Sob os olhos da lei

Sob os olhos da lei

Em entrevista, advogado Evandro Grilli discorre sobre a relação entre Justiça e medidas de combate à pandemia

Em 16 de março, uma quarta-feira, o prefeito de Ribeirão Preto, Duarte Nogueira (PSDB), convocou a imprensa e os cidadãos a acompanharem uma live nas redes sociais da administração municipal sobre as medidas de restrição que seriam adotadas pela cidade pelos próximos dias. Quem se preparou para acompanhar a entrevista não imaginava que, pela primeira vez desde o início da pandemia, em março de 2020, o Executivo decretaria lockdown pelos cinco dias seguintes. A medida, considerada a mais austera para evitar a circulação de pessoas e estabelecer o isolamento social, desceu amarga para muitos profissionais, que teriam de fechar de vez as portas ao público, sendo permitido apenas o serviço de delivery para entregas de compras ou refeições.

A decisão, até então inédita, aflorou os ânimos. Um cidadão decidiu entrar com ação na Justiça para ter garantido o “direito de ir e vir”. Ganhou, mas, horas depois, a decisão judicial de Ribeirão Preto foi cassada pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, a partir de um pedido do Ministério Público. “Em matérias de garantias constitucionais o direito à vida está acima do direito de exercer atividade econômica, do direito de ir vir, etc. Se for preciso restringir esses direitos para preservar a vida, entendo que a medida deve ser tomada. E há decisão do STF que valida esse entendimento e que deve ser seguida em todos os níveis, por todas autoridades”, explica o advogado Evandro Grilli, sócio e diretor-executivo do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

Na entrevista a seguir, Grilli explica detalhes de medidas judiciais durante a pandemia, o papel das esferas governamentais no combate à Covid-19 e avalia como o país está administrando a situação.

O que o Supremo Tribunal Federal determina como competências do governo federal, do governo estadual e do governo municipal no que diz respeito às medidas de combate à pandemia?

O STF, em julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), decidiu que a competência para enfrentar a pandemia é das três esferas de governo, ou seja, tanto o governo federal, quanto o estadual e o municipal podem estabelecer normas e criar restrições de toda ordem com base na Constituição e na Lei Federal n. 13979/2020. No entanto, o STF estabeleceu que, dadas as circunstâncias e condições da pandemia em estados e municípios, estes entes podem ser mais restritivos do que o governo federal. Em suma prevalece sempre a norma mais restritiva, seja ela federal, estadual ou municipal. Essa decisão tem efeitos “ erga omnes”, ou seja, vale para todo o Brasil e vincula juízes, autoridades públicas e cidadãos.

Em Ribeirão Preto, o prefeito Duarte Nogueira decretou o lockdown por cinco dias. A Prefeitura tem a prerrogativa de tomar medidas restritivas como essa?

É um tema controverso, mas eu entendo que sim. Conforme explicado acima, a decisão do STF na Adin mencionada dá ao prefeito de qualquer cidade essa prerrogativa, levando em conta a gravidade da pandemia em seu território. É importante lembrar que a Lei Federal n. 13979/2020, aprovada pelo Congresso Nacional, e sancionada pelo presidente, também faz previsão de restrição de circulação de pessoas como medida que pode ser adotada para o enfrentamento da pandemia. Ou seja, além de estar autorizado pelo STF, que tem o poder de interpretar e aplicar a Constituição, vejo que também há previsão legal para a medida.

Um cidadão de Ribeirão Preto conquistou na Justiça o “direito de ir e vir” durante o lockdown, podendo sair de casa nos dias de restrição máxima. O que a legislação diz sobre esse direito do cidadão e o lockdown durante a pandemia?

Em matérias de garantias constitucionais o direito à vida está acima do direito de exercer atividade econômica, do direito de ir vir, etc. Se for preciso restringir esses direitos para preservar a vida, entendo que a medida deve ser tomada. E, como afirmado, há decisão do STF que valida esse entendimento e que deve ser seguida em todos os níveis, por todas autoridades. Eventualmente, um ou outro juiz entende diferente e decide em sentido diverso. Contudo, mesmo no caso do cidadão que obteve o habeas corpus, a decisão já foi cassada pelo presidente do STF no Pedido de Suspensão de Liminar n. 1432, feito pelo Ministério Público.

Um lojista de Ribeirão Preto foi preso por durante o período de restrição, porém, antes do decreto de lockdown. Uma das acusações teve como base o artigo 268 do Código Penal (infringir determinação do poder público destinada a impedir a propagação de doenças contagiosas). No dia seguinte, a Justiça determinou ilegalidade na prisão e determinou a soltura do comerciante. Afinal, a detenção é ou não legal e em que casos, durante a pandemia, ela poderia ocorrer?

O Tribunal de Justiça do Lockdown foi alternativa encontrada pela Prefeitura de Ribeirão Preto para tentar conter o avanço da Covid-19 no Estado de São Paulo (TJ-SP) já reformou essa decisão a pedido do Ministério Público e decretou uma série de medidas restritivas contra o empresário. Ele está proibido de manter contato com outras pessoas, por qualquer meio, para não incitar descumprimento das medidas; está proibido de sair da cidade; tem que se recolher no período noturno; seu estabelecimento estará fechado enquanto durarem as medidas restritivas; e ainda terá o celular apreendido. Veja, então, que o Tribunal entendeu que o empresário merece ter essas penalidades alternativas à prisão, o que pode indicar, no futuro, algum tipo de condenação pela conduta, numa visão completamente diferente da que teve o juiz de Ribeirão Preto. Na pratica, a decisão do TJSP considerou válido o decreto do lockdown.

Alguns dizem que houve politização da pandemia. Outros, judicialização. Em sua opinião, como cidadão e advogado, como o país e, especificamente o município, estão enfrentando a Covid-19?

Estamos enfrentando muito mal. Não é à toa que já somos o segundo colocado em número de mortes e ultrapassamos o primeiro colocado em número de contágios diários. A pandemia virou bandeira política. Não temos uma coordenação nacional por parte do governo federal. Com isso, estados e municípios agiram no vácuo do poder federal e tomaram as medidas que entenderam mais adequadas. Mesmo aqui em nosso município, há uma insegurança quanto ao futuro. Há quinze dias, a Prefeitura recusou a classificação que o Estado nos deu para a Fase Vermelha e manteve o município na Fase Laranja. Menos de duas semanas depois, foi decretado um lockdown com 12 horas de antecedência de seu início de vigência. Será que se fôssemos para a Fase Vermelha 15 dias atrás, como queria o governo estadual, teríamos a decretação do lockdown, que é medida polêmica e que penaliza tanto o setor produtivo? O que temos agora? Uma saúde completamente colapsada, não há leitos, nem mesmo na rede privada, poucas vacinas, negacionismo de boa parte da população que se dividiu no meio disso tudo e um horizonte de dias difíceis que virão pela frente. 

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