Perspectiva histórica

Perspectiva histórica

Coordenador dos cursos de graduação e pós-graduação em História do Centro Universitário Barão de Mauá, Rafael Cardoso de Mello analisa o racismo a partir da trajetória do país

Texto: Marina Aranha


Há sete anos, o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) criou corpo nos Estados Unidos para promover campanhas contra a violência direcionada às pessoas negras. Em maio de 2020, a morte de George Floyd por asfixia por um policial branco norte-americano jogou ainda mais luz à iniciativa e protestos ganharam as ruas de diversos países, como o Brasil. Por aqui, o movimento incentivou atos em cidades, manifestos e, ao redor do mundo, a hashtag #BlackLivesMatter foi intensamente utilizada nas redes sociais.

Rafael Cardoso de Mello é licenciado em História, Pedagogia e Filosofia. Coordenador dos cursos de graduação e pós-graduação em História do Centro Universitário Barão de Mauá, ele aborda, junto aos alunos, questões étnico-raciais envolvidas na história mundial, como a escravidão no Brasil. “Nossa identidade e consequentemente as verdades de nossa consciência histórica foram gestadas na escravidão e na hierarquia social entre as etnias que aqui viveram. Assim, a expressão racismo estrutural dialoga com a formação de nosso Estado-nação e nas diversas práticas racistas cotidianas”, pontua. Na entrevista a seguir, Rafael compartilha seu olhar sobre a sociedade atual e avalia casos emblemáticos, como o processo para contratação de trainees exclusivo para negros, proposto em setembro pelo Magazine Luiza.

Como pode ser entendido o racismo estrutural?

A história do Brasil se confundiu por mais de três séculos com a história da escravidão de negros e de índios. Com relação específica aos negros e as negras, nossa história é de 388 anos de escravidão legalizada, enquanto os outros “120 poucos anos” completam este meio milênio de cidadania republicana preconceituosa e excludente. Em outras palavras, nossa identidade e consequentemente as verdades de nossa consciência histórica foram gestadas na escravidão e na hierarquia social entre as etnias que aqui viveram. Assim, a expressão racismo estrutural dialoga com a formação de nosso Estado-nação e nas diversas práticas racistas cotidianas. Algumas delas simbólicas, por exemplo, questiono se a minha voz como historiador branco não reproduz a não presença dos negros nesta entrevista.

Qual o papel das instituições de ensino do país no combate ao preconceito?

A lei 10.639/03 obriga as instituições de ensino brasileiras, públicas e privadas e em todos os níveis de ensino, a desenvolver práticas pedagógicas que alimentem uma consciência história respeitosa a diversidade étnica. Tal lei é recebida como vitória pelo Movimento Negro Unificado (MNU) dado o seu plano de ações do início da década de 1980. Não se pode dizer que todas as instituições realizem, com a natureza discursiva e empenho esperado, a demanda proposta, porém, as pesquisas recentes apontam para uma maior produção de materiais didáticos e esforços para inserir a cultura afrobrasileira no cotidiano escolar. O que nos leva a uma maior esperança na diminuição da ignorância — elemento fundamental de produção de mitos, preconceitos e práticas discriminatórias.

Em maio, o movimento Vida Negras Importam, que cresceu nos Estados Unidos após a morte de George Floyd, despertou reações em diversos países, inclusive no Brasil. Muitos aderiram à hashtag nas redes sociais e fizeram postagens com um quadro inteiro na cor preta, mostrando simpatia ao movimento. A militância nas redes sociais, contudo, nem sempre tem implicações efetivas no “mundo real”. Como transformar a indignação virtual a ações práticas no dia a dia?

Ser negro nos Estados Unidos e ser negro no Brasil não significa a mesma coisa quando pensamos na identidade destes povos. A discussão perpassa um longo e bélico percurso histórico dos dois países, articulados a uma Guerra Civil (1861-1865) no caso dos estadunidenses e nas leis abolicionistas brasileiras que culminaram na lei Áurea (1888). Enquanto os norte-americanos enfrentaram a problemática do fim da escravidão diante de uma sensação de conflito armado (apartheid) entre a sociedade negra versus a branca, somos, na América portuguesa, convidados a nos encontrar na mistura étnica e não na “pureza” dos grupos. Os programas televisivos são grande oportunidade para verificar tal divisão — as séries Friends e How I Meet Your Mother são protagonizadas por atores e atrizes brancos, enquanto The Fresh Prince of Bel-Air e Me, my wife and kids por negros e negras. No Brasil, nossas novelas incluem negros nas problemáticas de uma sociedade branca excludente. Poucas são as novelas com protagonistas negros. A condição identitária é apenas parte desta discussão. Contudo, a questão que você me propõe traz a expressão “simpatia pelo movimento”. Não sei como poderia resumir ou propor uma consideração que caiba nas páginas desta entrevista. Chamam atenção os dados do mapa da violência quando observo o número de jovens negros assassinados no Brasil. Sobre “simpatia”, confesso que gostaria de ouvir as pessoas quanto a motivação sobre o uso de uma “hashtag” nas redes sociais vinculadas a um movimento social. Sinto que a resposta do leitor seria mais rica que a minha análise.

Em setembro deste ano, a empresa Magazine Luiza causou reações das mais diversas nas redes sociais após anunciar um programa de trainee apenas para negros. Qual a sua opinião sobre ações como a da empresa e como avaliar a repercussão que existiu?

Quando estamos frente a um assunto tabu, estamos frente a um problema no discurso. Somos presos a uma condição de policiamento da palavra, de receios, de constrangimentos. O belicismo discursivo mundial e nacional (atualmente contornado pela polarização) impede conversas sadias e necessárias sobre o presente, o passado e o projeto de Brasil que queremos. Chamar muito mais a atenção a reação da mídia em relação às respostas do fato do que o fato em si (a discussão sobre o problema da desigualdade no Brasil). Muitas vezes questiono socraticamente alguns de meus alunos: “Do ponto de vista empresarial, quem ganha mais com esta iniciativa, os candidatos aos cargos prometidos ou os responsáveis pela campanha de marketing gratuito?”

O termo ‘racismo reverso’ também foi aplicado com relação ao episódio da Magazine Luiza, indicando que priorizar os negros seria uma espécie de ‘preconceito contra os brancos’. Como interpretar esse termo e o que ele representa na sociedade brasileira atual?

Certa vez assisti a um humorista respondendo em tom de ironia a questão sobre um possível racismo reverso. Ele disse algo mais ou menos assim: imagine um mundo em que, por milhares de anos, negros dominassem brancos e os fizessem passar por experiências tão nefastas que sua identidade, memória e história fossem escanteadas, diminuídas e marginalizadas. Neste cenário, um negro poderia tirar sarro de um branco a partir de um etnocentrismo africano. Aí sim, pode-se dizer que é possível pensar em uma perspectiva de racismo contrário. Como é impossível imaginarmos isso, posto que nossa razão, pensamento e imaginário se dão mediante ao etnocentrismo (europeu), ficará difícil nomear tal perspectiva.

Dos nove candidatos à Prefeitura de Ribeirão Preto em 2020, apenas um deles se autodeclarou negro. Entre os candidatos a vereador, foram 29% autodeclarados negros ou pardos. Até o fim do atual mandato do Legislativo, em 31 de dezembro, a Câmara deixa clara a desigualdade: dos 27 vereadores, 22 são brancos, cinco são pardos e nenhum negro. A que pode ser atribuída essa falta de representatividade negra e qual o impacto disso na sociedade?

Adoraria fazer uma pesquisa sobre este tema. Nela, poderíamos perceber estes dados ao longo das décadas, seu crescimento e flutuação. Como já foi afirmado pelos historiadores locais, a sociedade ribeirãopretana tem em sua identidade o racismo. O que se pode afirmar hoje é que a história é imperativa e que homens e mulheres estão cotidianamente a reconstruí-la. Penso e sei que o conflito entre os diversos interesses alimenta a democracia e potencializa as mudanças para um futuro menos desigual (em todas as esferas). E que podemos e devemos agir para que estes dados sejam, no futuro, reveladores de que a lei 10.639/03 foi vitoriosa, tal como percebermos que a nossa Constituição é posta em prática em sua realidade cidadã. 

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