Na prova final, somos avaliados por uma junta formada pela diretora da escola, pelo presidente da associação italiana de restaurantes, delegado de polícia da cidade, entre outros. Fui bem. Descobri lá que não estava enganando os alunos, como eu temia”, graceja.
Liu voltou ao Brasil seguro de que era hora de trabalhar com gastronomia em tempo integral. Fechou a empresa de informática e foi viver de ensinar a cozinhar e a comer.

Vinhos e queijos
No final de 2012, Liu iniciou, também, uma nova empreitada. Numa de suas visitas anuais ao amigo Nelcir Zambiasi, em Lajeado (RS), descobriu no sótão de uma casa em Nova Bréscia, duas pipas (barris) de madeira antigas — eram usadas pelo sogro de Zambiasi para deixar as uvas maturarem com o objetivo de fazer vinho. Na mesma hora, desafiou o anfitrião a produzir vinho com ele. Em poucos meses, eles iniciavam juntos uma produção totalmente artesanal, com 300kg de uva safra 2013 compradas de um fornecedor. “Fizemos a fermentação em uma caixa d’água”, conta Liu, divertido. “Até que ficou bem ‘tomável’”, brinca.

Atualmente, os amigos garantem uma produção de 1.000 litros (1.300 garrafas) de vinhos Merlot, Malbec, Cabernet Savignon, Tannat Tintos, Chardonnay Branco e Chardonnay Espumante Champenoise, com 2 toneladas de uvas. “Não é um vinho comercial. É algo que fazemos para nos divertir. É um prazer você resolver todos os problemas para fazer um vinho de qualidade, sentir e dar prazer aos familiares e amigos”, regozija-se Liu.
Recentemente seus vinhos foram avaliados pela melhor sommelier do Rio Grande do Sul de 2019, Deisi da Costa. Receberam muitos elogios.

Feliz Liu
Desde que passou a se dedicar só à gastronomia, Liu formou 36 turmas e levou alunos em viagens gastronômicas a países como Peru, México, Argentina, Indonésia, Japão, França, Tailândia e Coreia do Sul. Tudo sem nunca ter parado de estudar — em 2019, fez um curso de queijaria e pós-graduação em Gastronomia e Cozinha Autoral na PUC-RS. Isso até 2020 chegar…

Desta vez, foi uma pandemia que mudou o destino do chef Liu. Impedido de continuar dando aulas pela necessidade de obedecer às medidas sanitárias de prevenção à disseminação do coronavírus, ele decidiu começar a fazer queijos em casa. Desde então, já fez cerca de 30 tipos, entre eles cheddar, gorgonzola, gouda, gruyère, minas padrão, parmesão, camembert, stilton, brie e emmental.

Foi a quarta vez que Liu mudou de atividade, novamente sem drama ou hesitação. Só a satisfação de poder afirmar que só fez o que lhe deu prazer e o desafiou a vida inteira.


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