Só se vê bem com o coração

Só se vê bem com o coração

Relembrando a trajetória que a fez construir o Colégio Pequeno Príncipe, em Ribeirão Preto, Maria Auxiliadora Ferreira de Oliveira afirma que, se necessário, faria tudo novamente em favor da educação

Texto: Ângelo Davanço

Como parte de uma geração que sempre acreditou que os sonhos podem mover o mundo, a professora Maria Auxiliadora Ferreira de Oliveira, de 78 anos, afirma que hoje faria tudo novamente em favor de uma educação que se aproxime mais das crianças, que estimule a interação e a criatividade. Foi com este pensamento que, há 55 anos, ela, o marido José Antonio Apparecido de Oliveira e um grupo de casais amigos criaram o Colégio Pequeno Príncipe, que agora se prepara para saltos ainda maiores em sua trajetória na área educacional de Ribeirão Preto.

Única remanescente do grupo fundador, Tia Auxiliadora, como é chamada por todos no colégio, ainda faz questão de ir até ele todos os dias, principalmente para participar de um momento especial, a entrega dos alunos para os pais. “Sempre tivemos essa preocupação, de criar vínculos com todos, alunos e seus pais. Conhecemos todos pelo nome e isso é muito gratificante”, pontua.

Mineira de Prata, um município que hoje tem pouco mais de 28 mil habitantes, Auxiliadora cresceu no campo, com os pais e dois irmãos — a mais velha, Maria Helena, falecida recentemente. Ainda hoje mantém o sotaque e a boa conversa que só quem é de Minas Gerais pode ter. “Vivíamos lá, com tudo o que a vida do campo tem, as plantações, o leite tirado da vaca. Nosso universo era Prata, o povoado de Vila Barroso e Frutal, uma espécie de ‘metrópole’ daquela região”, referindo-se ao município de 60 mil habitantes na “ponta esquerda” do Triângulo Mineiro, reconhecido por sua produção de abacaxi, cana e grãos, e por ser um polo educativo regional.

Foi em Frutal que a menina Auxiliadora iniciou seus estudos, mas a temporada durou pouco. “Minha mãe tinha a cabeça lá na frente, ela havia estudado em um internato de Uberaba e dava muito valor à educação. Por indicação de uma amiga, ela conheceu o Colégio Auxiliadora e assim chegamos a Ribeirão Preto, quando eu tinha sete anos”, relembra.

Paixão pelo ensino

A propriedade rural continuou ativa em Minas, mas a família passou a viver no Palace Hotel — hoje o Centro Cultural Palace, no Quarteirão Paulista —, até a aquisição de uma casa na rua Cerqueira César, poucos metros abaixo do Auxiliadora. “Coisa de mineiro tradicional, meu pai não gostava que nós andássemos muito no caminho do colégio”, conta. Já naquela época, começava a despertar a paixão por ensinar. “Uma tia, que morava em Belo Horizonte, contava as histórias sobre as aulas que ela dava para a filha do (ex-presidente) Juscelino Kubitschek, e você sabe, né? Mineiro era tudo JK (risos)! No Auxiliadora, fui observando os modos de ensinar e isso foi me cativando”, lembra.

O tempo passou e, terminado o curso normal, foi convidada a dar aulas no próprio Auxiliadora. Aos 17, lecionava para meninas de dez ou 11 anos. “Era uma grade geral, de português, geografia, ciências e matemática. Uma vez, o professor Osvaldo Sangiorgi, referência na produção de livros didáticos de matemática, participou de uma aula inaugural minha”, orgulha-se. Deu aulas no colégio, onde estudou por apenas dois anos, mas não se arrepende dos motivos que a fizeram parar. “Eu ia me casar e as freiras não deixavam jovens casadas darem aulas”, afirma.

Como era comum naquela época, casou-se cedo. O marido, outro jovem sonhador. “O José Antonio era de uma família de ferroviários, que vivia se mudando de cidade. Ele nasceu em Vargem Grande do Sul e veio para Ribeirão estudar Medicina. Nos conhecemos ao acaso, pois eu tinha um primo que morava na mesma pensão que ele, numa das esquinas da Catedral”, relata. Veio o namoro, depois o casamento, os filhos e a constatação de uma realidade: muitas pessoas chegavam a Ribeirão Preto naquela época em torno das atividades da Faculdade de Medicina da USP, sejam alunos, professores, residentes ou pesquisadores. Com eles, a necessidade de uma escola que pudesse acolher seus filhos. “Naquela época, participávamos de um grupo de casais da igreja que valorizava muito o diálogo dentro de casa, que acreditava no valor de uma educação mais aberta para os filhos. Nos aproximamos de pessoas com o mesmo pensamento que o nosso, de querer uma escola com uma pedagogia mais próxima das crianças”, explica. Assim nascia, em 25 de janeiro de 1966, o Colégio Pequeno Príncipe.

O início da escola

De início eram seis casais na parceria para a abertura da escola. “Os outros tinham dotes financeiros para investir, mas eu e meu marido, não. Foi quando, conversando com meu pai, ele sugeriu cedermos a casa da Cerqueira César para iniciar a escola. Foi esse o nosso primeiro endereço”, lembra. Com anúncios no extinto Diário de Notícias, jornal pertencente à igreja católica em Ribeirão Preto, a nova escola atraiu a atenção de muita gente e abriu as portas com boa procura. Logo, três casais que não se adaptaram ao negócio optaram por deixar a sociedade e coube a Maria Auxiliadora e José Antonio, Maria Lúcia e José Carlos Prates Campos; e Maria Regina e Heni Sauaia, escreverem os primeiros capítulos de uma outra história, tão inspiradora quanto a do personagem que lhe empresta o nome. “Nos anos 1960, o Pequeno Príncipe era muito popular no Brasil. Eu me lembro que todas as candidatas a miss diziam que liam o livro, mas eu nunca o vi como um livro infantil, apenas, e sim como uma literatura que nos faz enxergar além. Pois nesse ambiente, em uma das reuniões para falar sobre a escola em nossa casa, meu filho André Luís, loirinho e de cabelos cacheados, passou correndo, brincando, e alguém disse: ‘olha ali o Pequeno Príncipe’, e assim o nome ficou”. Lançado em 1943, o livro é um clássico do escritor, ilustrador e aviador francês Antoine de Saint-Exupéry.

Temporada francesa

Escola funcionando, um dia o marido surge com a novidade. “Consegui uma bolsa para me especializar na França, mas só vou se você também for”, disse José Antonio, à época. Levar os filhos — além de André, a ainda bebê Taciana —, era difícil, até a mãe de Auxiliadora sugerir a solução: “a mulher tem de acompanhar o marido e o marido tem de acompanhar a mulher. Coloque aqui uma funcionária que cuidamos dos netos na fazenda”. Não foi só isso. Na escola, ouviu de um dos companheiros de jornada: “vá e procure conhecer uma máquina que ensina as pessoas”, referindo-se aos computadores ancestrais da moderna tecnologia de hoje. E assim foi o casal para o continente europeu. Enquanto José Antonio se aprofundava em sua paixão pela pesquisa, Maria Auxiliadora se virava bem no francês, idioma obrigatório nos tempos de escola, e conhecia mais e mais sobre o tipo de educação em que sempre acreditou. De volta, um ano depois, era hora do colégio crescer.

Em 1969, o espaço na casa da Cerqueira César já não comportava as atividades da escola. Veio a oportunidade da mudança para o antigo espaço do seminário dos Estigmatinos, na rua Marcondes Salgado, onde o Pequeno Príncipe está até hoje, saltando da capacidade de atender 120 alunos no início, para mais de 600 atualmente — e com planos de expansão. Em 2021, uma nova unidade foi aberta para atender aos alunos do Ensino Médio e a expectativa é que, em 2022, o colégio reúna suas classes de Ensino Infantil, Fundamental e Médio em um moderno campus a ser implantado no Jardim Olhos D’Água. A sequência de um sonho de ensinar iniciado por um grupo de amigos há mais de cinco décadas hoje prossegue sob os cuidados da segunda geração, com André Luís Ferreira Oliveira, Angela Campos Malavoglia e Cristina Gama Sauaia. E, claro, com a Tia Auxiliadora sempre por perto.

Entrevista

O Colégio Pequeno Príncipe se prepara para novos saltos em sua história. Como a senhora se sente, cinco décadas depois de iniciar essa caminhada?

 A escola surgiu de todo o nosso idealismo, e todo o nosso investimento sempre foi direcionado ao ensino, à pedagogia, aos professores. Para mim, isso tudo é maravilhoso, pois somos educadores acima de administradores, mas temos de caminhar, temos de acompanhar. Hoje há uma tendência de as escolas fecharem todo o ciclo, com Ensino Infantil, Fundamental 1, Fundamental 2 e Ensino Médio, que é o que estamos iniciando agora, mas o importante é o que faz o Pequeno Príncipe ser a escola que é. Esse diferencial está na essência da escola. Saber o nome e o sobrenome do aluno, receber ex-alunos que voltam para trazer seus filhos, saber que o que ficou para eles foi o conhecimento, mas também foi muito mais o afeto, o acolhimento, os valores passados para você ser competitivo, mas primeiro com você mesmo, fazer o melhor para si, por meio da curiosidade, por meio dos desafios. Não aquela coisa repetitiva, que você pode aprender no Google mesmo, mas por meio da interação entre professor e aluno. Eu digo que esse é um trabalho artesanal, você constrói e desconstrói, começa de novo. Isso é apaixonante e forma uma essência que não se pode perder.

Como a tecnologia tem alterado o processo educativo?

 Acho que ela nunca vai substituir o professor em sala de aula, e nós vivemos essa experiência no ano passado, com a pandemia. Temos de tirar o chapéu para os professores, pois eles correram atrás e nós tivemos de nos adaptar a esse novo método. Com a volta das aulas presenciais, das aulas híbridas, é uma outra questão, pois agora eu penso que a escola não pode abrir mão da tecnologia: ela vai fazer parte do processo educacional, mas não dispensa o professor, não dispensa a interação do aluno até com ele mesmo, na sua curiosidade, nas suas descobertas.

Como é sua participação hoje, a sua rotina na escola?

Teve uma época que eu participei mais da escola, atuando juridicamente, administrativamente, junto ao Ministério do Trabalho, junto à Diretoria de Ensino e a parte pedagógica do meu dia a dia sempre foi com a Educação Infantil, o trabalho de alfabetização com as crianças. Com o tempo, a parte administrativa e a condução do Fundamental 2 passaram para a Angela, e a parte financeira, para a Cristina. Então, eu continuo com essa parte de contratação junto ao Ministério do Trabalho e a parte pedagógica do Fundamental 1, mas eu já passei o período da manhã para o meu filho, André, que vai ser o meu seguidor. Antes, eu ia de manhã e à tarde ao colégio, depois, com a pandemia, quando o André assumiu o período da manhã, eu achei ótimo, pois fiquei mais tranquila. Agora, eu chego à escola às 14h e fico até as 19h. Nesse tempo, eu vou até as salas, participo do recreio das crianças, faço reunião com professores, com a coordenação e, todo dia, participo da entrega das crianças para os pais. Eu fico muito feliz em fazer isso, pois esse é o momento em que eu conheço os pais, conheço a avó, o motorista, a babá, ficamos todos na porta, conversando, dá até vontade de convidar para entrar, servir um chazinho das cinco (risos). Tem o Darci, pipoqueiro que já foi tombado como patrimônio histórico do Pequeno Príncipe. O filho dele é professor de Educação Física nosso, o neto é aluno nosso, são histórias muito prazerosas de acompanhar.

Aos 78 anos, como tem sido a passagem do tempo para a senhora?

Eu até me assusto quando lembro que tenho 78 anos. Acho que passou tudo muito rápido, mas tive o privilégio de ser sempre muito ativa. Veja, eu morei na roça, estudei interna, ou seja, 6h30 já estava de pé. Continuo acordando cedo, sou meio reticente a isso de fazer academia, sei que estou errada, mas é que eu ando tanto que isso me dá uma boa condição física, uma rotina equilibrada, mesmo dormindo tarde. Às vezes, me perguntam: ‘mas você foi dormir meia-noite, acordou às 6h, como você dá conta?’. Oras, dizem que mineiro acorda cedo para ficar mais tempo à toa, mas eu não, é porque sempre tenho alguma coisa para fazer. Sou viúva há três anos e o José Antonio nunca se preocupou com nada a não ser a convivência com a família e a profissão dele. Enquanto isso, eu ia nadando de braçada (risos). Eu que ia atrás de trocar carro, ele nem sabia que era preciso licenciar o carro de acordo com a placa, então eu sempre fui muito ativa nesse sentido. As terras dos meus pais em Minas foram divididas, então tem o meu pedacinho. Vou lá sempre, quem cuida é meu filho mais novo, o Duda (Luís Eduardo), que trabalha com construção civil, mas gosta de uma roça, também, viu?

E como tem sido morar sozinha?

Se eu parar para pensar muito, ainda mais agora, que minha irmã faleceu tão recentemente, eu vejo que há momentos em que você fica triste e chora, mas a vida tem de continuar, senão eu vou me tornar uma pessoa chata, e eu não quero isso. O chato nessa idade, e nessa fase de pandemia em especial, é que você vai perdendo seus amigos. Às vezes, eu penso em ligar para alguém, vou ver, já morreu, mas faz parte da vida. Não penso que viver sozinha é solidão. Até porque, quando começo a pensar em alguma coisa ruim, invento algo para fazer. Neste ano, comecei a sair mais um pouco, ir ao colégio. Eu sou do tempo antigo, gosto de fazer feira, então saio de carro na quarta-feira, paro na esquina da Olavo Bilac com a Rui Barbosa, vou na banca rapidinho, faço minha feira e volto. Às vezes, vou ao supermercado para comprar pão, vou bem cedinho, então os velhos todos se encontram lá. Mas, no ano passado, foi tudo mais difícil. Às vezes, eu tirava meu carro da garagem só para dar uma volta, meia hora, quarenta minutos, para ver gente na rua, pois de final de semana, na minha rua, não passa nem um cachorro para a gente falar um oi (risos). Olha, estou falando muito, mas isso é falta de conversa, viu? Fico aqui o tempo todo, então quando aparece alguém para conversar, eu aproveito (risos).

Para encerrar, eu peguei esta frase do Pequeno Príncipe: “Foi o tempo que dedicaste a tua rosa que fez tua rosa tão importante.” Passados 55 anos da criação de sua escola, a senhora faria tudo de novo?

 Sim, eu faria tudo de novo. Seriam tantas coisas possíveis de serem feitas, um recomeçar, um reconstruir, mas com pequenas adaptações, poucas diferenças. Sem dúvida, eu faria a mesma coisa. Eu não me vejo em outras funções, sempre me vi trabalhando com crianças e sempre nessa condição de buscar oportunidades de aprendizado, como dança, teatro, artes, música, artes circenses, coisas enriquecedoras. Hoje, com essa bagagem toda adquirida, poder recomeçar uma escola é o maior sonho de consumo de um educador. Penso que apesar da tecnologia, da modernidade, de tudo o que está aparecendo, se você for procurar, lá no comecinho, é ao ser humano, é às habilidades que você tem de dar oportunidades, fazer com que a criança conquiste autonomia, que ela possa decidir: se quiser pintar uma rosa de verde, que ela possa pintar e questionar, pois quem falou que toda rosa tem que ser vermelha ou cor de rosa? Temos de dar as oportunidades para as crianças fazerem suas descobertas, sem se preocupar se os outros vão gostar ou não. Tudo o que a criança faz é bonito, tudo é uma construção. Ver hoje ex-alunos expressando esse sentimento, lembranças de suas saídas da escola, quando eu estava lá… É tão subjetivo que faz a diferença, essa individualização e personalização no relacionamento com o aluno. Ajudar a criança na busca da sua construção, no início de uma realização completa, com autonomia e, principalmente, com felicidade, pois, se depois de tudo isso, ela não for uma pessoa feliz, nada disso terá valido a pena.

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