Rotina de amor e de cuidado

Rotina de amor e de cuidado

Pelos corredores, nas salas de espera, na presença do bebê que está na incubadora ou na UTI pediátrica, pais e mães se cruzam o tempo todo e dividem, além das aflições, histórias de amizade e de amor

Cinco mães com realidades diferentes, porém com histórias que se cruzam pelos corredores hospitalares pelo mesmo motivo: lutar pela vida dos seus bebês internados em uma UTI Neonatal. Algumas delas, inclusive, são privadas dos primeiros e tão esperados cuidados com os filhos: o momento do banho, a troca de fraldas, o olhar ao ninar no colo ou ao amamentar, a hora de colocar no berço e dar um beijo de boa noite.

Foi o que aconteceu com a consultora tecnológica Lady Carla Souza de Pádua, de 29 anos, mãe da Antonella, que não pode vivenciar com a filha esses instantes tão aguardados. A neném nasceu no dia 3 de agosto deste ano, pesando 894 gramas, chegando, depois do parto, aos 804 gramas. Antonella nasceu antes da hora, sem dar tempo para o chá de bebê nem para o abraço de boas-vindas antes de ir para a incubadora. Antonella veio ao mundo depois de um aborto sofrido por Lady. “Tudo aconteceu muito rápido. Eu nem desconfiava que estivesse grávida novamente”, relembra a mãe.
Durante o período de internação de Antonella, Lady passava cerca de dez horas por dia no hospital
Com 12 semanas de gestação, a pressão alta começou a dar sinais de alerta. Foi preciso fazer um controle com medicamentos, readequar a alimentação e incluir atividades físicas leves na rotina. Ainda assim, Lady foi submetida a uma cesárea de emergência devido ao pico de 18 por 12. Embora o momento fosse desesperador, Lady conta que jamais sentiu medo de perder Antonella, que foi do parto direto para a incubadora. 

Desde então, diariamente, entre idas e vindas, a mãe passava cerca de dez horas no hospital, seja para tirar o leite ou para ter, mesmo que por poucos minutos, a filha nos braços por meio do  “Método Canguru”. “Eu nunca pensei que ela não fosse sobreviver. Todo dia, quando eu chegava ao hospital, tinha mais certeza disso. Na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), a angústia é companheira, a incerteza de não encontrar seu filho na incubadora, de ter acontecido algo grave é muito recorrente, mas eu sempre acreditei que Antonella nasceu para viver. Eu me aproximava dela e ela já abria os olhos. É daí que vinha a minha força”, emociona-se. 

Para a mãe, o mais triste era voltar para casa sem a filha nos braços. “Sabia que ela estava bem, mas não estava comigo. Porém, acredito que tudo tem um propósito que iremos entender no futuro”, completa. Lady avalia que, apesar de Antonella permanecer tanto tempo internada, haviam bebês com o estado de saúde mais delicado. “No hospital, ouvia muitas histórias, boas e ruins, mas, diante de todas as dificuldades da minha filha, sei que ela é saudável e que vai crescer e se desenvolver. Na UTI, aprendemos na prática o que é o amor de verdade”, conclui Lady, que passou a fazer parte das estatísticas, tornando-se uma mãe de UTI. Antonella passou 85 dias na Unidade e mais cinco dias no quarto. 

No mundo, 15 milhões de crianças nascem prematuras todos os anos. No Brasil, esse número chega a 340 mil ou, em média, 40 nascimentos prematuros por hora. Segundo estudos da Fundação Osvaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 10% das gestantes brasileiras têm os bebês antes da data prevista. 

Ambiente acolhedor
Com o índice da prematuridade no Brasil, o papel dos médicos que atuam nas UTIs Neonatais tem ganhado ainda mais importância. Membro da equipe de coordenação neonatal do Sinhá Hospital Materno-Infantil, Luís Ângelo Marti Traver Vilela (CRM: 110640), explica que o atendimento deve ser multiprofissional. No hospital, os pais têm à disposição uma equipe de enfermeiros, psicóloga, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e médicos de diversas especialidades. A humanização, segundo o neonatologista, é o principal foco na assistência a esses pais. 
Para Luís Ângelo, é fundamental que as mães de UTI não percam a própria identidade
Na prática, os representantes das equipes que atuam diretamente com os bebês se reúnem com mães e pais e discutem os dilemas vividos por eles. “Na reunião, apresentamos o funcionamento da UTI, recebemos críticas e/ou sugestões e, principalmente, acolhemos essas mães e tentamos, de certa forma, melhorar tanto a rotina dos bebês quanto a delas”, conta. 

Segundo o especialista, outro momento crucial na vida dessas mães é depois da alta hospitalar, quando, geralmente, precisam dar continuidade ao tratamento dos bebês e, em alguns casos, preparar a casa com equipamentos médicos. “Esse período de adaptação é muito exaustivo e se faz necessário o acompanhamento médico-terapêutico dos bebês. As mães têm uma jornada muito longa pós-hospital também”, acrescenta Luís Ângelo. 

Reconstruindo laços
Na UTI, cada vivência é particular e cada história é única. O cheiro entre a mãe e o bebê é bloqueado pelo vidro da incubadora, o toque é confundido com os fios que monitoram o estado de saúde e o vínculo é criado a partir de interrupções entre um medicamento e outro. Para Luís Ângelo, porém, é fundamental que as mães não percam a própria identidade e compreendam que elas abarcam diversos papeis na sociedade. “A nossa tentativa é lembrá-las de que, fora a UTI, também existe a esposa, a filha ou a mulher e que todas elas têm necessidades extra-hospitalares, de se divertir e de se socializar, por exemplo. Esta compreensão contribui diretamente com o tratamento do bebê”, alerta. 

Praticar o desapego do bebê que se esperou durante nove meses de gestação e encarar a realidade, segundo o neonatologista, ainda é outro ponto a se considerar nesse universo hospitalar e, faz parte da reconstrução da identidade materna, afinal, há uma ruptura de paradigmas, de conceitos e de sonhos. Tentar compreender o bebê real, tanto para as mães quanto para os pais, é essencial nesse processo. “Geralmente, esse é o primeiro choque para a mãe: a desconstrução do bebê idealizado durante a gestação e a construção de uma nova relação com um ser tão frágil e indefeso. É livrar-se da culpa para viver o amor em sua plenitude”, comenta. 
Amanda comenta que cuidar das mães e cercá-las de apoio é fundamental para superar o  período de UTI
A psicóloga do Sinhá Hospital Materno-Infantil, Amanda Gomes Silva, aponta que buscar o equilíbrio e o entendimento desse novo ser que veio ao mundo com tanta fragilidade e, ao mesmo tempo, lidar com a ruptura no relacionamento com ele logo nos primeiros minutos de vida gera um sofrimento psíquico muito grande para as mães. A perda do bebê idealizado, além de tudo, pode gerar um sentimento de luto para algumas mães. “Não é somente pelo encerramento da gestação e da prematuridade da criança, mas também porque existem todos os estereótipos e a romantização da maternidade pela sociedade, o que culmina na frustração materna”, conceitua a psicóloga. 

 A vivência dentro da UTI deixa as mães mais vulneráveis aos transtornos de humor. Há, ainda, algumas interferências inevitáveis, já que elas acabam compartilhando muitas histórias e experiências. “As mães que chegam à unidade neonatal estão impactadas com o ambiente, com o vazio e, ao longo dessa permanência, vão encontrando novas possibilidades e conseguindo perceber que, apesar da hostilidade, existe uma equipe que proporciona acolhimento, formando uma rede de apoio. Esse é o ponto principal para transformar o ambiente hospitalar em um local de esperança e amor”, complementa. 

A professora Cássia Aparecida Bonato Silva, de 32 anos, também passou por essa experiência, que envolveu diversas fases: da alegria ao receber a notícia da gravidez, de imaginar o rostinho do bebê e de como seria quando estivesse com ele nos braços até culpa por não ter conseguido manter a gestação até o fim. A partir das 21 semanas, Cássia permaneceu internada devido à pressão alta. Lis Maria nasceu no dia 24 de outubro, com 26 semanas de gestação e pesando cerca de 500 gramas. Começava, então, a jornada hospitalar e Cássia também passou a integrar as estatísticas se tornando mais uma mãe de UTI. 
Filha de Cássia, Lis Maria nasceu com 26 semanas de gestação pesando 500 gramas
Emocionada, ela conta que o apoio familiar e da equipe médica é realmente fundamental neste período. “Com o passar do tempo e dos cuidados com Lis, fui me transformando como mãe e dando a oportunidade de surgir um vínculo muito forte”, relembra. A filha, atualmente com um ano, ainda precisa de acompanhamento médico, mas, para Cássia, a história de vida e o amor entre as duas foi superada com muita vontade de viver. 

Lembranças que não se apagam
Apesar de ter se passado quase cinco anos, as lembranças da UTI ainda estão bem fortes na memória da família da pequena Luna.  A normalidade da gestação da auxiliar de odontologia Lidiane Salomão da Costa, de 42 anos, foi interrompida pela pré-eclâmpsia que evoluiu para a Síndrome de Hellp, uma complicação obstétrica grave, pouco conhecida e de difícil diagnóstico, que ocasiona dor na parte alta ou central do abdômen, cefaleia, náuseas, vômitos e mal-estar generalizado. 

Luna nasceu com 27 semanas de gestação, pesando 620 gramas, e permaneceu na UTI por nove meses. O quarto de casa, já montado e decorado, pronto para acolher Luna, foi transformado:  no lugar das bonecas, entraram cilindro de oxigênio, oxímetro, entre outros aparelhos. “Eu não tive muito tempo de pensar nesta mudança, pois, quando ela nasceu, foi direto para incubadora e, na alta, quando chegamos em casa, o quarto já era outro”, relembra. 
Segundo os pais de Luna, Emerson e Lidiane, as lembranças da rotina hospitalar ainda estão vivas na memória
Tanto para ela, quanto para o pai, o motorista Emerson Cézar Pereira da Costa, de 41 anos, a fé foi o alicerce durante o período de internação de Luna. Além disso, o apoio familiar também foi fundamental no processo de aceitação das novas condições. Para eles, fazer parte da rotina de uma UTI é como estar em uma montanha russa. “A cada hora, seu filho está de uma forma: se de manhã o estado geral é positivo, pode ser que em horas ou minutos tudo mude”, comenta Emerson, lembrando que, por três vezes, Luna sofreu parada cardíaca e correu risco de morte. “Estar na corda bamba o tempo todo e não saber o que pode acontecer nos próximos dez minutos é angustiante”, reforça Lidiane.

De acordo com os pais, a iminência da morte no tempo de UTI ainda é muito recente na lembrança. O barulho dos equipamentos médicos e o cheiro do hospital latejam diante da fragilidade de tantas crianças que passam por lá. Para Lidiane, ser uma mãe de UTI significa viver em mundos paralelos, pois sofrimento e superação caminham lado a lado. Nesse processo, a rede de apoio composta por outros pais que estão na mesma situação é primordial para superar todos os imprevistos. “Na UTI, as pessoas têm que se abraçar e se ajudar, pois é naquele lugar que vemos o quanto a vida é valiosa e o quanto temos que agradecer por cada dia”, conclui a mãe. 

O direito de sentir
Para a psicóloga clínica Carolina Olivato Calil Neves, a maternidade e a gestação sem intercorrências, geralmente, já exigem da mãe, desde o início, e principalmente após o nascimento, uma readaptação e reestruturação interna e externa, quebra de conceitos e padrões pré-estabelecidos, relacionada a uma nova rotina que vem acompanhada de constantes mudanças e de extrema doação nos cuidados dedicados ao bebê. Quando este momento chega carregado de incertezas e inseguranças, com a possibilidade da internação em uma UTI, a mãe sofre um processo de luto pela perda do bebê imaginado frente ao bebê real, que veio ao mundo em condições muito diferentes das idealizadas. Isto leva a mãe a uma intensa desconstrução e rompimento de sonhos e planejamentos. 
“Em uma gravidez de risco morrem muitos sonhos”, comenta Carolina
O luto, segundo a especialista, também envolve a perda da própria identidade da mãe  que, muitas vezes, sente-se anulada e incapaz, precisando buscar e reconstruir seu novo “eu”, quebrando expectativas e exigindo de forma brusca, repentina e inesperada, mudanças estruturais, emocionais, sociais e financeiras em um curto espaço de tempo para assimilar e digerir a nova situação imposta em que se vê inserida. “Em uma gravidez de risco, morrem muitos sonhos”, comenta.

Essa desconstrução, segundo Carolina, está ligada também ao sentimento de dor e pesar da mãe ao imaginar e presenciar o sofrimento pelo qual seu bebê passará em vida diante dos procedimentos, limitações e privações a serem enfrentadas. A velocidade, a inconstância e a instabilidade dos acontecimentos dentro da UTI exigem dos pais, até então leigos e novatos nesse quesito, em sua maioria, a adaptação e a internalização rápida desse novo contexto, sem planejamento e preparo prévio. “Isso pode ocorrer de forma muito traumática e sofrida, principalmente quando os pais não recebem apoio profissional adequado e humanizado, bem como acolhimento e suporte de amigos ou familiares. Vale ressaltar que o suporte psicossocial faz toda diferença e ajuda muito no enfrentamento e na aceitação desta vivência”, acrescenta. 

Compreender os sentimentos dessas mães é procurar resgatar seu próprio valor enquanto seres humanos, a fim de atender suas necessidades e prepará-las para que desenvolvam um vínculo afetivo e laço maternal bem estruturado, independente de quanto tempo tiverem com seu filho. De acordo com Carolina, contar com suporte psicológico, dar-se ao direito de sentir, pedir ajuda, exteriorizar os sentimentos, sejam eles de tristeza ou de alegria e, principalmente, viver o momento da forma como fizer sentido para cada mãe, auxilia no processo de desenvolvimento de recursos emocionais internos para lidar com esta vivência tão delicada e complexa de maneira menos sofrida, dentro do possível. 

Também é importante ressaltar que a vivência dessas famílias durante a internação tem bastante influência na maneira com que lidarão com a nova realidade após a alta hospitalar. “As lembranças da UTI serão carregadas para sempre por esses pais e, independente de levarem os filhos para casa ou não, contar com suporte adequado faz com que eles convivam com essas memórias tendo possibilidade de maior aceitação, podendo amenizar o sofrimento que elas podem despertar”, conclui Carolina. 

Uma página virada 
A maternidade sempre foi o sonho da cirurgiã vascular e hiperbarista Luciana Gallo Galvão Cesar Martins, de 37 anos.  A primeira gestação foi descoberta com oito semanas: Isabella estaria a caminho. No entanto, o ultrassom morfológico, realizado com 20 semanas, trouxe a revelação mais angustiante da sua vida: o sistema digestório do bebê não teria se desenvolvido. “Meu mundo desabou, pois meu conhecimento médico me permitia saber de todas as complicações que estariam por vir”, relembra. Para o diagnóstico final, seria preciso aguardar até o nascimento da bebê e, então, o ideal seria evitar que Luciana tivesse um parto prematuro. Entretanto, com 26 semanas, a médica começou a sentir as primeiras contrações. Belinha, como prefere chamá-la, nasceu com 840 gramas. 
De acordo com Luciana, a história vivida com a filha na UTI fortaleceu a família para cuidar do segundo filho
Luciana relata que foi um momento muito difícil, pois sendo da área médica, sabia de todos os riscos e, junto com a má formação, deveria ainda lidar com a incerteza de algum tipo de síndrome. Da sala de parto direto para a incubadora, Belinha foi intubada para auxílio respiratório.  Na UTI, mãe e filha permaneceram por 90 dias. Luciana tinha medo da despedida, dos familiares não suportarem a dor da perda e até da filha ter uma infância em sofrimento. Buscou em Deus a sua segurança. “A fé foi o que nos ajudou a seguir lutando. Todos os dias, eu cantava para ela a música de Roberto Carlos: ‘nunca se esqueça nenhum segundo que eu tenho amor maior do mundo, como é grande o meu amor por você’”, emociona-se.

Para ela, o apito do monitor e a chegada da equipe médica no socorro aos internados, assim como as histórias de cada mãe e pai ali presente, renderam muitos aprendizados. Assim, Isabela cumpriu sua missão. Há um ano Luciana ganhou um novo anjo, seu segundo filho, Murillo. “Tudo o que vivemos na UTI nos fortaleceu enquanto família e nos deu entendimento para saber que a vida nos é dada para ser vivida com muito amor. O Murillo é fruto de todo aprendizado que tivemos com a Belinha”, conclui. 

Texto: Cristiane Araujo | Fotos: Luan Porto

Compartilhar: