Reforma na prática

Reforma na prática

Advogado tributarista Fábio Calcini comenta sobre as principais mudanças da Reforma Tributária e suas impressões sobre os limites dessa proposta

Depois de décadas de discussão, a Câmara dos Deputados aprovou, no dia 7 de julho, a primeira fase da Reforma Tributária. No momento, o texto está no Senado, onde a previsão é que a votação seja concluída até o final de outubro. Para comentar as principais mudanças propostas, a Revide entrevistou o advogado Fábio Pallaretti Calcini, sócio de Brasil Salomão e Matthes Advocacia, com atuação na área tributária e especialista em tributação no Agronegócio. 

 


O projeto traz diversas inovações, entre elas, a extinção dos tributos federais IPI, PIS/PASEP e COFINS, bem como o ICMS dos estados e o ISSQN dos municípios. Em substituição, será instituído o IS (Imposto Seletivo) e a Contribuição de Bens e Serviços (CBS), de competência da União, e o IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), dos estados e municípios. Para o advogado, as alterações propostas pela reforma, “embora não sejam suficientes para concretizar o tratamento tributário que há de ser dado ao setor, ao menos, atenuam as pretensões iniciais que muito o prejudicavam, com brutal aumento da carga tributária”, pontua. Confira o conteúdo completo:

 

 

Quais são as principais mudanças das Reforma Tributária para o Agronegócio?

 

No regime atual, o Agronegócio é tributado pelo ICMS e PIS/COFINS, todavia, existem diversos incentivos fiscais que concedem créditos, reduções, isenções e alíquotas reduzidas. Tudo com o objetivo de resguardar o necessário tratamento diferenciado e favorecido ao setor, não somente por ser uma determinação no texto constitucional, mas por sua própria essência, seja pelas peculiaridades de sua atividade, como pelo fato de que a atividade principal envolve a produção de alimentos, algo essencial ao ser humano. Convém destacar que haverá um regime diferenciado ao setor, mediante a aplicação de uma alíquota reduzida em 60% da alíquota padrão dos tributos IBS e CBS, a ser disciplinada por Lei Complementar, sendo aplicável para as operações com ‘produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura’ e ‘insumos agropecuários e aquícolas, alimentos destinados ao consumo humano e produtos de higiene pessoal’. Este mesmo artigo ainda prevê uma redução de 100% na alíquota padrão para produtos hortícolas, frutas e ovos. Além destas reduções de alíquotas resultantes do regime diferenciado, quanto ao produtor rural, não serão contribuintes do IBS e CBS, desde que auferia receita anual inferior a R$ 3,6 milhões. Nestas hipóteses, não serão contribuintes, salvo se optarem. 

 

 

Em sua experiência no campo do Direito Tributário, quais são os desafios mais comuns enfrentados pelo Agronegócio nesse segmento?

 

São vários, começando pelo equivocado entendimento e preconceituoso no sentido de que o segmento não paga tributo. Não é uma verdade. A cadeia do Agronegócio contribui em arrecadação na mesma proporção que participa do PIB, em torno de 23%, sem contar que gera renda, desenvolvimento e empregos. O desafio se dá ao se notar que as autoridades, ao interpretarem e aplicarem as leis tributárias voltadas para o setor, buscam, com frequência, impedir o gozo de direitos previstos na legislação, tendo a premissa equivocada de que seria um privilégio. Os desafios estão desde a falta da adequada tributação e aplicação da legislação ao setor, bem como medidas restritivas que, por exemplo, impedem o gozo de créditos ou ressarcimento de tributos não cumulativos, como ICMS e PIS/COFINS, além da própria complexidade pela quantidade de regimes diferenciados e formas de apuração dos tributos.

 

 

Atualmente, a alta carga tributária que incide sobre o consumo pesa mais sobre os mais pobres, que comprometem a maior parte da sua renda em alimentos e itens básicos de sobrevivência. Em contrapartida, o imposto sobre a renda não tem um peso proporcional sobre a renda do extrato mais rico da sociedade. A reforma tributária proposta conseguirá resolver esse problema?

 

De fato, embora exista controvérsia, existe entendimento de que um sistema tributário mais justo, tributaria menos o consumo e mais a renda. O grande problema no Brasil, na prática, é que, ao mesmo tempo que não pretendem tributar de forma reduzida o consumo – basta ver que há risco nesta reforma tributária de termos o IVA mais alto do mundo –, existe a pretensão de se aumentar as faixas de tributação da renda. Embora ajustar esta regressividade seja um caminho razoável, o que realmente precisamos em nosso país é um Estado melhor administrado, que contribua para um efetivo desenvolvimento econômico, onde cada cidadão posso ter renda capaz de não depender de auxílios estatais e, por conseguinte, seu consumo representar proporcionalmente menor parcela de seus rendimentos. Sem isso, tais mudanças tributárias não trarão o que se pretende. Somente aumentará, possivelmente, a dependência do Estado dos menos favorecidos e gerará maior peso tributário àqueles que possuem uma renda um pouco maior, especialmente, a classe média brasileira.

 

 

Imposto Seletivo Federal (IS), o “imposto do pecado”, que incidirá produtos danosos à saúde, ou ao meio ambiente, é inspirado em outras experiências parecidas em outros países, como o “Sin Tax”, nos Estados Unidos. Esse tipo de medida consegue, de fato, desestimular o consumo desses produtos? Qual o possível impacto econômico? Este possível tributo federal tem gerado muita preocupação do setor produtivo, pois o que ‘efetivamente’ é danoso à saúde ou ao meio ambiente?

 

Existe uma abertura por meio deste texto para se tributar, sem limites, a mais variada quantidade de produtos, torando-se mais um tributo de cunho arrecadatório do que extrafiscal, como instrumento de desestímulo de certas condutas. Embora possa parecer um imposto interessante, pode, com muita facilidade, especialmente, no Brasil, tornar-se uma panaceia para as necessidades de arrecadação de governos que não têm limite de gastos. Seria mais razoável e adequado que este imposto seletivo já tivesse uma limitação mais expressa dos bens a serem passíveis de tributação, pois, em outros países que adotam algo semelhante, normalmente, estão voltados para os combustíveis fósseis, fumo e bebidas alcoólicas. 

 

 

Muito se fala que a Reforma Tributária acabará com o problema da cumulatividade de impostos. Poderia explicar melhor esse fenômeno e se a Reforma dará conta de resolver essa questão?

 

Se pensarmos que um produto, seja qual for ele, passa por diversas etapas econômicas até chegar ao consumidor fiscal, durante todo este ciclo, em tese, temos a cobrança de tributos sobre tais operações. E a cada etapa que surge, o tributo é exigido na cumulatividade, sem levar em consideração se naquelas anteriores já houve a tributação.Para se evitar esta cumulatividade e dar neutralidade a cada uma das etapas, concede o legislador um crédito à luz do tributo já incidido no momento anterior, a fim de somente exigir o tributo do que se agregou de novo. O grande problema é que, na prática, o legislador, e até mesmo aqueles que aplicam as leis, criam restrições ou vedações aos créditos que podem ser abatidos, impedindo uma não cumulatividade plena. Neste aspecto, apesar de ainda merecer ajustes o texto, a Reforma Tributária busca uma sistemática de crédito amplo, sendo um ponto positivo se aplicada como se pretende.

 


A Reforma Tributária prevê inclusão de cobrança de IPVA para veículos aquáticos e aéreos, como jatos, helicópteros, iates e jet skis. Como avalia essa mudança?

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) já havia decidido de longa data que tais ‘veículos’ não estavam sujeitos ao IPVA, vindo esta mudança a fim de ampliar o campo de possível cobrança deste imposto pelos Estados. Em regra, por se tratar de uma forma de aumento da tributação, confesso que não vejo com bons olhos. A Reforma que todos buscam é da redução da carga fiscal e da simplificação. Mas, infelizmente, este não nos parece ser o principal propósito, como se pode notar por esta alteração. Não negamos que muitos destes itens são considerados de ‘luxo’, havendo o entendimento de que seria injusto não tributar. Lembrando que tivemos uma grande vitória, pois a Frente Parlamentar do Agro (FPA) conseguiu impedir o IPVA sobre aeronaves agrícolas, tratores e máquinas agrícolas.

 

 

Outro ponto importante é a cobrança progressiva do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), aplicado nos casos de herança. Essa mudança aponta para uma tributação mais igualitária no país?

 

Na verdade, esta alteração no texto constitucional para o ITCMD, estabelecendo a progressividade, não traz uma novidade. Nas últimas estimativas, ao menos 15 estados se utilizam da alíquota progressiva, variando entre 4% até 8%, havendo algumas faixas e hipóteses de isenção. O tema sobre a progressividade era controvertido, todavia, o STF reconheceu a constitucionalidade. A emenda na Reforma vem para acompanhar este posicionamento. Apesar de não ser uma novidade, notamos um aumento na procura de assessoria jurídica para a estruturação de patrimônio visando a sucessão, a fim de evitar algumas tentativas de majoração da carga fiscal. Embora a previsão de tributar quem tem maior patrimônio seja uma forma de cumprir a capacidade contributiva, toda mudança visando majoração de carga fiscal desperta certa rejeição, especialmente, em nosso país, pois, infelizmente, não é de hoje que a todo momento temos notícia de ineficiência com o dinheiro público, quando não é algo pior como, por exemplo, corrupção. 


Foto: Luan Porto

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