Sobre literatura e política

Sobre literatura e política

Antes de retomar sua rotina como professor, Gilberto Abreu recebeu o jornalista Murilo Pinheiro para um bate-papo

Foi com café e pão de queijo que o mineiro Gilberto Abreu, natural de Passos, recebeu o jornalista gaúcho, Murilo Pinheiro, para um bate-papo em sua casa na última semana. Engajado politicamente desde os 22 anos, o professor, aos 63, já foi secretário da Cultura e do Meio Ambiente em Ribeirão Preto. Em dois mandatos consecutivos, foi o único vereador do Partido Verde, responsável pela aprovação de uma centena de leis em oito anos. ‘Estimo que menos de 10 estejam em vigor atualmente’, afirma Gilberto Abreu, decepcionado com os descaminhos da política.

Autor de sete livros, o professor já recebeu diversos prêmios como contista, poeta e romancista. Sua obra “Mande beijos a Gardel”, por exemplo, rendeu-lhe o Prêmio Guimarães Rosa, em 1990. Candidato a vice na chapa de Duarte Nogueira Júnior (PSDB), derrotado na última eleição para prefeito, pretende retomar, este ano, a rotina nas salas de aula — onde acumula 40 anos de experiência. Formado em Ciências Sociais com especialização em História e doutorado em Educação, Gilberto revelou ser, durante a conversa acompanhada pela jornalista Luiza Meirelles, um educador inovador, um político de ideias bem definidas e um amante da literatura.

Murilo: Como você iniciou a carreira acadêmica e em que momento chegou a Ribeirão Preto?
Gilberto: Depois de formado em Belo Horizonte, comecei minha carreira de professor, na década de 70, em Passos, Minas Gerais, cidade onde nasci. Deixei a minha terra em 1977, quando se vivia uma intensa crise de desemprego. Saí em busca de trabalho em São Paulo e no Rio de Janeiro e posso dizer que minha chegada a Ribeirão Preto foi curiosa. Um dia, retornando a Passos de uma viagem a São Paulo, avistei ao amanhecer, de dentro do ônibus, uma cidade imponente. Logo mais, li a placa que informava: Ribeirão Preto a 5 km. Eu até já havia estudado na cidade, mas foi naquele momento decidi que mudaria para cá.

M: Sua trajetória ribeirãopretana começou nas salas de aula?
G: Não. Comecei trabalhando em um escritório de economia desenvolvendo projetos de viabilidade econômica para o setor hoteleiro. Esse trabalho não durou, mas me apresentou o COC, um dos contratantes do escritório. Na época, não havia vagas para aulas de História, que era minha formação. Mas havia de Geografia e foi essa disciplina que passei a lecionar. Na ocasião, o professor Melhem Adas, que tinha formação em Geografia, e eu tivemos uma afinidade recíproca e criamos um novo enfoque para a Geografia, passando a dar contexto histórico-sociológico à matéria — ele na do Brasil e eu na Geral. Assim, lançamos uma nova escola: saímos da Geografia físico-descritiva para a Geografia crítica.

M: Qual escritor brasileiro foi fundamental na sua vida?
G: Machado de Assis, cujas obras contextualizam a Língua Portuguesa na literatura. O Eça de Queiroz tem uma frase famosa, em que afirma que os portugueses criaram a Língua, mas acabaram ficando com o sotaque. No século XX, destaco outros dois grandes autores: Graciliano Ramos e Guimarães Rosa, autor da principal obra brasileira, “Grande Sertão: Veredas”. Existe, inclusive, um fato entre os dois. O primeiro concurso do qual Guimarães Rosa participou, em 1937, tinha Graciliano Ramos como um dos jurados. Guimarães Rosa apresentou um texto gigantesco, com mais de 700 páginas, trabalho criticado. Este, um autor já reconhecido, sugeriu que Guimarães Rosa reduzisse as páginas. Seguindo a recomendação, o inventivo autor acabou nos brindando com “Sagarana”.

M: Na literatura mundial, quais são suas referências?
G: O (Franz) Kafka é fundamental. A literatura deve muito à obra do autor, talvez pelo Max Brod, seu grande amigo que não destruiu sua obra, conforme seu pedido. O que mais me fascina na obra de Kafka é o inusitado. Fala-se da literatura do absurdo, mas toda grande literatura deve ser absurda, porque assim é a realidade. Não é propriamente um realismo, mas uma recriação, uma transfiguração da existência. “O Processo” mostra que Kafka era um antecipador, um visionário. “A Comuna Penal” também é uma antecipação de um campo de concentração.

M: Quais os povos que deram grandes contribuições artísticas?
G: Só para citar alguns, os russos, os italianos e os franceses. Em relação aos romances, julgo que os maiores sejam os russos. Dostoievski, por exemplo, é uma polifonia. São múltiplas vozes contextualizando uma época de maneira extraordinária. Tolstoi, Tchekhov e Gogol estão entre outros imperdíveis. Ivan Turgueniev, pouco conhecido por aqui, tem um personagem curiosíssimo, o Obrobó, indivíduo caracterizado por não agir: ele especula sobre a vida, tem pensamentos extraordinários, mas é totalmente inerte. A literatura francesa também tem grandes romancistas, como Victor Hugo, e ótimos contistas, como Guy de Maupassant, que deu a melhor definição do conto: ele deve ter um bom começo e um bom final; no meio está o talento do artista. Já na Itália, desde Maquiavel, criou-se uma tradição, não só na literatura, mas no pensamento.

M: Como surgiu a ideia de escrever seu premiado “Mande Beijos a Gardel”?
G: A inspiração veio quando eu estava visitando Buenos Aires. A intenção era fazer uma história a partir da ideia de conto creditada ao argentino Julio Cortázar. Conversando com um amigo, enquanto assistiam a uma luta de boxe, chegaram à conclusão de que, no romance, o autor dá tanta informação para o leitor que só consegue ganhar por pontos. No conto, o escritor precisa ganhar por nocaute. Por isso, no livro, a história só se revela na última página. Peguei o conto do (Jorge Luis) Borges chamado “A morte e a bússola”, que relata quatro assassinatos, em quatro pontos diferentes. Sempre julguei esse conto propositadamente inacabado. Criei, então, uma nova história usando esses pontos onde os crimes de Borges ocorreram. Como o investigador dos crimes era apaixonado por Gardel, o assassino, para provocá-lo, deixava um bilhete “mande beijos a Gardel” em cada corpo. De forma geral, eu realmente considero a literatura argentina moderna melhor do que a brasileira.

M: O cinema está exibindo o filme Lincoln, que mostra uma espécie de “mensalão” da época. Qual a sua análise?
G: Ainda não vi o filme, mas acho Lincoln uma figura extraordinária. A  corrupção não é uma questão brasileira. Os Estados Unidos, por exemplo, é um dos países mais corruptos , tendo dado origem à “lobby”, que remete à pressão feita na antessala do Congresso. A ligação, às vezes perversa, entre poder econômico e político é modelo americano. Lincoln era uma pessoa inflexível, especialmente em relação a suas ideias e, por isso, também usou do expediente normal da política americana. Pode-se dizer que não há figura ilibada na política. O Sartre dizia que não há como mexer com política sem se sujar.

M: Como você avalia o domínio americano consolidado no Século XX?
G: O domínio americano não é só militar ou o econômico, mas também cultural. No final da Segunda Guerra, por exemplo, o cinema francês foi assassinado pela indústria de Hollywood, que invadiu o mundo com o “American way of life”. Assim, a forma de vida americana foi imposta como a fórmula moderna, que se globalizou. A globalização não é um fenômeno das últimas duas décadas. Antes dela, veio a “americanização”, substituindo a “europeização”, que predominou na fase colonial. Os americanos substituíram os europeus de maneira avassaladora e impuseram seu estilo de vida ao mundo. Até hoje, o cinema americano dita os padrões.

M: Com a ascendência chinesa, em que ponto da globalização estamos?
G: A China é uma ascendência avassaladora e muito perigosa. O custo ambiental de sua ascensão está causando grandes danos ao planeta. O país está à beira de uma catástrofe ambiental, que pode inviabilizar o seu desenvolvimento. O custo ecológico chinês já foi bancado por outros países. A revolução dos Estados Unidos foi devastadora, assim como a milenar ocupação da Europa.

M: No Brasil, quem você considera o pior personagem da história política?
G: É difícil escolher, porque são muitos, mas acho que a figura mais esdrúxula da política brasileira é o (Fernando) Collor. Com sua pose de moralista, foi completamente amoral – aliás, como a maioria dos moralistas. Já Getúlio Vargas foi um grande déspota, mas tinha um talento político extraordinário. Tanto é verdade que, depois de ter sido ditador, foi eleito e aclamado. É uma figura sempre referida na história do Brasil, tendo criado uma escola. Essa escola produziu figuras como Juscelino Kubitschek, que herdou o talento do Getúlio, mas do lado inverso, democrático.

M: Mas a corrupção em larga escala não surgiu com a construção de Brasília?
G: Kubitschek não se locupletou, mas deixou que locupletassem. Esse foi seu erro. Ainda assim, eu o admiro pela ousadia. Pode-se dividir o Brasil em antes e depois de Kubitschek, pois até então, o país era apenas litorâneo. Ribeirão Preto e Uberlândia, por exemplo, desenvolveram-se graças ao movimento de interiorização iniciado com a criação de Brasília. O que este ex-presidente fez foi ousado e altamente positivo. Agora, um grande equívoco de Kubitschek foi optar pelas rodovias. Pagamos um alto preço por isso até hoje. Somos o único país de grande extensão territorial que transporta cargas por caminhão, o que é um absurdo total.

M: Quem você acha que foi um grande personagem da política brasileira?
G: Juscelino é um deles. Curiosamente, apesar de ser uma contradição de termos, na República Velha, que é uma república moderna – e por isso a contradição –, havia mais decência na vida pública do que posteriormente, de 1930 para frente. Naquele momento, havia grandes figuras na política brasileira. De forma geral, temos uma política empobrecida. A eleição do Renan Calheiros à presidência do Senado é um grande absurdo, já que ele é uma figura nefasta.

A geopolítica do professor
“Da teoria à práxis. Desde o início da sua carreira docente, o professor Gilberto Abreu esteve envolvido com a política que descortinava para os alunos em sala de aula. A consciência crítica fez com que entrasse em um terreno complicado, a política, matéria que costuma causar repulsa aos intelectuais e aos acadêmicos. Agora, prepara-se para retomar a carreira de professor, profissão em que, ao contrário do que normalmente ocorre na política, conseguiu uma rara aprovação. Difícil encontrar um ex-aluno que não elogie e reconheça sua performance em sala de aula. Em um curso de pós-graduação, tive a oportunidade de assistir a algumas explanações do professor sobre história, política e globalização. Ao contrário da mediocridade que hoje contamina a educação, considero as aulas de Gilberto Abreu um ato político e acadêmico que fazem com que todos os alunos reflitam sobre o papel que desempenham na sociedade, levando em conta que todo o ser humano é político por natureza, sem possibilidade de fugir dessa responsabilidade, a partir do despertar da sua própria consciência.”
Murilo Pinheiro, jornalista

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