Proibição suspensa
Enor Machado de Morais, presidente da Associação Terapêutica Cannabis Medicinais Flor da Vida

Proibição suspensa

Sob pressão, Conselho Federal de Medicina voltou atrás na resolução proibitiva do uso de cannabidiol

O Conselho Federal de Medicina (CFM) emitiu no dia 14 de outubro uma Resolução — CFM nº 2.324 —, restringindo a atuação dos médicos na prescrição de medicamentos de cannabis a algumas patologias e também sua participação em palestras sobre o tema.

 

A resolução contraria o procedimento que já vinha sendo adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o Ministério da Saúde que compra medicamentos com canabidiol para patologias distintas à epilepsias da criança e do adolescente, Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e Complexo de Esclerose Tuberosa.

 

A medida gerou polêmica e depois de intensas críticas recebidas por diversos setores, no dia 24 de outubro, após reunião extraordinária, o CFM suspendeu temporariamente a resolução, abrindo consulta pública sobre o tema. As sugestões podem ser feitas até 23 de dezembro por meio do site da entidade: www.portal.cfm.org.br

 

Notas contra a resolução


Cinco entidades assinaram uma nota conjunta contra a resolução: a Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (ABIQUIFI), a Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (ABIFINA), a Associação Brasileira das Empresas do Setor Fitoterápico, Suplemento Alimentar e de Promoção da Saúde (ABIFISA), a Associação Brasileira de Organizações Representativas de Pesquisa Clínica (Abracro) e a Associação Brasileira das Indústrias de Canabinoides (BRCann).

 

A Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC) também divulgou nota contra a resolução do CFM, considerando-a arbitrária e recomendando sua revogação.

 

Em nota, a OAB de Ribeirão Preto também se manifestou alertando para possíveis prejuízos causados pela resolução a pacientes.

 

“A resolução limita a autonomia do médico e a tradição de autossuficiência e inviolabilidade na condução do tratamento (...), o expõe à possibilidade de processo ético disciplinar (...) Não obstante, é possível o questionamento da limitação trazida pela resolução, tendo em vista que conflitaria com outros dispositivos do Código de Ética Médica, bem como com a Norma 327/19 da Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), que dispõe sobre a fabricação e importação de produtos de cannabis para fins medicinais e autoriza a comercialização destes produtos”, assinou o presidente da Comissão Médica e da Saúde da OAB de Ribeirão Preto, Marcos Tulio Paranhos da Costa.


Leonardo Sobral Navarro, especialista em direito médico, secretário geral e membro efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP, aponta a resolução sustada indo além da tentativa de restringir a atividade médica.

 

“Tanto a normativa de 2013 como a de 2022 afrontam o direito de decisão do médico com capacitação e do paciente bem informado de acesso ao tratamento. Essa resolução estava confrontando princípios biotéticos; normativas anteriores do próprio CFM. Além disso, vedar a participação do médico em palestras e cursos é algo gravíssimo. Impõe censura, cria a impossibilidade de transmissão de conhecimento para profissionais de saúde, de forma flagrante contraria a Constituição Federal indo, ainda, na contramão do movimento mundial pela regulação do uso medicinal com ampla discussão”, esclarece o advogado.

 

Controle necessário 


Segundo Rafael Guimarães dos Santos, especialista na área de canabinóides, orientador em Saúde Mental da FMRP-USP e doutor em Farmacologia, a resolução nº 2.324 representa uma tentativa do CFM de conter o uso indiscriminado do cannadibiol.

 

“Pessoalmente acho uma reação rígida e restritiva, mas vejo como uma reação do CFM ao cenário atual de uso pouco criterioso da maconha medicinal. Alguns profissionais, não todos, estão receitando produtos que não tem a sua devida qualidade testada, nem de eficácia, nem de segurança e nem de conteúdo de canabinóides e presença de bactérias fungos ou metais pesados. Não se sabe exatamente a composição desses produtos e, associado a isso, não há evidência científica, ou ela é muito pouca, sobre tudo o que dizem que a substância faz. É uma medicação como qualquer outra, para uns funciona e para outros não, e precisa de mais estudos”, ressalta Rafael.


Como explica o pesquisador, o Brasil é o que mais produz artigos científicos no mundo sobre o tema e há resultados promissores, inclusive resultados positivos nos casos de ansiedade, o que não significa que haja evidência suficiente para se receitar de forma massiva.

 

“Em muitos países as pessoas têm acesso a algum composto com CDB, aqui no Brasil existem alguns extratos aprovados, porém, exceto para três quadros específicos de epilepsia, não se trata de uma categoria oficial de medicação aprovada por uma agência de medicamento em lugar nenhum do mundo. Tem gente chegando com quadro de depressão ou epilepsia em consultório médico querendo tomar canabidiol como se fosse um medicamento de primeira linha, quando na verdade essas substâncias são receitadas como última opção, apenas quando as outras medicações falham”, enfatiza.


Outro ponto levantado por Rafael, é que há pessoas receitando canabidiol como se fosse uma planta natural, que não causa prejuízos, mas ele apresenta alteração de enzimas hepáticas, exigindo, portanto, monitoramento do nível de uso. “O médico precisa da liberdade de receitar, mas também do acesso a produtos de boa qualidade e diretrizes, guias específicas para uso, e nos produtos canabinóides não existe essa indicação de quantidade a ser utilizada para diferentes diagnósticos. Diante desta realidade a medida restritiva do CFM foi tomada. Acho que precisa haver equilíbrio entre contenção, controle e monitoramento, e informação”, aponta Rafael.

 

Sociedade organizada


Para o presidente da Associação Terapêutica Cannabis Medicinais Flor da Vida, sediada em Franca – instituição com cerca de quatro mil associados que produz óleo, spray e pomada derivados de cannabis (por meio de um habeas corpus concedido em 2021) –, a resolução sustada demonstra a falta de interesse do CFM em pesquisa.

 

“Claramente há resultados positivos, que são desconsiderados. O que nos resta é continuar nosso trabalho de levantamento de dados”, afirma o presidente da associação, Enor Machado de Morais. Durante quase três anos, a associação trabalhou em desobediência civil, mas com inúmeras famílias a seu favor.

 

“Mesmo com essas resoluções ruins a gente não se intimida. Somos transparentes e continuaremos como um grupo da sociedade civil organizado e formado como resposta à omissão do Estado, servindo como modelo até para essas resoluções. E ainda que não sejamos ouvidos, a justiça vem sendo feita, por meio de juízes e promotores, que veem o trabalho sério que realizamos, entregando solução para pessoas que sofrem com patologias que podem ser tratadas com cannabis. Nossos resultados falam por si mesmos e um órgão como o CFM deveria ter mais técnica, pesquisa e preocupação com os pacientes antes de soltar uma resolução desatualizada como essa, sem uma consulta pública. Em se tratando de Saúde, isso jamais deveria acontecer. Por sorte, há profissionais corajosos, que se preocupam mais com o paciente e são comprometidos com a responsabilidade médica de salvar a vida e preservar a saúde”, finaliza Enor. 

 

Epilepsia


“Muitas pessoas ‘demonizam’o cannabidiol, mas se a Helena hoje tem qualidade de vida é devido a ele e, por isso, valorizo muito sua regulamentação, embora seja contra sua distribuição farmacêutica, porque acredito que isso mudaria sua composição e aumentaria o custo.

 

Ela tinha dificuldades de comunicação, socialização e terror noturno e por volta dos três anos diagnosticamos o autismo. Exatos 10 dias depois de começar a tomar o óleo de canabis com base em THC ela começou a falar e a sua alimentação melhorou. Após mais ou menos um ano e meio usando, ficamos sem condições de comprar e ela passou quase dois meses sem usar, então, teve uma crise convulsiva e descobrimos a epilepsia como uma comorbidade.

 

Retomamos o uso e ela nunca mais teve episódios. No caso dela nunca foi preciso outro medicamento e prefiro mil vezes aos efeitos colaterais de outros. Ela não fica dopada, aérea, não é alucinógeno, pelo contrário, ela fica muito mais concentrada. Mudou a vida dela e a nossa”,  Anália Foresto, mãe da Helena

 

Dor crônica

“Faço uso por conta de dor crônica e a dor deixa a gente muito depressivo. Tenho hérnia de disco e fibromialgia nos ombros, resultado de muito esporte ao longo dos anos. A diferença que sinto com o óleo é enorme.

 

Antes eu tomava Tandrilax um atrás do outro, o que afetava meu fígado, mas aos poucos fui tirando o remédio convencional e hoje não tenho mais dor, faço uso continuo apenas para manutenção. Não é como um remédio convencional, não melhora de um dia para o outro, é um fitoterápico, que vai agindo aos poucos, melhorando com o tempo, e me ajudou muito na ansiedade por conta da dor”, Moss Abreu

 

Fibromialgia

“Eu já havia testado outros medicamentos, que me levaram a engordar, deixaram meu metabolismo desacelerado e me tornaram apática. Com o canabidiol não tinha mudanças de humor, tinha mais disposição para realizar todas as minhas tarefas e conseguia dormir melhor.

 

Minha ansiedade ficou mais sob controle e as dores da fibromialgia foram amenizadas. O óleo foi o melhor medicamento que eu testei até agora para essas doenças e só precisei parar o tratamento por estar gestante. Infelizmente, por conta de todo atraso e preconceito com esse medicamento, ainda não existem estudos definitivos sobre seu uso na gestação, mas após a amamentação pretendo voltar ao tratamento porque foi o que melhor se ajustou às minhas necessidades”, Thaís Foresto.

 

Autismo

“Tenho um filho autista de sete anos que a cinco faz uso do óleo. Consegui uma liminar e o fornecimento do CDB isolado está sendo feito pelo poder público em Ribeirão Preto. Ele possuía diferentes atrasos e problemas comportamentais e teve uma melhora significativa, a ponto de transitar pelo espectro, passando de um grau severo para um grau moderado em menos de três anos de tratamento.

 

Atualmente, ele é considerado um autista moderado, sem deficiência intelectual, com capacidade de aprendizagem, mas corre o risco de ter sua terapêutica canábica interrompida se essa resolução for mantida. Me parece muito mais uma decisão política/ideológica do que voltada à Saúde. E o resultado é que o que já era difícil, principalmente para quem não tem condições, poderá ficar ainda pior”,  Flávia Oliveira, mãe do Marco Antônio.

 


Fotos: Revide/ Reprodução

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