
Remédios para a Crise
Com passagens pela administração de serviços públicos de saúde, especialistas avaliaram a situação atual da saúde no município
Com passagens pela administração de serviços públicos de saúde, o ex-superintendente do Hospital das Clínicas, Marcos Felipe de Sá, e os ex-secretários municipais da saúde, José Sebastião dos Santos e Oswaldo Franco, avaliaram a situação atual da saúde no município, compartilharam idéias, experiências e apontaram soluções para o caos que tomou conta da área em Ribeirão Preto.
Entre as principais pastas da administração municipal, a saúde não sai da pauta dos noticiários por enfrentar uma grave crise, sem precedentes da história da cidade. Em 19 meses, a Secretaria da Saúde está com seu segundo gestor. Nesse período, a cidade sofre as consequências de uma epidemia de dengue, um descontentamento generalizado dos servidores públicos da saúde, greve, filas e enormes dificuldades para internar pacientes.
Ex-secretário da Saúde, o professor do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina da FMRP-USP, José Sebastião dos Santos, permaneceu na Secretaria da Saúde por 18 meses entre 2005 e 2006 e também enfrentou situações de crise, principalmente, segundo o médico, por tentar modificar a gestão de saúde no município. O ex-secretário foi sucedido pelo ginecologista Oswaldo Franco, ex-docente da especialidade, que fez um esforço para retomar o bom relacionamento com os profissionais da saúde, função que desempenhou até o final do mandato do ex-prefeito Welson Gasparini. O também ginecologista Marcos Felipe de Sá ocupou a superintendência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP) de 1995 a 2003. Nesse período, coordenou o serviço do Hospital Universitário, e procurou modificar processos, principalmente no que se refere ao acesso aos serviços do HC. A administração pública da saúde foi o tema da conversa dos especialistas que, neste debate, avaliaram a situação e apresentaram propostas para superar a crise.
1. Situação atual
Oswaldo: “Atribuo a responsabilidade pela situação que vem sendo enfrentada na Secretaria à prefeita. A Dárcy Vera fez uma campanha cheia de promessas e elencou a saúde como prioridade. Depois de eleita, esteve em vários eventos médicos em que reafirmou sua disposição para resolver os problemas da pasta, reconhecendo que os médicos eram o elo frágil financeiramente dessa corrente. Com isso, não só os médicos, mas todos os profissionais da saúde, esperavam uma melhoria nas condições de trabalho, não só em relação ao salário, mas também à estrutura dos postos e de outros aspectos. A situação piorou drasticamente porque não existe um real compromisso da prefeita em assumir as promessas feitas. A Dárcy Vera levou muito tempo contemporizando e pedindo voto de confiança, mas o que foi prometido para três meses, depois para seis meses, em 18 meses não foi resolvido.”
Marcos Felipe: “O problema de Ribeirão Preto é bem complexo, já que a cidade é um polo médico regional. No entanto, a saúde possui uma infraestrutura muito boa, com deficiências, evidente, mas melhor do que muitos outros municípios. As unidades de saúde, por exemplo, precisam ser melhoradas, adequadas do ponto de vista arquitetônico e de funcionalidade. Mas o problema mais grave remete aos recursos humanos, há um grande conflito no processo de gestão. Vejo com muita reserva o fato de todos os profissionais da saúde terem um tratamento salarial isonômico. A formação do profissional médico demanda muito investimento. Agora, só pagar bons salários sem exigir qualidade é outro aspecto que precisa ser revisto. É preciso cobrar performance dos profissionais, já que cada um tem suas obrigações. É necessário prestar contas à sociedade, que paga por isso.”
Sebastião: “O cenário da saúde municipal sempre foi de crise. Hoje tem se falado em caos porque realmente a situação se agravou. Assim como ocorre em outras cidades, a Secretaria da Saúde não tem a devida autonomia. Na verdade, o órgão é um grande balcão de negócios, com solicitações que vem de todos os pontos: do executivo, que traz demandas completamente fora do contexto da saúde; do legislativo; do sindicato e das corporações, tanto médicas como das indústrias do segmento. Outro entrave é que a Saúde depende muito de outras secretarias. Para se montar uma estratégia de trabalho, é preciso passar pela Secretaria de Governo, da Administração, de Negócios Jurídicos, da Fazenda, além de enfrentar o executivo e o legislativo. Essa gestão não é diferente das outras. Um grupo de profissionais se beneficia dessa desordem. Manter essa forma de trabalho pode ser bom para muitos profissionais. Mas agora criou-se um desentendimento entre médicos que trabalham em diferentes pontos do sistema que não têm esses benefícios. O conflito surgiu e o município está sendo pressionado.”
2. Verbas e recursos
Oswaldo: “Na verdade, existe um hipofinanciamento do dinheiro público, particularmente, da verba do Governo Federal. A saúde de Ribeirão Preto, comparativamente, é boa, melhor do que em muitos outros estados e até de cidades da região, só que não é suficiente para todos, já que a população aumentou muito. Temos graves falhas em algumas áreas em particular, por exemplo, no atendimento ao idoso. Há pacientes morrendo e não há como internar, não por falta de leitos, mas por deficiência na distribuição. Faltam leitos específicos, como nas Unidades de Terapia Intensiva. Os hospitais não querem trabalhar com o valor pago pelo Sistema Único de Saúde, nenhuma instituição de saúde sobrevive com esses recursos irrisórios. Nenhum hospital tem interesse em atender.”
Marcos Felipe: “Tem um estudo feito pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Administração (Inepad) que analisa a estrutura municipal de saúde. Das cidades de mesmo porte, Ribeirão Preto é a que mais disponibiliza dinheiro per capta para a saúde, são mais de R$ 1.500,00 por mês! A Prefeitura encaminha mais de 20% do seu orçamento para a Saúde. A USP e o Estado dão uma contribuição considerável, incluindo Hospital das Clínicas; Hospital Estadual; Matter, hoje referência em Saúde da Mulher; Centro de Saúde Escola da rua Cuiabá, em grande parte financiado com recursos que não são da Prefeitura. O Hospital das Clínicas, que tem hoje em seu conjunto, entre unidades de emergência e o campus, quase 900 leitos, poderia ser melhor aproveitado pela cidade. São recursos adicionais ao município. Imagine uma cidade do tamanho de Ribeirão Preto que não tem as demais estruturas oferecidas aqui, como fazem para dar conta da demanda? Está faltando um maior grau de engajamento da administração. Falta adequar esses recursos.”
Sebastião: “Sempre faltarão recursos para a saúde. No entanto, comparativamente, Ribeirão Preto e região são privilegiadas. O aporte de todos os municípios, por exemplo, é superior a 15% da verba do orçamento. Mas não adianta se orgulhar de uma estatística que não traz benefício. O dinheiro está sendo jogado fora. Há desconformidades sanitárias e estruturais. Com o dinheiro disponível, é fácil fazer ajustes arquitetônicos e tecnológicos. O grande desafio é a gestão dos recursos humanos. A solução não passa por disponibilizar mais dinheiro — quando se faz isso e não há resultado, algo está errado. Temos recursos, mas primeiro devemos fazer uma boa gestão para saber onde investir.”
3. Conflito de interesses
Oswaldo: “Interesses econômicos existem e interferem na gestão, não só aqui, mas em qualquer lugar. Para que isso seja resolvido, precisa haver uma atuação a médio e longo prazos, e o interesse do prefeito se limita aos quatro anos de sua gestão. Por que investir em programas de longo prazo se têm pacientes morrendo na porta do pronto-atendimento? Interferem, principalmente os interesses políticos e corporativos, sobretudo da indústria farmacêutica. Para trabalhar nessas condições, é preciso dar um jeitinho aqui, um jeitinho ali. Para melhorar a relação com os médicos, por exemplo, primeiro a prefeita deveria cumprir as promessas de campanha. Deve-se pensar na diferenciação salarial conforme a função desempenhada, com a possibilidade de progressão para todos. É claro que existe a enorme pressão do Sindicato dos Médicos, pois não é possível fazer essas modificações para todos os setores públicos ao mesmo tempo. É preciso eleger prioridades e o médico é a primeira. Perdemos todos os médicos que saíram da Faculdade de Medicina preparados para trabalhar com saúde da família, por exemplo, porque não existe esse tipo acordo. É preciso melhorar o pessoal, os médicos em primeiro lugar, acabar com a isonomia. Hoje, todos os profissionais da saúde com nível universitário ganham igual, o que não é justo.”
Marcos Felipe: “A interferência de interesses corporativos vale não apenas para o setor público. Em hospitais privados e também nas prestadoras de planos de saúde existem conflitos enormes. Algumas portarias do Ministério da Saúde são questionáveis porque impõem procedimentos absolutamente dispensáveis para diagnóstico ou acompanhamento. Existem pressões da indústria de equipamentos e da indústria farmacêutica. Isso vale para setores privados também. Na gestão pública, isso não deveria existir. Há leis e regulamentos para inibir essas ações. O que julgo mais importante na rede municipal de saúde é a capacitação das pessoas. Não estou falando só do profissional das atividades fins, como o médico e o dentista. Refiro-me as pessoas que trabalham nas atividades meio, daqueles que organizam o serviço. Quando criamos a central de agendamento para o HC através das regionais, disponibilizamos todas as agendas às regionais e deixamos de marcar pacientes diretamente. No entanto, os resultados foram os seguintes: 30% das agendas não são preenchidas; em 20% dos agendamentos, o paciente não comparece; dos 50% restantes, 20% são mal encaminhados. Resultado: perdemos 70% dos agendamentos. Isso chama-se gestão. Agora é preciso trabalhar para melhorar esse índice, mas isso acontece, basicamente, porque as regionais colocam para fazer a triagem e o agendamento pessoas que não são médicas, que não estão preparadas para distinguir uma situação grave de uma simples. Isso tem que mudar. Até hoje esse projeto implementado em 2000 tem falhas, mas já houve melhorias.”
Sebastião: “Esse lobby é normal, no bom sentido. Agora, o setor público precisa ter controle suficiente para colocar os devidos limites. No entanto, não há agentes públicos que consigam impor esses parâmetros. Sofri muita pressão de laboratórios. Com a organização que montamos, reduzimos o número de exames contratados, o que não era de interesse dos prestadores desse serviço. Quando organizamos a atenção básica, sofremos também com a resistência dos profissionais que não queriam ir para o posto de saúde. Os hospitais, por sua vez, só internavam pacientes de determinadas doenças, as que dão mais lucro. O município precisa usar a experiência do HC, por exemplo, e regular o acesso às unidades de saúde, aos hospitais e aos laboratórios. Além disso, o médico do sistema municipal precisa mostrar porque este ou aquele procedimento é necessário. Essas ações podem provocar grande economia de recursos. O projeto de saúde em si também é muito importante. Resolver os problemas pontuais não deve ser sua única função, pois é preciso estabilizar a saúde a médio e longo prazo. Os principais culpados pela bagunça dos acessos ao sistema de saúde municipal somos nós, que não organizamos os procedimentos e não explicamos isso à população. É preciso ter agente público bem remunerado, comprometido com um conjunto de valores que diga o seguinte: ‘isso aqui é o Estado, que existe para defender o interesse da população e eu sou um agente público’. Se o prestador seleciona o que quer atender, não serve. É o gestor quem tem que determinar o serviço que será prestado, não o próprio prestador.”
4. Soluções
Oswaldo: “É importante ressaltar que o relacionamento com os hospitais melhorou muito nos últimos tempos. Lentamente, os relacionamentos evoluíram. Existe um plano de gerenciamento na sala do secretário da saúde que informa até a movimentação das ambulâncias e pode direcionar o serviço. Aos poucos, a saúde pode melhorar. Para resolver a situação atual, é preciso ter profissionais qualificados ganhando o suficiente para realizar bem sua tarefa. Se não tem um médico na regulação fazendo um bom encaminhamento dos pacientes, não vai haver um melhor aproveitamento do sistema. Para melhorar, como gestora e política, a prefeita deveria começar cumprindo as promessas de campanha, até para ganhar credibilidade.
Marcos Felipe: “Quando se escolhe um assessor diretamente vinculado à gestão, deve-se elaborar um programa de trabalho e dar apoio ao gestor. O que não pode acontecer é o secretário ser questionado a toda hora nas suas decisões, em seus projetos de saúde. A ingerência do executivo e do legislativo na Secretaria da Saúde é terrível e prejudica muito a cidade. O que deve prevalecer entre as prioridades da saúde é o investimento maciço na atenção básica à saúde. Para isso, é preciso investir em pessoal capacitado para prestar essa atenção. Quando falo em atenção básica, pode parecer uma medida simples. Talvez os procedimentos não exijam alta tecnologia porque é um trabalho médico feito com o estetoscópio e a conversa, as mãos, etc. Mas é extremamente complicado estruturar esse sistema no município. Precisamos de pessoas qualificadas para isso e, mais uma vez, esbarramos na questão da valorização. É evidente que a rede de saúde municipal é muito boa, mas precisa ser melhor adequada para atender às necessidades da população.”
Sebastião: “Existe uma necessidade de reformular a maneira de fazer saúde. Não é por falta de conhecimento das pessoas que estão lá ou passaram por lá, mas a conjuntura da saúde é muito desfavorável. Mudar a gestão é fundamental para que isso seja possível. Poderia se pensar em transformar a saúde em uma autarquia, criar uma fundação ou outra secretaria que não dependesse demais das outras, responsável pelos processos seletivos, contratações, licitações, deixando a saúde mais livre da burocracia da administração para trabalhar melhor. Fortalecer a atenção básica e as estratégias são as saídas para melhorar a saúde da população a longo prazo. Isso tem que ser uma prioridade.”
Texto: Luiza Meirelles | Fotos: Júlio Sian