Retrocesso social
Fila em frente ao restaurante Bom Prato, no Centro, antes da abertura para o horário de almoço

Retrocesso social

Estudos apontam que Brasil regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990; iniciativas em Ribeirão Preto fornecem apoio voluntário e sugerem políticas públicas para o problema da fome

Antes das 10 horas da manhã de uma segunda-feira, a fila já era extensa em frente ao restaurante Bom Prato, no Centro de Ribeirão Preto. O cardápio do almoço, afixado no portão, indica que a refeição terá arroz, feijão, carne moída com legumes, macarrão ao alho e óleo, salada de alface e mexerica de sobremesa. Tudo isso por um real. O local, que faz parte de um programa estadual que fornece refeições a um custo acessível, abre as portas às 10h30. Esperando do lado de fora, há pessoas em situação de rua, idosos, trabalhadores de empresas da região e mães com filhos. A faxineira Nilda Gonçalves Gomes, de 52 anos, preferiu almoçar no restaurante porque seria mais barato e voltaria para casa de “barriga cheia”. Ela ainda comentou que os preços dos alimentos aumentaram muito e que não consegue comer carne todos os dias em casa. “A gente faz omelete, faz salsicha, porque é mais em conta. Está tudo caro, até as frutas. Mas tenho esperança de dias melhores. Até porque, se perder a esperança, como é que faz?”, questiona Nilda. 


O gestor do Bom Prato do Centro de Ribeirão, Manuel Monte Campana Filho, explica que o projeto original do restaurante tinha como foco pessoas em situação de rua e idosos. No entanto, com a pandemia, o aumento do desemprego e a disparada no preço dos alimentos houve maior procura de outros públicos, como pessoas com deficiência, moradores da região e trabalhadores do comércio. “O que tem chamado bastante a nossa atenção e foi até alvo de uma pesquisa é que até moradores de cidades vizinhas, como Brodowski, Batatais, Serrana e Franca, passaram a vir aqui comer. O pessoal pega o ônibus e vem almoçar, por exemplo. Também houve um aumento de crianças com suas famílias”, detalha. Ele conta que, na época das restrições maiores por conta da pandemia, os clientes diminuíram bastante por medo de contágio do coronavírus e o restaurante não batia a meta imposta pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social. “Agora a meta é de 300 cafés da manhã, 1.750 almoços e 300 jantares. Não podemos passar disso, porque é a quantidade determinada no convênio. Quando atingimos a cota, com dor no coração, encerramos o serviço. Porque acaba ficando gente de fora”, lamenta Campana.

 

AJUDA VOLUNTÁRIA


A ONG Anjos da Rua tenta combater essa dura realidade. A associação, sem fins lucrativos, foi idealizada há seis anos e desenvolve um trabalho de amparo à população mais carente de Ribeirão Preto com a distribuição de marmitas e de cestas básicas. Ao todo, são distribuídas 500 marmitas por semana e 150 cestas básicas por mês. “Atendemos alguns pontos dentro de Ribeirão Preto: Comunidade do Brejo, rua México e Avenida Brasil, na Vilinha da Caramuru, Comunidade Caixa D' Água, Comunidade Vila União. Com relação às cestas básicas, nossas listas têm famílias em vários bairros, sendo um número maior do que suportamos atender com os recursos que recebemos, sendo necessária a distribuição intercalada para não desfavorecer ninguém”, destaca Juliana Alencar, presidente e fundadora da ONG. Para fortalecer esse trabalho, ela pede doações para o projeto, que está localizado na rua Salvador Cosso 491, bairro Jardim Irajá. O telefone para contato é (16) 98200-1169. Nas redes sociais, o perfil é Anjos da Rua RP.

 


Segundo a secretária municipal de Assistência Social, Renata Corrêa, a pasta, por meio da Vigilância Socioassistencial, coleta e monitora dados das pessoas que estão inseridas no Cadastro Único do Governo Federal e das que são atendidas pelos serviços da Semas. Quem vive alguma situação de insegurança alimentar é atendido através das ações de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN), que envolvem a distribuição direta de alimentos e refeições, e indiretas, que viabilizam ou facilitam a autonomia das pessoas através da geração de emprego e renda. “O Banco de Alimentos é um dos serviços mais atuantes do município quando falamos em ações diretas de SAN, sendo responsável pela coleta, armazenamento e distribuição de alimentos para 50 Organizações da Sociedade Civil (OSC), que atendem, em média, cinco mil pessoas ao mês. Os alimentos são oriundos de contrapartida do Ceasa, de doações de supermercados varejistas e de ações realizadas em parceria com o Fundo Social de Solidariedade. De janeiro a agosto deste ano, foram doadas mais de 220 toneladas de alimentos através do banco”, ressalta. 

 


A secretária ainda elogia os trabalhos de organizações que entregam marmitas e cestas básicas às pessoas em situação de vulnerabilidade social. “Quando nos unimos somos mais fortes e vamos mais longe. Pode parecer clichê, mas quando se fala em assistência social, é a realidade. É natural do ser humano se sensibilizar com a necessidade do outro e a união entre o serviço público e as iniciativas da sociedade civil são de extrema importância na composição desse apoio. Temos nos colocado à disposição das lideranças desses grupos para articular ações coordenadas”, observa.


PROBLEMA COMPLEXO


Preocupados com as questões sociais da cidade, professores e pesquisadores da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto (FDRP), da USP, criaram o “Projeto Ribeirão Preto e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da ONU”, que realiza reuniões públicas de mobilização e debate sobre o processo de implementação desses objetivos no município e na região. De acordo com o coordenador geral do projeto e diretor da FDRP, professor Nuno Coelho, a iniciativa aproxima pesquisadores do campus de Ribeirão Preto e de toda a USP aos municípios de nossa região, com o objetivo de propiciar a reunião de esforços a favor do cumprimento das metas dos ODS da ONU 2030. “Realizado em parceria com a Prefeitura e a Câmara Municipal de Ribeirão Preto, e o Instituto Ribeirão 2030, estão sendo realizados seminários temáticos sobre cada um dos ODS. Na próxima etapa, serão criados canais de comunicação direta entre os grupos da USP que trabalham com os vários ODS, e os poderes públicos municipais de toda a região, para desenvolvimento de novas parcerias visando a resultados concretos das áreas de meio ambiente, educação, saúde, igualdade, combate à fome, direitos da mulheres, defesa da democracia, dentre outros”, explica.

 


Um dos objetivos de desenvolvimento sustentável da Agenda ONU 2030 é fome zero e agricultura sustentável. A presidente da Comissão de Pesquisa da FDRP e especialista em Direito Agrário, Segurança Alimentar e Food Law, Flavia Trentini, esclarece que o Brasil conseguiu sair do mapa da fome devido a um conjunto de ações de políticas públicas organizadas. “Diante do agravamento da insegurança alimentar, é necessário retomar ações para a implementação da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PNSAN). É urgente, nesse sentido: retomar, com a devida atenção orçamentária, os investimentos em programas de compras públicas de alimentos, disponibilizar políticas de assistência técnica e rural aos agricultores familiares, fomentando a prática de uma agricultura sustentável no campo e analisar a necessidade de instrumentos para períodos de desabastecimento de gêneros alimentícios”, especifica. 


Para a professora universitária e doutora em Sociologia, Elizabete David Novaes, não há dúvida de que no Brasil, e em outros países, a fome e da insegurança alimentar foram intensificadas pela pandemia bem como pelos impactos da atual guerra na Ucrânia. “Mas essa realidade já era pré-existente e agravou-se principalmente em decorrência da má gestão pública”, opina. Ela reitera que a fome exige ações imediatas, portanto, os municípios devem agir de maneira estratégica, criando mecanismos de suporte às populações vulneráveis. Elizabete defende que é fundamental que essas medidas se integrem a políticas públicas efetivas e continuadas. “Historicamente, nós não encontramos na realidade brasileira uma efetiva preocupação com o combate à fome. Com exceção de alguns movimentos e políticas pontuais, a alimentação precária sempre fez parte da nossa história, de modo que a vulnerabilidade alimentar permaneceu enraizada em nossa sociedade. E não é possível combater a fome e a pobreza exclusivamente com ações assistencialistas, pois trata-se de um problema estrutural que exige políticas públicas adequadas e consistentes, que sejam fruto de ações articuladas entre órgãos federais, estaduais e municipais”, enfatiza a socióloga.


Já a professora universitária e doutora em Serviço Social, Adriana Ferreira destaca que para combater a fome é preciso garantir direitos, entre eles alimentação adequada, preservação ambiental e promoção do bem-estar, não é simplesmente a reativação da economia. “O que vemos atualmente são vagas de emprego com salários mais baixos ou subempregos. O Brasil é um grande produtor de alimentos, mas as pessoas não têm acesso a eles. É preciso fortalecer políticas públicas e econômicas, ter programas de transferência de renda, oferecer merenda escolar de qualidade comprada localmente para fortalecer as comunidades tradicionais, além de controle social e transparência”, detalha Adriana.

 

ALIMENTAÇÃO

 


A nutricionista clínica e docente da Estácio Ribeirão Preto, Ana Carolina Port, explica que a insegurança alimentar é quando alguém não tem acesso pleno e permanente a alimentos saudáveis. “Somente pelo fato de a pessoa estar preocupada em não ter o que comer na próxima refeição, ou ainda ter sido obrigada a reduzir a quantidade ou qualidade de alimentos que consome, já consideramos que ela está em algum grau de insegurança alimentar”, afirma. Segundo ela, a fome pode causar diversos danos à saúde, que vão desde danos agudos que contemplam redução da capacidade produtiva, problemas no sistema imune e aumento de doenças infecciosas, até danos permanentes que podem acarretar em doenças crônicas, incluindo danos no sistema nervoso central. “Para crianças, o problema é ainda mais grave, pois atrapalha seu desenvolvimento neuropsicomotor, provocando diversos problemas na vida adulta”, avisa. Ana Carolina ressalta que, quando pensamos em alimentação saudável, devemos pensar em diversos aspectos que incluem questões fisiológicas, em que a pessoa deve ter acesso a quantidades de alimentos adequadas para suprir os nutrientes de que precisa, e também devemos incluir fatores culturais de alimentação, em que o indivíduo deve consumir alimentos que sejam de seus hábitos regionais, incluindo necessidades culturais específicas como as religiosas. 

 

NÚMEROS DA FOME

 

Um estudo da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), divulgado em junho apontou que 33 milhões de pessoas não têm o que comer no Brasil em 2022. A pesquisa detalha que mais da metade da população brasileira, cerca de 125 milhões de pessoas (58,7%), convive com a insegurança alimentar em algum grau – leve, moderado ou grave. É um aumento de 7,2% desde 2020, e de 60% em comparação com 2018. Segundo o instituto, o país regrediu para um patamar equivalente ao da década de 1990. Os dados do estudo foram coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, em mais de 12 mil domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios distribuídos nos 26 estados e Distrito Federal. Em julho, a Organização das Nações Unidas anunciou que o Brasil voltou ao Mapa da Fome da FAO, agência para alimentação e agricultura da ONU, após oito anos fora da lista. 

 

PREÇO DOS ALIMENTOS

 

O economista e professor da Faculdade de Economia e Administração de Ribeirão Preto (FEA-RP/USP), Luciano Nakabashi, esclarece que a inflação tem sido mais forte nos alimentos, o que pesa mais para as famílias de baixa renda. “Isso porque sobram menos recursos para gastar com outros itens. Essas famílias gastam primeiro com itens mais básicos, como moradia, alimentação, vestimentas e transporte. Se sobra, gastam com outras coisas. O aumento do preço dos alimentos dificulta muito a vida dessas pessoas e não tem de onde cortar, o que afeta a qualidade de vida delas”, afirma. Um dos motivos que provocou a alta da inflação no Brasil nos últimos tempos foi o aumento significativo do petróleo, que impacta outros setores, como energia, transporte, entre outros. Além disso, a guerra na Ucrânia restringiu a produção de alguns alimentos, principalmente do trigo e do milho. Outro fator é que a demanda aumentou muito nos Estados Unidos após a pandemia, por políticas de estímulo da economia. Ainda houve algumas paralisações na China e em outros países por conta da pandemia, que fez com que faltassem alguns produtos no mercado, como insumos e peças, aumentando os valores desses itens.

 

 


Foto: Luan porto

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