Olhar de esperança

Olhar de esperança

Há cinco anos, Ricardo Tostes promove a reinserção social de ex-dependentes de drogas e de álcool, através do Projeto Mudando Vidas

Criada em 2014, a Casa Apoio “Projeto Mudando Vidas”, localizada no Jardim Paiva, Zona Oeste de Ribeirão Preto, é uma iniciativa ousada de acolhimento, tratamento e combate a vícios, como drogas e álcool. Unindo esforços entre empresas privadas e Organizações Não-Governamentais (ONGs) da cidade para redefinir e reinserir pessoas vulneráveis da cidade, o Mudando Vidas trabalha para oferecer novas oportunidades de vida aos atendidos. Os acolhidos frequentam cursos, estudos, realizam exames médicos e participam de pequenos serviços, sendo providenciados documentos de identidade a eles.

No Projeto, que teve seu método de trabalho definido por meio das experiências de vida do estudante de Psicologia e ex-dependente químico Ricardo Tostes, são recebidas tanto pessoas que ainda não foram recuperadas (como moradores de rua) quanto indivíduos já tratados. A primeira técnica empregada na Casa Apoio é a de conscientização dos assistidos, com o primeiro acolhimento e o estado de abstinência. Após, há o encaminhamento para tratamento em outros centros, como as comunidades terapêuticas. A terceira fase do projeto é a de retorno, sendo promovida a reconstrução de vínculos com famílias. No último estágio, chamado de “moradia assistida”, os atendidos alugam casas, com o sustento de um emprego registrado, e o Projeto Mudando Vidas presta assistência na nova jornada.

Nesta entrevista, Ricardo Tostes explica que o processo de abandono dos vícios não é tão simples como parece. Além de detalhar os trabalhos da Casa Apoio “Projeto Mudando Vidas”, do qual é fundador e presidente, ele também expõe os preconceitos pelos quais passou — tanto da própria família quanto de outras pessoas. Exaltando o auxílio da esposa, Paula, que trabalha como coordenadora da Casa, Ricardo ainda realiza uma reflexão acerca das políticas municipais e nacionais de combate às drogas e ao álcool.

Para que muitos saiam de vícios como drogas e álcool, é necessário um impulso inicial. Qual foi o estímulo que o levou a perceber a necessidade de tratamento?

No meu caso e no de 90% das pessoas, foi a perda de controle da vida, ao viver escravo das drogas e envolver drogas em todo o cotidiano. Vi que precisava sair disso e, antes que as perdas fossem maiores, foi aí que eu me internei.

O “Projeto Mudando Vidas” foi definido por meio das experiências do estudante de Psicologia e ex-dependente químico Ricardo TostesComo você avalia o tratamento que recebeu na comunidade terapêutica?

Na época, há cinco anos, o tratamento foi muito bom. Em uma escala, diria 80% de satisfação. Infelizmente, hoje, vejo que, por falta de políticas públicas, os tratamentos têm deixado a desejar em alguns fatores, mas temos lutado para mudar isso.

Quando você percebeu que precisava ajudar outras pessoas na mesma situação?

Faz parte do tratamento. Você aprende a viver o “amar ao próximo como a ti mesmo” e começa a pôr em prática. Quando tomei consciência do quanto eu havia sofrido e feito minha família sofrer, vi que podia usar tudo isso para um bem maior. Foi neste momento que vi que eu tinha um chamado e passei a lutar por esta causa.

Quais foram as dificuldades iniciais no processo de montagem da Casa Apoio “Projeto Mudando Vidas”? Você teve o auxílio de seus familiares no estabelecimento desse projeto?

No início, tive todas as dificuldades que se possa imaginar. Não tive apoio de familiares; pelo contrário, muitos riam de mim, dizendo que não valia a pena, pois “drogados são vagabundos”. Algumas instituições queriam transformar o “Projeto Mudando Vidas” em “depósito de gente”, por não ter para onde encaminhar ao término de um tratamento.

Também tive dificuldades financeiras, que enfrento até hoje, pois não recebo verba nenhuma de ninguém, apenas algumas doações. Somente há dois anos, quando casei com a Paula Tostes, coordenadora pedagógica da Casa Apoio, que vi alguém que realmente confiava em mim e no meu projeto. A partir daí, ela passou a lutar ao meu lado.

A grande inovação da Casa Apoio é acolher tanto pessoas que não iniciaram tratamento quanto indivíduos que já foram recuperados. A dinâmica do Projeto consegue dar a atenção devida aos dois públicos?

Sim, e aí está a diferença, porque o Projeto sai da teoria, que é contra os indivíduos, e vai para a prática, que é eficaz. O indivíduo que chega para o tratamento se espelha naquele que terminou o processo de recuperação. Portanto, um ajuda o outro, num processo de transformação coletiva.

Em geral, como a sociedade e a iniciativa privada veem o Projeto Mudando Vidas e outras atitudes similares? Há muito preconceito por conta de serem pessoas vulneráveis?

Estamos vivendo uma fase de quebra de paradigmas, tabus e preconceitos. Há cinco anos, fazemos isso e somos criticados. Hoje, estamos marcando nosso lugar nas políticas públicas de acolhimento em Ribeirão Preto, reescrevendo a história dessa população de rua e construindo novas atividades públicas.

A reinserção social é uma etapa difícil na vida de pessoas vulneráveis. Como transformar a reinserção em uma fase suave e acolhedora, para que o indivíduo não desista no decorrer do processo?

O segredo é amor, paciência e acolhimento, além de muito estudo nas áreas da psicologia, assistência social, habilidades sociais, empatia e dom.

Quais as atividades que os acolhidos realizam dentro da Casa para que possam retomar e mudar de vida?

Os acolhidos realizam reuniões de sentimentos, espiritualidade e de prevenção a recaídas. Eles participam também de grupos de apoio como Alcóolicos Anônimos e Narcóticos Anônimos, grupos de dinâmicas com estagiários do 5° ano do curso de Psicologia da UNIP, entre outras atividades.

Sendo integrante do Conselho Municipal sobre Álcool e Drogas (Comad), como você avalia o panorama atual das políticas públicas governamentais no combate às drogas?

Analise também, por favor, as ações de acolhimento e tratamento. Engatinhando, quase que paradas. Ribeirão Preto não tem políticas públicas para álcool e outras drogas e, no momento, estamos criando ações para essas pessoas em situação de rua. Na cidade, somos os únicos que fazem este trabalho com início, meio e fim, em que o único objetivo é o acolhido ser reinserido no mercado de trabalho e/ou no seio familiar. Precisam ser construídas novas políticas públicas ou, em pouco tempo, teremos uma superpopulação de pessoas em situação de rua.

Em decreto do último dia 19 de julho, o presidente Jair Bolsonaro excluiu representantes da sociedade civil do Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas. Ao todo, foram 13 representantes excluídos, entre eles, as vagas para médico, psicólogo, assistente social e enfermeiro. Em sua opinião, qual o impacto dessa medida para a sociedade?

Com essas medidas, não será mais um conselho de políticas sobre drogas. Se for, será um conselho não democrático, formado por pessoas despreparadas.

Você acredita que as políticas públicas contra as drogas poderão ser afetadas por conta dessa decisão? De que maneira?

Sim, poderão ser afetadas, por falta de profissionais qualificados e especializados. As políticas podem ser afetadas pela possível promoção de uma higienização em massa, colocando as pessoas em situação de rua em clínicas “na marra”, com a narrativa de que são dependentes químicos e que estão fazendo mal para si e para a sociedade. Quem irá argumentar contra isso?

Em seu ponto de vista, a sociedade, governo e representantes devem agir juntos para delinear e implementar novas políticas públicas ou alterar as atuais?

É dever da sociedade se unir e os conselhos são a melhor ferramenta para tal. Hoje, faço parte e sou coordenador de um subgrupo de pessoas em situação de rua do Ministério Público de São Paulo. Sou prova de que o MP tem “poder” suficiente para fazer as políticas públicas serem cumpridas e estamos fazendo exatamente isso neste momento. Se não há uma equipe mínima de trabalho, composta de, por exemplo, comunidades terapêuticas, hospitais, Centros de Apoio Psicossociais (CAPS), entre outros, o Ministério Público pode ser acionado. Neste sentido, o MP é bem mais rápido do que qualquer conselho. É uma pena perder os conselhos desta forma, mas não será o fim. Ministério Público e Defensoria Pública, junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), são, por si sós, mais fortes do que qualquer conselho.

Por fim, o que uma pessoa precisa para mudar de vida e abandonar vícios?

Precisa querer mudar de vida. Temos que aprender a respeitar o tempo de cada um. Há um tempo para todas as coisas e afirmo: quando um dependente químico e/ou morador de rua pede ajuda, esse auxílio tem que ser realizado na hora. Caso contrário, essa pessoa volta às ruas e é aí que entra a política pública que não funciona de forma eficaz.

A confiança da mulher, Paula, coordenadora pedagógica da Casa Apoio, foi fundamental para RicardoQuais conselhos você daria às pessoas que desejam mudar de vida?

Dar conselhos é algo bem complexo. Para que isso seja feito, precisamos ver o outro como um indivíduo de fato. A orientação depende muito do contexto no qual a pessoa se encontra. Acho que inicialmente, o meu conselho é: peça ajuda e estaremos aqui para ajudar. 


Texto: João Pala Fotos: Ibraim Leão

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