
Padrões Distorcidos
A supervalorização da imagem corporal pode resultar em padrões alimentares restritivos e ingestão inadequada de nutrientes, além de influenciar o comportamento de crianças e adolescentes
A busca pelo padrão corporal ideal é uma das preocupações de especialistas acerca do comportamento de adolescentes. Alterações psicológicas oriundas da insatisfação com o corpo podem levá-los a reduzir, drasticamente, a ingestão calórica, ou praticar atividades físicas de forma excessiva para queimar as calorias ingeridas, além de induzir vômitos logo após as refeições ou utilizar laxantes e diuréticos para perder peso.
Aos 62 anos, Sebastião de Sousa Almeida tem experiência de sobra quando o assunto é o estado nutricional e a imagem corporal em crianças, adolescentes e adultos. Bacharel em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), é especialista em Nutrição pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Possui Mestrado e Doutorado em Farmacologia pela FMRP-USP, Pós-doutorado pela Boston Medical School (USA) e é Livre-Docente pela USP. Atualmente, é Professor Titular e Chefe do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP.
Na entrevista a seguir, o professor discorre sobre as pesquisas mais recentes em relação à capacidade da população de reagir diante das imposições da sociedade sob dois aspectos: o letramento nutricional, que permite informações básicas para tomar decisões diante da busca pelo corpo ideal, e a psicologia positiva, que reconhece o comportamento como fator de proteção contra elementos causadores de estresse e, consequentemente, a compulsão alimentar. “Dessa forma, dotar o indivíduo de conhecimento e habilidades para enfrentar situações impositivas por um corpo ideal permitiria condições para enfrentar eventos difíceis, tornando-se agentes ativos na superação da vulnerabilidade e do risco”, afirma.
Qual o processo de evolução da sua linha de pesquisa sobre a imagem corporal?
Embora tenha seguido a mesma linha de pesquisa desde o início da minha carreira, os estudos sobre nutrição e comportamento passaram por diversas fases. Inicialmente, focaram os efeitos em longo prazo da desnutrição proteica precoce em modelos animais de aprendizagem. Mais tarde, desenvolvemos estudos dos efeitos da desnutrição proteica precoce e drogas ansiolíticas e ansiogênicas em modelos animais de exploração, aprendizagem, memória e ansiedade. Logo depois, desenvolvemos, também, estudos sobre os efeitos da obesidade em modelos animais de aprendizagem e memória. Finalmente, incluímos estudos com interesse em comportamento alimentar e obesidade em humanos. Nessa nova linha, estamos interessados no estado nutricional e imagem corporal em crianças, adolescentes e adultos.
Atualmente, observa-se um crescimento da busca pela beleza e dos modelos propostos pelos segmentos da moda, de bens e serviços em torno do corpo perfeito. O modelo de beleza corresponde a um corpo magro, sem considerar aspectos relacionados à saúde?
Hoje sabemos que a percepção e a concepção que temos de nossos corpos têm o potencial de influenciar o nosso comportamento. A busca por um padrão de beleza que reflita um corpo perfeito parece ser uma realidade na maioria dos países já estudados na literatura. Em todos esses estudos é ressaltada a intensa procura por atingir um corpo idealizado como belo. Como aquele corpo idealizado nem sempre é possível de ser alcançado pela maioria das pessoas, tem início os comportamentos de risco para a saúde. É como se ao atingir aquele corpo magro o sujeito fosse resolver todos os seus problemas de autoestima. A mídia normalmente associa o ideal social de atratividade a mensagens sobre características positivas como felicidade, mobilidade social, autocontrole, poder, liberdade, autonomia e bem-estar. Essa realidade leva a uma busca incessante das pessoas por moda, bens e serviços que prometam um corpo belo a qualquer custo, mesmo que essas promessas possam comprometer a saúde. Não é raro vermos na mídia jovens que se submetem a tratamentos estéticos com profissionais não habilitados para aplicação de substâncias químicas para modelar várias partes do corpo. Em alguns casos esses pacientes têm sérios prejuízos de saúde, inclusive com algumas mortes. Da mesma forma, algumas pessoas se engajam em comportamentos alimentares altamente restritivos que também podem levar a prejuízos sérios para a saúde.
Qual o impacto desse padrão na vida de crianças e adolescentes?
Em adolescentes e, principalmente, em crianças, estamos em diversas fases de desenvolvimento tanto da estrutura do corpo físico como da estrutura da personalidade desses indivíduos. Dessa forma, em muitos casos eles ainda não têm capacidade para analisar objetivamente e criticamente as alterações no ambiente produzidas por intensa propaganda de alimentos, exigências de padrões de beleza impostas pela mídia e até mesmo a sugestão de comportamentos de risco para se atingir aqueles padrões de beleza. Nos estudos conduzidos em nosso laboratório, já demonstramos que mesmo crianças nas idades entre dez e 12 anos já apresentam insatisfação com a imagem corporal, o que é muito preocupante. A literatura também tem demonstrado que grande parte dos personagens e brinquedos dirigidos às crianças veiculam corpos idealizados pela mídia como, por exemplo, a boneca Barbie para as meninas e os bonecos musculosos para os meninos. Assim, não é de se estranhar que crianças e adolescentes sejam influenciados a adotarem comportamentos pouco saudáveis para atingir aquele padrão de beleza veiculado pela mídia.
A nutricionista Maria Fernanda Laus mostrou, em pesquisa, que o padrão de beleza veiculado pela mídia pode causar insatisfação com o próprio corpo entre os jovens. Quais os principais riscos desse comportamento?
A família e os pares, mas, principalmente, a mídia, são responsáveis pela propagação de ideais de forma física que enfatizam a extrema magreza para mulheres e um corpo musculoso para o homem. A nutricionista Dra. Maria Fernanda Laus foi minha aluna de mestrado, doutorado e pós-doutorado e atualmente integra o grupo como pesquisadora. Desde os seus estudos iniciais, apresentou interesse pelo estudo da imagem corporal. Nesse trabalho, ela mostrou que o padrão de beleza veiculado pela mídia pode produzir insatisfação de jovens com o próprio corpo. Uma intensa insatisfação e baixa autoestima podem levar esses jovens a se engajarem em comportamentos de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares como a bulimia e anorexia.
O comportamento alimentar é diferente entre o sexo masculino e feminino? Por quê?
O comportamento alimentar é multideterminado. Diversos fatores biológicos, psicológicos, comportamentais e ambientais concorrem para determinar este comportamento. O sexo seria somente um destes fatores e que não teria, sozinho, o poder de determinar diferenças muito significativas no comportamento alimentar. Necessitamos analisar todos os outros determinantes para diferenciar o comportamento alimentar nos seres humanos.
Podemos dizer que está havendo uma mudança comportamental em relação aos hábitos alimentares da população?
Atualmente parece estar havendo uma onda de interesse por comportamentos mais saudáveis, incluindo, também, a alimentação. Dessa forma, ocorre um interesse muito grande, principalmente entre os jovens, por dietas que priorizem alimentos orgânicos, aumento de ingestão de alimentos à base de plantas e redução do consumo de alimentos animais, principalmente aqueles altamente ricos em gorduras saturadas e embutidos. Infelizmente, muitos desses jovens se engajam em dietas sem orientação nutricional adequada, o que também pode levar a um consumo inadequado de determinados nutrientes essenciais para o bem-estar e a saúde.
Nesse cenário, o atendimento nutricional representa a atuação de um efetivo modelo de reeducação alimentar, priorizando melhora no estilo e na qualidade de vida?
Sim, e para isso o mais importante é o trabalho de uma equipe multidisciplinar que possa trabalhar com todos os aspectos envolvidos na reeducação alimentar e uma melhor qualidade de vida. Nesse sentido, é importante termos nesta equipe médicos, nutricionistas, psicólogos e educadores físicos. Assim, todos os aspectos biológicos e comportamentais serão contemplados no atendimento.
Em sua opinião, o que é necessário para mudar a consciência da população em relação aos padrões impostos pela sociedade?
A informação é um fator muito importante na mudança de hábitos, mas só essa informação não é suficiente para a mudança. Assim, além da informação teríamos que atentar para outros fatores envolvidos na mudança dos hábitos que são a motivação e a emoção. Não adianta o indivíduo ter somente a informação de que é prejudicial se engajar em comportamentos danosos à sua saúde para atingir os padrões de beleza impostos pela mídia se esse indivíduo não trabalhar aspetos emocionais e motivacionais envolvidos no processo. Dessa forma, qualquer programa estabelecido para mudar os hábitos deveria, além dos aspectos cognitivos, trabalhar os outros dois aspectos envolvidos nesta mudança: motivação e emoção.
Texto: Cristiane Araujo | Fotos: Luan Porto