Relatos de um conflito

Relatos de um conflito

Judeus e palestinos que chegaram recentemente a Ribeirão Preto contam como deixaram suas cidades, em Israel e na Palestina

O acirramento recente do conflito no Oriente Médio tem resultado em milhares de mortes e em um significativo aumento no número de refugiados, cada um com sua própria história triste de guerra para narrar. Entre elas, está a do casal formado pela brasileira Luiza Peri e o israelense Gustavo Peri, judeus com uma vida construída no Centro de Tel Aviv, em Israel, que precisaram abandonar tudo – casa e loja montadas, emprego estável, parentes e amigos –, para voar para o mais longe possível do conflito. No Brasil, estão hospedados na casa da mãe dela, em Ribeirão Preto, e compareceram à manifestação “Todos por Israel”, realizada na Esplanada do Theatro Pedro II, no início do mês.


“Pegamos o suficiente para um dia. Chegamos com uma mala só”, descreve Gustavo com um português carregado de sotaque. “Esperava que tudo fosse passar rápido. Imaginava que em duas semanas eles devolveriam os reféns e ficaria tudo bem, mas já passou mais de um mês e eu não posso mais fazer uma viagem tão longa”, reclama a jovem, que está grávida de sete meses do primeiro filho do casal. Essa foi a principal razão para terem tomado a difícil decisão de deixar Israel com o acirramento do conflito. A outra foi a convicção de que, atualmente, não corre risco de morte apenas quem está na Faixa de Gaza.


“O ano todo teve ataques terroristas. Várias pessoas morreram, tanto em Tel Aviv quanto em Jerusalém. Todo feriado judaico tinha algum, mas como geralmente era um terrorista, as pessoas acabavam conseguindo imobilizar. A diferença, agora, é que o do dia 7 foi um massacre”, relata Luiza.


No sábado fatídico do ataque do Hamas, o casal lembra de ter começado a receber mensagens sobre o que ocorria no sul de Israel logo que acordou. “A gente ainda não sabia nada do que estava acontecendo, mas vimos as fotos que eles fizeram. Começaram a postar crianças, a filmar tudo”, conta Gustavo. O casal também tinha amigos na festa com 3.500 pessoas invadida pelos terroristas, da qual foram levados alguns dos cerca de 240 reféns feitos pelo Hamas. Uma jovem que estudou com a irmã de Gustavo está entre eles. “É uma menina de apenas 22 anos”, diz Luiza. 


A maioria dos amigos do casal está lutando no exército israelense. “Meu primo está lá, muitos amigos também. Situação difícil! Saber e ver essas coisas deixou a cabeça da gente bem bagunçada”, lamenta Gustavo. O casal logo percebeu que tinha de agir rápido, pois os voos poderiam ser suspensos a qualquer momento. Entraram em contato com a Embaixada do Brasil em Israel, explicaram que ela estava grávida, e a diplomacia brasileira agilizou tudo.


Apesar de o casal ter aqui a sensação de segurança que não estavam tendo por lá ultimamente, Luiza não está em paz com a ideia de dar à luz em Ribeirão Preto, quando tinham tudo planejado em Tel Aviv. “Eu achei que quando viesse para o Brasil ia melhorar, mas daqui eu vi que é uma coisa com uma dimensão bem maior do que eu imaginava, porque não só pessoas de Israel foram mortas, mas de todo o mundo”, lamenta. Com a vida em suspenso, o casal segue por aqui sem saber quando poderá voltar para casa ou como – e se – conseguirá retomar o cotidiano estruturado de antes.

 

Barrados no aeroporto


Entre as 32 pessoas que conseguiram deixar a Palestina em um voo da FAB (Força Aérea Brasileira), no dia 2 de novembro de 2023, estavam oito familiares da farmacêutica esteta e professora universitária Samia Jalil, de ascendência palestina. Duas semanas antes, eles haviam sido impedidos de pegarem seus voos de volta ao Brasil por autoridades israelenses, simplesmente por serem palestinos. 


De família muçulmana, Samia mora atualmente em Ribeirão Preto, mas tem pais, tios e primos vivendo entre o Brasil – em Foz do Iguaçu e no litoral de Curitiba – e a Palestina, na região de Ramallah. Uma parte deles estava na cidade de Abu Falah desde julho, passando uma temporada com a parte da família que vive lá. Com o voo de volta ao Brasil marcado para o meio de outubro, todos já tinham despachado suas bagagens quando foram proibidos de embarcar, no dia programado. 


Seguiram-se mais de duas semanas de espera por uma oportunidade de voltar ao país. Durante esse tempo, a família de Samia procurou ficar retirada dentro de casa, para não se expor a riscos. Não chegaram a sofrer grandes privações, como as que a população da Faixa de Gaza está enfrentando — escassez de água, alimentos, entre outros insumos essenciais à sobrevivência. Ao menos não mais do que quem vive na Palestina já está habituado, segundo a professora. “Lá tudo é precário o ano inteiro. Água, por exemplo, é restrita. Não é como aqui que se pode tomar banho quente de 10 minutos”, descreve. Hospitais bem equipados também são poucos, o que obriga grande parte da população a se locomover muito para conseguir certos tipos de atendimento. “Isso quando Israel não opõe alguma barreira impedindo palestinos de ir e vir”, acrescenta.


Pelo final de outubro, os parentes de Samia ficaram sabendo sobre o avião da FAB que, em missão humanitária, havia deixado alimentos em Gaza e estava se preparando para voltar ao Brasil. Imediatamente entraram em contato com a Embaixada do Brasil e conseguiram autorização para embarcar. Foi um alívio parcial, porque permanece a preocupação com a parte da família que vive na Palestina e não pensa em deixar suas vidas lá. “Se meus parentes correm risco de morte? Isso é uma coisa rotineira para quem vive na Palestina, mas agora eles estão do lado de um conflito, né?”, avalia a professora. “Não é porque os ataques estão acontecendo a 100km, 200 km, na Faixa de Gaza, que não pode ocorrer de explodir alguma coisa onde está minha família. Este é um risco que todos correm estando lá”, acrescenta, preocupada.


Fidelidade às raízes


A professora Samia conta que os avós, tios e seus pais – cujos nomes ela prefere preservar –, vieram para o Brasil no século passado em busca de oportunidades de trabalho que lhes propiciassem sustentar-se por aqui e sustentar a parte da família que deixaram na Palestina. Dois de seus tios, por exemplo, vivem aqui tocando seus negócios no comércio, mas mantêm por lá as esposas e os filhos menores, para serem criados na cultura árabe muçulmana — uma forma de preservarem suas raízes e identidade cultural. Então, é comum eles irem passar temporadas do ano por lá, para curtir os familiares.


Desta vez, além de ver a família, um dos tios de Samia foi casar por lá um dos filhos, que mora e trabalha com ele no Brasil. Partiu com ele um grupo formado pela mãe de Samia, outro tio seu, o primo que foi se casar e uma prima casada junto com o marido, os dois filhos e os sogros. O casamento aconteceu em agosto. Um de seus tios e a mãe voltaram em setembro para o Brasil, mas os demais quiseram ficar por lá mais um pouco. Na volta ao Brasil, a esposa de um dos tios, que cria os filhos na Palestina, embarcou junto para passar uma temporada com o marido no Brasil. Ou seja, apesar de separados por um oceano, os casais estão sempre planejando formas de passarem temporadas juntos.


Os filhos homens que crescem na Palestina, quando atingem certa idade, são enviados para trabalhar nos negócios da família no Brasil. Apesar dos pais preferirem que eles se casem dentro da cultura, não é uma imposição. Criadas para serem esposas, as mulheres podem escolher com querem se casar, fazer faculdade e usar ou não o hijab (véu com que as muçulmanas costumam proteger a cabeça) ou burca (vestimenta que deixa apenas os olhos aparentes). “As pessoas costumam achar que todo muçulmano é radical, o que é um erro”, explica a professora.


De uma coisa os mais velhos da família de Samia não abrem mão: viver seus últimos anos na terra de seus antepassados. “O árabe quer voltar à sua pátria, morrer lá. Praticamente todos os meus avós, no final da vida, retornaram para aproveitar os últimos momentos no país natal. Eles criaram uma vida no Brasil, amando a cultura brasileira, mas não esqueceram suas raízes. Meus pais, sempre que podem, também vão passar uns tempos lá e seguem a religião mesmo estando aqui”, conta Samia, que também faz questão de introduzir o filho, Riad Jalil, de 9 anos, na cultura de seu povo. 


A professora fez questão, inclusive, de levar o filho para participar com ela do ato “Cessar Fogo Já”, que reuniu no calçadão de Ribeirão Preto, no último dia 11 de novembro, dezenas de palestinos e descendentes radicados na região. Quer que ele se inteire desde cedo sobre o que ocorre com o próprio povo, sobre o valor de estar vivo e o quanto o Brasil é bom, por não ter guerras. “Quero que ele proteste comigo pelas vidas de crianças que estão lá. Se as pessoas souberem quantas crianças já morreram nessa guerra! Enfim, quero que ele se envolva com nossa cultura porque, depois que meus pais morrerem, não quero que a cultura, hábitos e palavras de nossa família se percam. Nós, árabes, somos muito um pelo outro”, conclui Samia.

 

Sem acordo


Com relatos semelhantes de perdas e medo, judeus e palestinos seguem com discursos diametralmente opostos quando comentam o atual acirramento do conflito entre seus povos.


O casal de judeus, Luiza e Gustavo, se diz contrário ao atual primeiro-ministro de Israel no poder, Benjamim Netanyahu, mas aprova a forma como ele tem conduzido a contraofensiva israelense na Faixa de Gaza. “Não acho que ele tem muita escolha agora. É a vida da gente, que precisa viver lá, que está em jogo. A gente está agora assistindo nos jornais do Brasil, onde as pessoas não sabem a realidade. Elas veem só um lado. Israel tem um exército forte, mas está fazendo tudo isso para essas coisas não acontecerem de novo, e de tudo para não prejudicar pessoas inocentes”, justifica Gustavo. “Não são ataques a sangue frio [feitos por Israel]. São ataques colaterais, mas as pessoas são avisadas para se retirarem antes. Não tem outra opção, porque se você deixar o inimigo crescer mais, o que poderá ser feito? Eles cortaram cabeças de crianças, violentaram mulheres e idosas”, defende Luiza.


Ambos fazem questão de frisar que o Hamas, responsável pelo ataque de 7 de outubro, não representa todos os palestinos. “Isso é muito claro para nós”, afirma Luiza. “Eu tenho amigos árabes palestinos, árabes israelenses, cristãos”, emenda o marido.


Para os palestinos, Israel é liberal só para os israelenses. Samia concorda. Para ela, além de oprimir os palestinos, instalando assentamentos em terras onde estes viveram por mais de 19 séculos, os judeus no poder tentam fazer uma limpeza étnica por toda a Palestina para poderem ficar com toda a terra. “É como se estivessem descaracterizando meu povo, como se nós fôssemos os culpados pela ocupação que eles promovem. Perdemos a liberdade e isso nos faz reféns”, afirma.


Para ela, o conflito envolveu religião no passado, mas hoje é exclusivamente motivado pela posse das terras palestinas. Samia também acredita que as pessoas precisam ver o contexto em que o atual conflito ocorre e que vem de muitos anos, desde a criação do estado de Israel, em 1948 [leia Cronologia dos Conflitos], quando muitos palestinos foram expulsos de suas terras por judeus sionistas [veja glossário]. “A nossa luta é para ter liberdade, para ter direito de ir e vir aonde se mora”, conclui. 


Fotos: Yara Racy

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