Ultrapassando limites

Ultrapassando limites

Na semana do Dia da Mulher, a terapeuta Denise Dias traz reflexões importantes sobre um dos problemas sociais que mais afetam a mulher na atualidade: relações abusivas

Ela apresentou trabalho em Cuba, fez um curso intensivo sobre autismo em Boston e estagiou em hospitais de Miami. Terapeuta há 18 anos, pedagoga, psicopedagoga, especialista em psicossomática, dislexia, terapia comportamental e terapia de casal, aos 43 anos, Denise Dias é, acima de tudo, uma mulher “para lá” de bem resolvida. Mãe solo do Rafael, de seis anos, via banco de sêmen, ela compartilha abertamente essa experiência e conquistou audiência expressando o que sente e o que vivencia na prática terapêutica diária por meio de suas redes sociais. Com 54,7 mil seguidores no Instagram e um canal no Youtube onde aborda temas importantes relacionados à infância, adolescência, casamento e Educação, a autora dos livros “Tapa na bunda”, “Filhos perdidos” e “Produção Independente”, que já foi colunista em rádios e revistas, fala à Revide, convidando nossos leitores a algumas reflexões importantes.  

 

 

Ouve-se muito falar, hoje em dia, sobre “relacionamentos abusivos”, um tema que já foi tabu. O que é preciso dizer sobre isso em pleno 2023?

 

Às vezes, aparece algum homem no meu consultório, mas a maioria dos casos é de mulheres. Com a evolução dos tempos e a independência financeira feminina, muitas esposas não aceitam mais certos comportamentos dos maridos, como as depreciar ou colocar sua autoestima abaixo da terra, piorando ainda mais sua situação emocional. Ainda assim, vejo com muita frequência mulheres que vivem um estado de cegueira no relacionamento, vivenciam o abuso, mas não querem reconhecer. Afinal, quando se enxerga que está vivendo uma relação tóxica, isso te obriga a tomar atitude, a mudar de postura, impor limites e até terminar a relação, algo com que, muitas vezes, a mulher não tem condições de lidar naquele momento.

 

 

Como caracterizar um relacionamento abusivo?

 

Infelizmente, ainda há uma crença dominante — e não apenas entre as mais pobres, mas também entre mulheres com maior poder aquisitivo —, de que relacionamento abusivo, necessariamente, envolve agressão física. Quando se trata de abuso psicológico, mais social do que físico, fica mais fácil ‘camuflar’ o abuso, o que não significa que ele não exista. Esse é um modo de pensar perigoso, que leva a um comportamento submisso. Em função dessa falta de reconhecimento, dessa não aceitação da realidade, muitas mulheres vivenciam esse tipo de agressão e dizem para a sociedade que suas experiências não foram de abuso porque inconscientemente — ou conscientemente —, elas simplesmente não querem lidar com a situação.

 

 

Quais aspectos principais envolvem o abuso dentro de um relacionamento de casal?

 

Um abusador nunca para. A pessoa que abusa não tem limite e o abuso sempre se intensifica, até que a pessoa abusada reaja ou denunciando, ou revidando em autodefesa, ou se divorciando. Quando a vítima de fato começa a colocar limites — e geralmente quando isso acontece já é tardiamente —, esse homem já está acostumado a abusar dessa mulher por muitos anos. Ela aceitou isso. Uma mulher que tem a autoestima fortalecida e não é submissa, quando percebe que o homem se mostra abusivo já pula fora do relacionamento logo. Nos dias de hoje, o que vejo fazendo uma mulher que aceita ser abusada em vários aspectos, de repente, acordar e dar um basta, mesmo tendo tido várias possibilidades antes de fazê-lo, é quando ela percebe que esses abusos, que geralmente são enormes, intensos, começam a respingar nos filhos. Então, ela pensa: ‘Comigo até aceito [o que é um grande erro], mas meus filhos sofrerem não!’, sendo que os filhos já estavam sofrendo antes. Um dos desdobramentos das relações abusivas é a descoberta da reprodução de padrões, ou seja, da repetição do comportamento adquirido por meio da convivência com pais abusadores. Não é regra geral, afinal, no mundo do comportamento, das relações afetivas e das fraquezas psicológicas, não existe rótulo, não existe bula, mas é muito comum que mulheres que se casam e vivem uma relação abusiva tenham vindo de uma filiação onde o pai era abusivo com a mãe ou a mãe abusiva com o pai, controladora, egoísta, narcisista, basta apenas um atuar de forma abusiva para o padrão se repetir. Também é bastante comum, em terapia, quando uma mulher está tentando se libertar de um casamento ou de um namoro abusivo, ela identificar em si um padrão que vem desde o berço. Ela acorda e pensa: ‘Meu Deus, tenho 40 anos e até hoje minha mãe faz isso comigo’.

 

 

E qual a melhor forma de lidar com um caso desse tipo?

 

 

A dor dessa filha é gigantesca. Essa percepção de uma mulher adulta, de que se tornou uma esposa abusiva porque isso vem da criação, diria que é algo muito mais intenso do que a vivência de uma esposa abusada, porque uma esposa em um relacionamento tóxico pode se desvencilhar do parceiro, pode denunciar na delegacia, pedir uma medida protetiva, tomar precauções. Ela pode até viver um estresse com relação aos filhos em comum, sempre viver um ‘inferno’ em relação a isso, é um fato. Mas ela se desvencilha da pessoa abusadora. Agora, quando se trata de pais abusivos, é muito triste. Geralmente, essa relação abusiva não termina. Os pais precisariam reconhecer o erro que cometem, querer se tratar, ter humildade para perceber o mal que causaram na vida dos filhos sendo abusadores e, infelizmente, é muito raro ver isso acontecendo. Tudo isso acaba gerando uma lacuna no relacionamento entre pais e filhos, por conta dos abusos na infância e na adolescência e, geralmente, tem a ver com uma Educação autoritária, com não permitir que seus filhos realizem seus hobbies e escolham a profissão que desejam, com intromissão exagerada nos seus relacionamentos e até abusar de sua autoestima em função de dependência financeira. Existem maridos castradores, esposas castradoras e pais castradores da felicidade dos filhos. É triste, mas mais comum do que se imagina.

 

 

E não há um meio desses pais — ou qualquer pessoa — se reconhecerem como tóxicos?

 

Geralmente, pessoas tóxicas, de fato, não conseguem se reconhecer assim, até porque não têm humildade para isso, para ver a própria toxicidade, porque isso faz parte, inclusive, do quadro doentio e perverso da pessoa tóxica. Sim, porque ser tóxico envolve um pouco de perversidade. A gente chama isso em terapia de ‘prazer em menosprezar o outro’, pois a pessoa não tem limites com as palavras que vão ofender aos demais. Existe solução se a pessoa tóxica aceita ir para um processo terapêutico e só uma terapia muito bem feita e fincada na realidade das ações/reações, e nas consequências de cada ação, vai ser capaz de identificar os motivos, os gatilhos, os porquês do abusador ser abusivo e da abusada se submeter ao abuso. Costumo dizer que ambos formam um ‘par perfeito’, o doente e a doença fazem o casal perfeito, porque o homem precisa humilhar, bater e menosprezar uma mulher até o ponto de seus próprios filhos não a respeitarem como mãe, e a mulher que aceita ficar nesse papel, mesmo que se sinta humilhada, continua por submissão, pela parte da doença mental que lhe cabe: a fraqueza.

 

 

Qual a origem destes problemas todos relacionados ao abuso?

 

Tudo começa na criação, no tipo de educação que a criança recebe. Ninguém se torna um adulto abusado — ou abusador —, de repente. Normalmente, há todo um histórico desde a infância e adolescência. E tudo isso tem a ver com o apoio que a criança recebe ou não dos pais. É preciso trabalhar a ‘agressividade positiva’ nas crianças, os pais precisam estar mais atentos a isso. A cultura do ‘tem que ser bonzinho’, ‘não pode brigar’ tem que ser administrada com equilíbrio. É preciso permitir que a criança se defenda, que tenha voz em uma situação onde, de fato, ela tenha razão, para que ela não cresça acreditando que não pode se defender e que tem que engolir todos os abusos, no namoro, no casamento, na família, no trabalho. Assim é que se constrói uma personalidade abusada. Ao contrário, quando os pais não são castradores da voz dos filhos e permitem que eles resolvam suas próprias questões na escola, sem também os abandonar à própria sorte, possibilitam que cresçam e se tornem firmes, pessoas capazes de impor limites, seja com os próprios filhos, com amigos, colegas de trabalho e até com seus chefes. 

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