
Os desafios da nutrição
Importante campo de investigação e atuação, a Nutrição se desenvolve cada vez mais e, além de promover maior qualidade de vida, possibilita a prevenção de doenças
Aos 87 anos, em plena atividade, o nutrólogo e professor sênior da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), José Eduardo Dutra de Oliveira, recebeu a visita da nutricionista Cristina Trovó para um importante bate-papo sobre alimentação. Um dos fundadores do curso de Nutrologia da FMRP-USP, professor durante mais de 40 anos e autor de mais de 300 trabalhos científicos e de cinco livros publicados, o professor Dutra, como é conhecido, tornou-se referência internacional na área, inclusive para a entrevistadora, que o aponta não apenas como um dos grandes nomes da Nutrição, mas também como referência pessoal, de uma vida dedicada ao trabalho realizado com amor e determinação. Com tamanha bagagem para ensinar, o nutrólogo dá a dica para que deseja uma vida ativa, “aprender a aprender e se tornar um aprendiz contínuo”.
Cristina: São mais de 50 anos de dedicação. Atualmente, o senhor é referência no Brasil e no mundo. Quais motivos o levaram a escolher a Nutrologia como área de atuação?
José Dutra: Eu me formei na Faculdade de Medicina de São Paulo, no primeiro ano depois da metade do século passado. Meu pai era médico e foi um dos pioneiros nos estudos de vitaminas no Brasil. Foi professor de fisiologia em São Paulo, escreveu livros e artigos sobre o uso de vitaminas no homem e clinicou em Ribeirão Preto, Brodowski e Batatais. Com essa retaguarda, no final do curso de Medicina, dediquei-me ao estudo de Nutrição em Medicina, publiquei um artigo sobre nutrição. Já formado, fui para os Estados Unidos onde me especializei e fiz pesquisas em Nutrição durante quatro anos. Voltei ao Brasil convidado pelo professor Hélio Lourenço de Oliveira, chefe do Departamento de Clínica Médica na nova e inovadora Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, para ensinar e fazer pesquisas em Nutrição/Nutrologia. Pela primeira vez no Brasil, e penso que no mundo, o ensino de Nutrição/Nutrologia foi implementado em uma Faculdade de Medicina. Dei aula desde a primeira turma de médicos que se formou na FMRP-USP.
Cristina: Na área de pesquisa científica, como foi a sua trajetória?
José Dutra: Trabalhei e aprendi muito fazendo pesquisas em animais, em crianças e em adultos com o nosso feijão e arroz, com milho. Introduzi o “leite de soja” na alimentação de crianças. Fiz os primeiros estudos sobre anemia ferropriva aqui em Ribeirão Preto. Mostrei a alta prevalência dessa anemia em crianças pré-escolares, em um estudo feito em uma creche que havia perto do Aeroporto com cerca de 40 crianças. Fui verificar e encontrei entre 40% e 50% delas com anemia. Esse foi o primeiro estudo feito, que repliquei em outras cidades da região, mostrando que se tratava de um problema mundial. Nessa pesquisa, coloquei um galão com ferro adicionado à água para elas tomarem diariamente. Depois de quatro meses o índice tinha caído para 25% e, ao final de oito meses, apenas uma criança apresentava quadro de anemia, mas com deficiência de ácido fólico, e não ferro. Em função desse trabalho, criamos uma lei para que o ferro fosse adicionado à água nas creches. A lei foi aprovada na Câmara de Vereadores e vetada pelo ex-prefeito Luis Roberto Jábali, que era meu amigo, com o argumento de que seria um gasto muito alto para os cofres públicos, mas o sulfato ferroso é baratíssimo. O veto foi derrubado pela Câmara, mas até hoje a lei não foi posta em prática.Cristina: Quais as suas observações acerca da prevalência da anemia no Brasil e no mundo?
José Dutra: No mundo, hoje, cerca de dois bilhões de pessoas têm anemia ferropriva, entre elas, 800 milhões de crianças e 400 milhões de mães, segundo dados da Organização Mundial da Saúde. É o maior problema de Saúde Pública nos países do hemisfério sul. Demonstramos em nossas pesquisas que tomar água fortificada possibilita controlar e acabar com a doença em várias partes do mundo. A doença prevalece, embora tenha diminuído bastante em determinadas regiões em função da fortificação com ferro dos alimentos industrializados. É preciso mesmo chamar o pessoal da indústria e dizer “olha, vocês são responsáveis pela nutrição sadia da população”.
Cristina: Hoje, vemos uma fartura de alimentos, tudo muito à mão, o papel da indústria é importante.
José Dutra: Não há dúvidas de que a industrialização de alimentos tenha um papel cada vez mais importante na alimentação diária de todas as pessoas do mundo. É preciso que a indústria use uma tecnologia que mantenha e conserve o valor nutritivo dos alimentos. A indústria pode tecnologicamente manter e fortificar os seus produtos com nutrientes especiais que controlem doenças. A fortificação de alimentos com ferro foi um fato, um fator fundamental para o controle da anemia ferropriva nos Estados Unidos e outros países ricos do mundo. Sabemos, por pesquisas, que alguns tipos de câncer são mais comuns em ambientes mais desenvolvidos, como nos EUA e no Canadá. Há alguns tipos mais prevalentes em cidades onde a comercialização de alimentos industriais é maior, com predomínio menor em vegetarianos e em lugares onde não existem produtos industrializados, que tiram, às vezes, o valor nutritivo dos alimentos, como sal e vitamina C. Por isso, acho que a indústria precisa ter responsabilidade.
Cristina: Qual a razão de não haver melhora nos índices de anemia e de outras doenças como a desnutrição?
José Dutra: É realmente interessante essa situação mundial. Nos países mais pobres, especialmente no hemisfério sul, é enorme o número de pessoas e principalmente de crianças e mulheres com anemia ferropriva e nos países em desenvolvimento e industrializados vem aumentando o número de pessoas com sobrepeso e obesidade. É evidente que a situação econômica e educacional influencia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o governo brasileiro preconizam a ingestão de comprimidos ou o uso de xarope. Dessa forma, a criança toma, sara, mas volta a ter os mesmos hábitos alimentares, fazendo com que a anemia volte. Tenho o resultado de um estudo realizado com trabalhadores rurais em uma pequena cidade próxima de Recife. Na família do boia-fria, 40% das crianças têm anemia, 27% das mães, 10% dos pais e 7% das jovens gestantes. O governo brasileiro adotou como política o fornecimento de ferro através de alimentos fortificados, fazendo a anemia melhorar um pouco, mas ainda prevalece em partes mais afastadas, assim como a desnutrição está presente em localidades onde o acesso à comida e à informação é dificultado. Esses são os maiores problemas de saúde pública dos países pobres e em desenvolvimento, como o Brasil.
Cristina: Outro grande problema relacionado à alimentação é a obesidade. Qual avaliação faz nesse caso?
José Dutra: Atualmente, do ponto de vista da Saúde Pública, são o sobrepeso e a obesidade os grandes problemas dos países em desenvolvimento e ricos. A ingestão de bebidas calóricas pelas crianças deve ter influencia no sobrepeso. A alimentação nesses países está muito ligada à ingestão de alimentos calóricos e faz-se pouco exercício. A nossa alimentação vem muito de Portugal, que tem a característica do doce, do ponto de vista de nutrição é uma alimentação muito rica em açúcar. As pessoas precisam entender que possuem uma fábrica própria, precisam saber que não respondem à mesma dieta dos outros, mas apenas à própria dieta, ao seu nutrograma. Por isso, não adianta fazer dieta da moda, é preciso fornecer ao organismo uma alimentação equilibrada e individual, do ponto de vista nutricional, dos macro e micronutrientes.
Cristina: O indivíduo pode ter um hábito alimentar ideal, um estilo de vida saudável, mas a dieta tem que ser personalizada.
José Dutra: Essa conclusão sua é que eu gostaria que as pessoas chegassem. Você é o que você come do ponto de vista nutricional. Um estudo realizado com 200 pessoas obesas que faziam dietas diferentes mostrou que a maioria precisava de dieta baixa em açúcar, mas que, em outros casos, precisavam de uma dieta baixa em gordura para perder peso. Isso prova que a alimentação tem que ser individualizada. A nutrologia estuda nutrientes, proteínas, hidrato de carbono, gorduras, minerais, vitaminas e água nos indivíduos. Examina seu sangue e urina, mede tudo e descobre o que está em excesso e o que está faltando nas pessoas. Por isso, não existe uma alimentação para todos. A dieta que é boa para uma pessoa pode não ser ideal para outra, ela precisa ser orientada pelos profissionais da área, que é multidisciplinar.
Cristina: Qual a sua posição em relação à cirurgia bariátrica?
José Dutra: Fico preocupado e impressionado com a propaganda que se faz da cirurgia bariátrica, do tipo “se você é gordo basta fazer a cirurgia bariátrica que você emagrece”. Isso não é bem assim. Acho um absurdo tirar o estômago do sujeito para que ele emagreça. Essa indicação de tirar parte do intestino para emagrecer não é fisiopatologicamente correta. Tirar uma parte do intestino onde são absorvidos os nutrientes evidentemente emagrece, mas também é verdadeiro que o paciente se desnutre e pode até morrer. Talvez, em alguns casos muito específicos, por questões psicológicas, sociais, culturais até poderia ser indicada uma cirurgia bariátrica, mas necessariamente tem que ter um acompanhamento médico nutrológico e psicológico contínuos. Também sou contra o uso generalizado do remédio no tratamento da obesidade, mas em casos específicos ele pode ser usado. Tudo deve seguir critérios rigorosos, sem remédios e cirurgias indistintamente utilizados como recursos para emagrecer.Cristina: O senhor é fundador do ambulatório de Nutrologia da rua Minas. Com quais objetivos ele surgiu?
José Dutra: Esse foi, pelo que eu sei, o primeiro Ambulatório de Nutrologia implementado na Rede Publica de Saúde. É um Ambulatório de Especialidades e o fato de nós trabalharmos em Nutrologia na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto possibilitou que pudéssemos incluir a Nutrologia na Rede Municipal da Saúde. Lá, temos uma equipe com médicos, nutricionistas, bioquímicos e psicólogos. Do ponto de vista da alimentação e do trabalho com obesos, que exige mudança de comportamento, esses profissionais são muito importantes. É preciso levar em consideração o aspecto multidisciplinar da área.
Cristina: Como é o trabalho realizado nesse ambulatório de Nutrologia?
José Dutra: É dando conhecimento à Rede de Saúde, aos médicos e a população, mostrando que existe um atendimento especializado em Nutrologia, da mesma maneira que existe para Cardiologia, Gastroenterologia e outra especialidades médicas, que se promove mudanças. O maior número de pacientes ali são os obesos que, muitas vezes, já fizeram alguma dieta e não conseguiram resultados. A Nutrologia faz o diagnóstico e o tratamento de problemas fisiopatologicamente ligados aos nutrientes. É uma especialidade relativamente nova, que muitos médicos e a população não conhecem muito. O Nutrólogo estuda os nutrientes na saúde, nas doenças e na prevenção das doenças. Mostramos assim um resultado positivo porque o diagnóstico é clínico. Não se trata de dizer se o indivíduo é gordo ou magro, mas de medir e mostrar as deficiências nutricionais que o paciente apresenta.
Cristina: Mesmo aposentado, o senhor continua muito ativo. Quais atividades vêm desenvolvendo atualmente?
José Dutra: Sou aposentado na USP como professor titular de Clinica Médica em Nutrologia, mas continuo ligado à Faculdade e ao Hospital das Clínicas como professor sênior. Tenho participado muito de reuniões, congressos e conferências nacionais e internacionais em diversas partes do mundo. Tenho dito aos médicos e estudantes de medicina: “Estudem nutrição, nutrologia e conheçam o mundo”. Estou com três reuniões marcadas para a Malásia, Republica Dominica e Viena neste final do ano. Também estou querendo montar aqui em Ribeirão Preto um Instituto Nacional de Nutrologia, que trabalhe com alimentação, nutrição e nutrologia.
Cristina: Em sua opinião, qual a importância do desenvolvimento da Nutrologia?
José Dutra: Essa especialidade dá uma contribuição muito grande à saúde para o diagnóstico e o tratamento de doenças nutricionais. Tenho um pouco de medo porque acho que de 80% a 90% dos profissionais lidam com obesidade. Procuro mostrar que a Nutrologia não cuida somente da obesidade, mas ela esta fisiopatologicamente ligada a todos as doenças, direta e indiretamente relacionada a todos os nutrientes e a hereditariedade. A dislipidemia, o problema do colesterol, o diabetes, as osteoporose, a pelagra, a desnutrição, pluricarencial hidropigênica (Kwashiorkor), o escorbuto são direta ou indiretamente doenças nutricionais. Faço força para mostrar que trabalhamos com todas as substâncias nutritivas para a saúde, principalmente, a prevenção. O nutrólogo pode diagnosticar a propensão do indivíduo para o desenvolvimento de uma determinada doença e, em vez de esperar que ele apresente os sintomas, começar a tratar para prevenir.
Cristina: qual avaliação faz da difusão desse conhecimento?
José Dutra: Sem dúvida, a Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto é um marco nesse sentido, da Especialidade Médica Clínica de Nutrologia. Há mais de 50 anos, todos os médicos formados aqui recebem treinamento médico clínico em Nutrologia. Parece-me que apenas 10 faculdades incluem a Nutrologia no Curso de Medicina. A Associação Brasileira de Nutrologia (ABRAN) oferece cursos de especialização em Nutrologia frequentados, anualmente, por mais de 300 médicos do país. Há, inclusive, uma fila de espera pelo curso. A especialidade hoje é reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina, pelo Ministério da Saúde e da Educação. Tudo começou conosco, na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Orgulho-me disso.
Cristina: O que o senhor espera do futuro da Nutrologia?
José Dutra: Acho que a Nutrologia é uma especialidade médica que tem potencial, um crescimento muito, muito grande, no diagnóstico, no tratamento e na prevenção de doenças, problemas ligados direta ou indiretamente aos nutrientes. Cada pessoa tem um perfil nutrimental que pode variar na saúde e nas doenças. O campo é justamente o do crescimento e do reconhecimento do estudo de Nutrologia, tanto nas escolas de medicina — afinal, essa é uma área multiprofissional — quanto nas escolas de Ensino Infantil, Fundamental e Médio. Essa é uma visão muito importante para mim, por isso, estou apresentando um projeto na Câmara dos Deputados que propõe inserir Educação Nutricional no currículo escolar desde a pré-escola. Sem informação, o indivíduo tende a ter problemas de nutrologia e nutrição.Cristina: Qual sua sugestão para fazer um trabalho interessante com as escolas, que são ferramentas fundamentais para a Educação Alimentar?
José Dutra: O estudo da Alimentação deve ser, obrigatoriamente, incluído, desde o ensino primário, em todo o Brasil. Você é o que come e cada um precisa aprender a comer para viver, para pensar, para andar, para trabalhar, para evitar doenças. Essa proposta de lei estimula cada escola a ensinar e oferecer uma alimentação saudável. Não é dar uma alimentação saudável, mas fazer com que alunos aprendam a comer uma alimentação nutricionalmente saudável. Uma ideia é incluir a participação dos próprios alunos na cantina escolar, para que não seja um comércio, mas um ambiente de aprendizado, um local para se educar, para se ensinar sobre alimentação.
Eterno aprendizado
“Sou formada pela Universidade de Ouro Preto e estudei em livros do professor José Eduardo Dutra de Oliveira. Por ter aprendido tão bem, mesmo indiretamente, através da ajuda dos seus livros, já que não o tive como professor, quando surgiu a oportunidade de entrevistá-lo esse aprendizado voltou à mente. Diante de tudo o que já foi falado sobre ele, só posso agradecer a oportunidade desse encontro e a bagagem trazida para nós, que está à disposição nos seus livros e, quando precisamos, podemos consultar. Seu trabalho é de fundamental importância porque forma inúmeras pessoas, como eu, que, depois, vão ajudar tantas outras, principalmente crianças, pois o panorama hoje é bem diferente de quando comecei a trabalhar, quando quase não havia crianças no consultório.”Cristina Trovó, especialista em Nutrição.
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Yara Racy
Fotos: Julio Sian